José Fornari (Tuti)

Pesquisador, carreira Pq-A do NICS / UNICAMP. Professor pleno da Coordenadoria de Pós-graduação do Instituto de Artes da UNICAMP. Pós-doc em Cognição Musical na Universidade Jyvaskyla, Finlândia. Visitante escolar no CCRMA / Stanford University. Doutorado e Mestrado na FEEC / UNICAMP. Formado em Música popular (piano) e Engenharia elétrica na UNICAMP.

Musicalidade, improvisação e disponibilidade – parte 3

José Fornari – fornari@unicamp.br
04 dezembro 2022

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Durante um bom tempo, no final do século passado, eu atuei como músico popular semi profissional, complementando minha renda com eventuais serviços musicais, acompanhando cantores, tocando em grupos e me apresentando solo. Uma coisa que sempre me chamava a atenção era o frequente sarcasmo, comum aos músicos de profissão, especialmente em relação às músicas que tinham que tocar. Muitos detestavam (ou pelo menos diziam detestar) o repertório que eram solicitados a incluir em eventos que os contratavam. Eu mesmo fui um deles; contagiado por esse comportamento que hoje considero contraproducente e até mesmo tóxico. Era comum músicos se reunirem, nos intervalos ou após suas apresentações, para ridicularizar as canções que emocionavam suas plateias. Acho que é por isso que músicos costumam ser bons em trocadilhos, pois este é uma forma velada de agressão; um sarcasmo fonético que distorce o contexto do que foi dito, e que por isso, penso eu, muitas vezes irrita quem o escuta, pois sinaliza desinteresse pela conversa, indo assim contra um princípio básico da comunicação expressiva sonora; a sinceridade. Conforme discutida anteriormente, a sinceridade da comunicação pode ser percebida nas inflexões não semânticas da prosódia da oralidade (o modo como uma frase é dita), na comunicação de adultos com crianças, especialmente na fase pré-verbal, e animais de estimação (que apresentam espontaneamente muitos elementos musicais, como regularidades rítmicas e tonais) e em especial na música. Demorou para eu finalmente aprender que esse comportamento é como um veneno mental, que lentamente intoxica quem o excreta.

Foi também nessa época que aprendi a diferença entre o que é ser “músico” e o que é ser “artista”. Muitas vezes confundida, inclusive pelos próprios músicos e artistas, o músico está para o artista assim como o cozinheiro está para o chef. Muitos chefs são exímios cozinheiros, mas nem todo cozinheiro tem condições ou mesmo ambições de se tornar um chef. O músico é o que reproduz aquilo que o artista produziu. No entanto, uma significativa parcela da arte, como um todo, seja na culinária ou na música é, mesmo que involuntariamente, agregada durante a reprodução, que no caso da música é a performance. Mesmo com o advento tecnológico da gravação sonora, intérpretes continuam e continuarão sendo fundamentais para a arte musical pois não apenas reproduzem, como um gravador, o que o compositor criou, mesmo porque a partitura não dá conta de conter todas as significações sonoras de uma peça musical. O intérprete agrega nuances técnicas e expressivas em sua performance e assim imbue nesta, elementos de sua personalidade e estado emocional. Para que esse processo seja otimizado, sinceridade na comunicação expressiva é fundamental, e um fator antagonista disso, a meu ver, é o sarcasmo. Eu entendo que a música como profissão pode muitas vezes até se tornar algo detestável (afinal eu estive lá) mas quanto mais o indivíduo reage negativamente aos eventuais desafios que lhe ocorrem, mais aumenta a inércia de suas ocorrências. Nesse sentido, e aqui indo além da esfera musical, o perdão acaba sendo uma estratégia proativa contra a reatividade basal do “olho por olho, dente por dente”. Conforme disse Einstein: “é impossível resolver um problema com a mesma atitude que o criou” (“problems cannot be solved with the same mind set that created them.”). Em minha experiência pessoal, muitos músicos artistas por mim admirados também tinham personalidades admiráveis. Sem citar nomes, cheguei a conhecer pessoalmente alguns grandes artistas da MPB, que também me impressionaram por terem uma modéstia quase que sacerdotal, ao mesmo tempo em que seus músicos acompanhadores conspicuamente esbanjavam as atitudes mais altivas e arrogantes.

Sendo a performance responsável por agregar elementos criativos à composição, no caso da improvisação, pode-se dizer que toda a criatividade converge para um único ponto focal; o da performance. A meu ver, seria como representar a musicalidade por uma elipse cujos dois focos são a “composição” e a “performance”, e que no caso da improvisação, é transformada para o seu caso especial, o círculo, com um único foco; o da “composição performática”.

