em filosofia da música, musicologia

Musas, música e o mundo mental – parte 5

José Fornari – fornari@unicamp.br

23 outubro 2022

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Conforme vim argumentando e apresentando evidências, a ciência atual, tanto nos limites da realidade objetiva (do macrocosmos da física relativística ao microcosmos da mecânica quântica), quanto nos limites da realidade subjetiva (tais como os fenômenos de hereditariedade epigenética ou mesmo o mistério da consciência emergir do processamento cerebral) vem acumulando evidências experimentais que apontam cada vez mais para a possível inexistência de um universo dualista, físico e determinista. Ao invés disso, têm-se aumentado as evidências da possível existência de uma realidade metafísica, em que a verdadeira essência do nosso universo não seja física, mas mental. Este fato já era, de certa forma, conhecido ou percebido intuitivamente por pessoas criativas, especialmente por artistas, mas também por alguns cientistas, em diversos casos pitorescos de intuição criativa, como o famoso “sonho de Kekulé“, químico do século XIX que após enfrentar grandes dificuldades experimentais, finalmente sonhou com a correta estrutura da molécula de benzeno, ou até mesmo o recente prêmio Nobel em física de 2022, dado a três cientistas que ajudaram a comprovar experimentalmente a existência do entrelaçamento quântico (efeito que Einstein não acreditava ser possível existir pois nega o determinismo e a localidade física, o que o fez chamá-lo, numa carta de 1947 a Max Born, de “spooky action at a distance”, algo como “efeito a distância maluco ou esquisito”, que Einstein supunha ser devido a alguma forma de variável escondida no sistema; o que foi recentemente empiricamente descartado). A meu ver, tais fatos apontam para a possibilidade de que a distância (e consequentemente, o tempo) possam vir a ser como o som; apenas percepções (ou seja, padrões, ou mesmo hábitos) do mundo mental.

Isso tudo, a meu ver, advoga pela mudança do atual framework filosófico da ciência, para uma abordagem que incorpore suas próprias e desconcertantes constatações, a fim de que esta transcenda barreiras ideológicas e prossiga em sua evolução. Penso que as consequências de tal mudança também poderão impactar a esfera social,  com a volta do fascínio pela intrincada manifestação da realidade que muitas vezes o reducionismo fisicalista, mesmo sem querer, acaba tolhendo e relegando anomalias inexplicáveis, através do seu atual framework, ao campo do misticismo, o que paradoxalmente, devido  à impossibilidade de prover explicações científicas plausíveis sem abrir mão do fisicalismo (ou na recusa de estudar sistematicamente tais fenômenos), acaba incentivando o crescimento da pseudociência (como me parece ter sido o caso do terraplanismo), o negacionismo científico (como os que não acreditam no aquecimento global), o pensamento mágico e místico e até mesmo o avanço desenfreado das religiões fundamentalistas que se alastraram pela política e pelos governos, tanto aqui quanto em diversos outros países. 

Do mesmo modo, as artes também se beneficiariam com tal mudança de framework filosófico. A música, a “arte das musas”, a mais imaterial, intangível e inefável das artes; desde o surgimento da indústria cultural tem como que servido a dois tiranos. Em primeiro lugar, ao mercantilismo, constantemente incentivando o consumismo desenfreado, usa a música para fortalecer o apelo emotivo de suas propagandas, tornando a arte das musas numa ferramenta de persuasão ideológica coletiva. Em segundo lugar (e consequência direta do primeiro processo), ao individualismo, já que a música vem sendo usada na exacerbação de um egoísmo quase que solipsista, incentivando o hiper erotismo, a valorização do vulgar e o culto à celebridade com aceitação quase incondicional de seus eventuais comportamentos tóxicos e destrutivos. Isto, para mim, fez com que a música se distanciasse do seu fator comunitário original e milenar, de cooperação e agregação social ainda presente em pequenas e isoladas comunidades, onde muitas vezes a música ainda é criada e apreciada por todos, em rituais, cerimônias, eventos e festividades. 

Cena do filme “Nunta Muta” (2008) (o casamento silencioso) baseado em história real, ocorrida na Romênia, quando Stalin morreu e todas as festividades foram terminantemente proibidas. 

 

No framework metafísico do mundo mental, tudo está conectado; todos se afetam e são afetados por tudo e por todos (conforme menciona o artigo científico “everything is entangled” ou seja, desde o big bang, “tudo está entrelaçado”). Nesta perspectiva, tudo é consciência e o que é chamado de inconsciente coletivo faz parte desse mundo mental cuja consciência ainda não foi ressignificada pela nossa mente (ou seja, que não passou pela janela cognitiva de nossa atenção). As sincronicidades, conforme definidas por Carl Jung, podem ser entendidas como padrões recorrentes do mundo mental. Desse modo, a morte poderia ser entendida como o cessar da dissociação da mente individual com a universal, e seres “mágicos”, como gênios e musas, talvez possam existir como dissociações imateriais e se expressar através de rituais, das artes e da música. Federico Fellini, um dos mais importantes diretores de cinema e criador do filme “Otto e mezzo” (a brilhante comédia autobiográfica e auto-referencialista; o filme que trata dissociadamente de sua própria concepção e desenvolvimento) dizia que o seu cinema era quase que totalmente improvisado; que não era ele quem criava seus filmes mas eram os filmes que se criavam através dele. Para que isso pudesse ocorrer, Fellini mencionou em entrevista que era fundamental que ele, como artista, se colocasse à disposição para que a manifestação de sua criação ocorresse; ou seja, disponível para sua misteriosa musa (que ele dizia ser como que alguém imaterial e desconhecido, mas que sempre esteve próximo dele).

Música e dança sempre estiveram juntas, especialmente quando a música é natural, ou seja, espontaneamente gerada por uma comunidade (ao invés de obra de um intelectual). Os músicos, quando tocam, também de certa forma dançam, em padrões de gestos espontâneos que, em grupo, parecem quase que uma espontânea, discreta porém inevitável coreografia. Isto intensifica a conexão entre todos participantes, sejam estes músicos, os que dançam ou aqueles que apenas assistem. Todos são fundamentais para a existência daquele momento especial de comunicação sonora expressiva, o que aponta para a essência da filosofia Ubuntu, das cirandas, das festas do mastro e de tantos outros rituais e festividades entrelaçados pela música; muitas vezes de origem tão antiga que se mesclam com a própria  origem da humanidade. Espero que um dia a sociedade possa resgatar em larga escala as filosofias e as tradições comunitárias metafísicas, não apenas para que a ciência e as artes avancem e prosperem além dos seus atuais dogmas, mas também para resgatar aquilo que fazia (ou finalmente fará) de nós humanos, pessoas mais humanas. 

 

Cena final do filme “Otto e mezzo” com a ciranda de todos os personagens, dançando sob a música “La passerella“, de Nino Rota.Otto e Mezzo Fellini (1963) Music by Nino Rota


Como citar este artigo:

José Fornari. “Musas, música e o mundo mental – parte 5”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. Data da publicação: 23 de outubro de 2022. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2022/10/23/musas-musica-e-o-mundo-mental-parte-5/

 

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