José Fornari (Tuti)

Pesquisador, carreira Pq-A do NICS / UNICAMP. Professor pleno da Coordenadoria de Pós-graduação do Instituto de Artes da UNICAMP. Pós-doc em Cognição Musical na Universidade Jyvaskyla, Finlândia. Visitante escolar no CCRMA / Stanford University. Doutorado e Mestrado na FEEC / UNICAMP. Formado em Música popular (piano) e Engenharia elétrica na UNICAMP.

Som e sabor – parte 2

José Fornari – fornari@unicamp.br

07 novembro 2022

 

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Do mesmo modo que existem casos de CBS (Charles Bonnet Syndrome; um tipo bastante intenso de alucinação visual, constituído de formas complexas e geométricas), que algumas vezes são também acompanhados de alucinações auditivas, existem estudos em alucinações envolvendo e integrando múltiplos sentidos, como alucinações visuais, auditivas, tácteis e olfativas. Os sentidos não são vias únicas de coleta de dados externos para o encéfalo. Além dos nervos aferentes (que levam informação dos sentidos para o sistema nervoso) também existem nervos eferentes (que fazem o caminho oposto, do sistema nervoso para os órgãos sensoriais) e cumprem a função de regular, adequar, “sintonizar” um dado sentido para que este fique momentaneamente mais (ou menos) sensível uma específica característica de sua percepção. Por exemplo, quando vemos uma porta arrastada pelo vento, prestes a bater com violência contra o batente (especialmente quando não podemos evitar o impacto iminente), sentimos a pequena musculatura tensora em nossos tímpanos involuntariamente se contraindo a fim de preparar a audição para o forte impacto sonoro. Na membrana basilar dentro da cóclea (onde ocorre a conversão do sinal acústico em sinal elétrico sonoro) existem junto com as células ciliadas aferentes (inner hair cells, as que captam o som), células eferentes (outer hair cells)  que dinamicamente sintonizam a membrana basilar tornando-a mais ou menos sensível a determinadas componentes sonoras. Em outras palavras, a nossa audição é dinamicamente sintonizada para perceber ou ignorar determinados aspectos sonoros baseados em informação de outros sentidos ou de nossa memória e especialmente da nossa atenção.

Esta é a base de uma área de pesquisa chamada “percepção crossmodal” que estuda a integração holística dos dados coletados pelos nossos sentidos na formação de nossa percepção. Neste viés, em maior ou menor grau, nossas percepções sensoriais sempre influenciam e são influenciadas por outros sentidos. Existe apenas uma percepção ocorrendo em nosso estado de vigília, constantemente mediada pela atenção, que se vale de todas as vias sensoriais e de nossa experiência anterior (memória) para compreendermos e navegarmos na realidade. Charles Spence, um professor em psicologia experimental da Universidade de Oxford, é um dos pesquisadores mais atuantes na área de percepção crossmodal, e em particular, na relação entre som e sabor (sonic seasoning).  

Spence explica que o ato de se alimentar vai muito além da simples nutrição. O prazer envolvido em beber e comer faz da gastronomia uma área de grande interesse social e desenvolvimento empresarial. Beber e comer transcendem questões quantitativas do conteúdo nutritivo e se arvoram no qualia da satisfação, do prazer envolvido e até a insatisfação recorrente dos excessos, com seus inevitáveis resultados deletérios, indo desde a desnutrição de comer “errado” (por exemplo, alimentos hiper processados, desenvolvidos para atiçar a gula ao mesmo tempo que sejam baratos, o que os torna via de regra carentes em nutrientes essenciais) levando à doenças, compulsões, vícios e obesidade. A mediação crossmodal como forma de ajuste gastronômico parece ser uma excelente ideia a ser explorada cientificamente, tanto no aspecto de satisfação física quanto mental. Sabe-se, por exemplo, de longa data que perfumes podem alterar o sabor que sentimos ao consumir alimentos, tanto que existe um certo código ético na culinária de alto nível que recomenda não ir a restaurantes usando perfume em excesso. O mesmo ocorre para outros sentidos. É difícil apreciar uma refeição gastronomicamente perfeita num ambiente agitado, com poluição visual e especialmente sonora.  De fato, existem pesquisas de longa data (como Holt-Hansen, 1968, Rudmin and Cappelli, 1983, entre muitos outros) que estudaram as relações sinestésicas entre propriedades sonoras (como pitch e timbre), ou musicais, (como ritmo e harmonia) na percepção de sabor do ouvinte em aspectos específicos do paladar, como a sensação de doce, amargo, salgado (Höchenberger and Ohla, 2019), ou mesmo texturais, como a cremosidade (Reinoso Carvalho et al., 2017). Um resultado interessante mencionado no artigo de Spence e colegas, sobre estudos da influência de estímulos sonoros e musicais sobre alimentos específicos (entre estes: café, chocolate, cerveja, vinho) é o constatação de que estímulos sonoros agudos potencializam a sensação de doçura (como em chocolates), enquanto que estímulos sonoros graves, potencializam a sensação de amargo (como em cafés ou cervejas). Felipe Carvalho, um dos colegas de Charles Spence, com quem tem publicado frequentemente, vem ativamente colaborando nesta área de pesquisa, com projetos como “The Sound of Chocolate“, de 2017, que organizou repertórios musicais específicos para serem escutados durante o consumo de diferentes tipos de chocolates belgas.

Apesar disso, em 2014, o crítico culinário Josh Ozersky escreveu um artigo criticando a junção de música e menu, uma frente de experimentação amplamente defendida e cultivada por outras personalidades da culinária, como Caroline Hobkinson, que se define como “artista culinária e antropóloga”. A meu ver, o ponto de maior relevância, que me parece de certa forma relegado nesses estudos sobre música e menu (e consequente combustível para debates acalorados sobre sua verdadeira eficácia ou mera especulação hipster) é levar em consideração o fato inconteste de que música é um processo social e como tal fortemente dependente da enculturação do ouvinte. Enquanto estudos demonstram quantitativamente a influência no paladar de estímulos sonoros desprovidos de contexto (como ondas senoidais, timbres, padrões rítmicos, etc), a utilização de estímulos musicais (ou seja, fortemente contextualizados a um gosto musical) torna esta frente de pesquisa passível de ser aclamada por personalidades artísticas, como Hobkinson, ao mesmo tempo que execradas por outras personalidades importantes da gastronomia, como foi Ozersky. Música é altamente dependente do gosto do ouvinte e não se pode garantir que um repertório musical será ubiquamente apreciado por todo e qualquer ouvinte (na verdade, é comum que a música seja um fator não agremiador mas polarizador de gostos e opiniões, em grupos de ideologias e interesses opostas). A meu ver, a pesquisa em “som e sabor” fará maiores e melhores avanços se esta seguir numa frente prioritariamente baseada em “paisagens sonoras” compostas por padrões totalmente (ou o máximo possível) desprovidos de contexto para a maioria dos ouvintes; onde as grandezas psicoacústicas não sejam entrelaçadas com fatores psicológicos contextuais de natureza expressiva e sociocultural de cada ouvinte (o que é um dos mais importantes aspectos etnográficos da música). Neste sentido, a noção de objeto sonoro e escuta reduzida de Pierre Schaeffer  pode quem sabe ser um palatável aliado ao sonic seasoning, dando a esta frente de pesquisa um novo e majestoso sabor.

 


Como citar este artigo:

José Fornari. “Som e sabor – parte 2”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. Data da publicação: 06 de novembro de 2022. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2022/11/07/som-e-sabor-parte-2/