Quanto mais formal é a música, mais a elipse de sua musicalidade tem seus focos distanciados. Quanto mais espontânea é a música, mais os focos se aproximam, até (quase) se encontrarem, no caso da improvisação. Digo “quase” pois a improvisação totalmente livre é um ideal inalcançável. Isto seria o equivalente da oralidade espontânea totalmente livre, onde até o significado das palavras fosse criado no momento de sua oralização, o que acabaria rompendo com a possibilidade de qualquer comunicação sonora de fato, uma vez que ninguém entenderia o que está sendo dito e sobraria apenas a sensação de algo insondável pela cognição dos ouvintes, ou seja, uma incógnita (que pelo seu absurdo, muitas vezes poderia até ser cômico).

 

Existem diversos tipos de improvisação musical. O mais conhecido é a improvisação jazzística tradicional, que ocorre na esfera melódica, sobre uma estrutura harmônica que se repete. Estas podem se estender para improvisações que envolvam também elementos harmônicos, contendo “reharmonizações” (mudanças da estrutura harmônica) ou mudanças rítmicas. Indo mais além, improvisações podem romper com a estrutura identitária do gênero musical, agregando ou transcendendo seus elementos estruturais e assim se libertando de seus contextos musicais fundacionais, algumas vezes referidos como “idiomáticos”. Assim surgiu o que se conhece por “Improvisação Livre”, corrente da música formal que se mescla à corrente libertária jazzista conhecida por “Free Jazz” ou mesmo com o estilo pop improvisacional do “Krautrock”. Na maioria dos casos, improvisações de todas as espécies ainda preservam o elemento da coletividade. São menos comuns os casos de improvisadores que se apresentam solo, pois o elemento coletivo é essencial para intensificar a experiência musical que muitas vezes pode atingir estágios de “entrainement” cuja sincronização coletiva pode levar indivíduos ou mesmo todo o grupo e audiência a experiências expressivas similares ao êxtase místico ou religioso.
No entanto, para que isto ocorra, é necessário o comprometimento de cada músico e do coletivo como um todo, em estabelecer uma atitude de disponibilidade para a ocorrência desse estado de transcendência do indivíduo para o coletivo, onde a arte se torna momentaneamente mais importante do que o artista; em suma, a “disposição”, conforme consta aqui no título, que foi apresentada anteriormente, e aqui reintroduzida, especialmente em contraste a comportamentos que considero antagônicos e tóxicos à sua manifestação, como o sarcasmo e o menosprezo ao processo artístico. Creio que essa atitude seja mais presente entre músicos populares (talvez devido ao repertório mais comercial e à maior interação da plateia) e muitas vezes é erroneamente identificada em famosos músicos do passado, conhecidos por terem personalidade difícil, como foi o caso de Miles Davis, mas que, pelo menos para mim, tinha evidente reverência pela sua musicalidade, disposição pelo fazer artístico e disponibilidade para a sua manifestação. Música, como atividade e profissão, é um campo bastante competitivo e leva muitos artistas a enfrentarem sérios problemas psicológicos e emocionais, seja pela pressão das apresentações, pelo julgamento próprio, da audiência e de colegas. Assim, a atitude de dissociar a individualidade da criação artística é uma eficaz estratégia para preservar a saúde mental do artista e desse modo promover um ambiente mental adequado para a disponibilidade necessária à manifestação de uma performance eventualmente sensacional. Para isso, é necessário que o artista muitas vezes abandone momentaneamente o seu ego e corra o risco de se arriscar, até mesmo ser ridicularizado ou humilhado (o que deixa de ser humilhação se o ego do artista não estiver em primeiro plano). Neste contexto, um dos exemplos mais interessantes que conheço, de atitude adequada para a improvisação musical seminal, foi a do famoso compositor John Cage, em 1960, quando participou de um programa de auditório para apresentar uma de suas composições experimentais (Water Walk, no programa “I’ve got a secret”). Cage mostra uma atitude leve, sincera, quase infantil, ao mesmo tempo que compenetrada e focada em sua apresentação, atitude esta que me soa destituída de qualquer sarcasmo; apenas humildemente presente e disponível para que algo de artisticamente mágico lá ocorresse, através de sua musicalidade.

 

Importante: As opiniões aqui apresentadas são única e exclusivamente do autor do artigo, no momento de sua escrita e assim não representam a opinião formal institucional ou de qualquer grupo cujo autor pertença.


Como citar este artigo:
José Fornari. “Musicalidade, improvisação e disponibilidade – parte 3”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. Data da publicação: 04 de dezembro de 2022. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2022/12/04/musicalidade-improvisacao-e-disponibilidade-parte-3/