Musas, música e o mundo mental – parte 4

José Fornari – fornari@unicamp.br

16 outubro 2022

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Musas, gênios, anjos e demônios são alguns dos diversos termos utilizados desde a antiguidade para se referir a supostos seres imateriais, metafísicos, que eventualmente (e inesperadamente) interagem com o plano físico, em especial, com pessoas intuitivas e criativas, como escritores e músicos. O termo “jinn” vem da mitologia árabe pré-islâmica e é referente a um tipo de entidade sobrenatural invisível, habitante de um mundo imaterial, com poderes sobrenaturais os quais pode usar tanto para o bem quanto para o mal (ajudando ou atrapalhando alguém). Este termo foi posteriormente traduzido para o Latim como “genius“, de onde vem a palavra “gênio”, a qual foi incorporada na mitologia romana como um espírito guardião, muitas vezes um mensageiro divino, similar ao conceito de anjo da guarda. Já no Grego, tais seres imateriais eram chamados de “daemon” (da mesma raiz de “demonstrar”, ou seja, de se manifestar) e de onde surgiu a palavra “demônio”. As musas eram entidades imateriais, porém especificamente relacionadas com o processo criativo, tanto nas ciências quanto nas artes, que inspiravam tanto as descobertas científicas quanto as obras artísticas e as composições musicais.

Na mitologia grega, originalmente havia apenas três musas: Mneme (a musa da memória), Melete (a musa do pensamento ou da meditação) e Aoede (a musa da expressão, da voz, da palavra e da canção). Juntas, estas musas, a meu ver, simbolizam as três características mais importantes da essência humana: a memória (por exemplo, “museu” significa “casa das musas”); o pensamento (ou meditação, do Latim “meditatio“, relacionada a “meditar”, “mente” e “medium”) e a expressão (como no caso do já mencionado termo “música” que vem de “arte das musas”). Posteriormente foram agregadas outras musas na cultura da Grécia antiga, constituindo as nove musas do Olimpo: Calliope (musa da retórica), Clio (musa da história), Urania (musa da astronomia), Polímnia (musa do sagrado), Erato (musa do erotismo), Terpsícore (musa da dança), Melpomene (musa do canto), Euterpe (musa da poesia) e Thalia (musa da comédia). As suas atribuições são muitas vezes ambíguas e variaram ao longo das épocas, o que para mim representa a dinâmica da sociedade e a mudança de seus interesses ao longo dos séculos, o que implicava na mudança do foco de ação de suas musas.

Com o estabelecimento do paradigma fisicalista no final da idade média e início do renascimento, musas e demais seres imateriais foram relegados ao plano do imaginário, do fantástico e por fim do fantasioso; não havendo mais espaço ou possibilidade para a sociedade crer na existência de musas ou gênios. Estes são atualmente considerados apenas mitos, no máximo arquétipos de um inconsciente coletivo junguiano. Já num paradigma idealista (o que chamo aqui de “mundo mental”), o pensamento pode vir a determinar ou a indicar a existência de dissociações (alters) do mundo mental, tais como somos nós, os demais seres vivos, e também como poderiam vir a ser estes antigos seres sobrenaturais, referidos por todas as antigas culturas humanas, desde os tempos mais remotos. Um interessante exemplo nacional encontra-se nas cartas de padre Anchieta, de 1560. Neste documento histórico, Anchieta, um sacerdote da igreja católica, relata casos comprovados, tanto por nativos quanto por outros colegas sacerdotes, da existência do que o jesuíta chama de “demônios da floresta”, como o curupira e o baetatá (boitatá), os quais Anchieta relata não ter dúvidas de suas existências comprovadas por frequentes ações (muitas vezes deletérias). Apesar de sensivelmente diminuída, ao longo dos séculos, a crença em seres imateriais de um certo modo nunca abandonou por completo qualquer comunidade ou cultura, por maior que tenha sido seu avanço científico e tecnológico ou opressão ideológica. O desconhecido sempre esteve logo após o horizonte fronteiriço que a nossa razão alcança; e no último século, conforme já mencionado, a própria expansão fisicalista das fronteiras científicas, tanto nos limites da física quântica quanto da neurociência, tem apontado cada vez mais para mistérios metafísicos de um mundo mental. No entanto, mesmo dentro do paradigma estritamente fisicalista, a contribuição inspiracional das musas ocorre no simples ato de nelas crer, como advogou Gilbert em seu TED Talk, mesmo que de modo informal ou até mesmo jocoso. A frase castelhana “No creo en brujas, pero que las hay, las hay” (eu não acredito em bruxas, mas sei que elas existem) reflete à necessidade do mistério no pensamento humano, especialmente o criativo, algo como as estrelas no céu, que mais inspiram do que orientam, e que são muitas vezes cobertas pela neblina do reducionismo fisicalista. 

Durante a gravação do álbum “Carioca”, de Chico Buarque, em 2006, foi realizado o documentário Desconstrução (diversos clipes deste documentário podem ser assistidos aqui) incluindo o famigerado clipe sobre Ahmed, de quem Chico diz comprar canções (entre outros fornecedores). Este vídeo foi amplamente divulgado e utilizado como material para fake news de seus opositores ideológicos, que tentaram através deste, desmoralizar o artista e a sua obra; mas que foi posteriormente (e facilmente) desbancado (afinal, foi uma óbvia brincadeira do artista; filmada e divulgada com o seu consentimento). Apesar disso, me parece que, num certo sentido, mais metafísico, há um fundo de verdade nessa brincadeira que pode ser percebido na sua fala e expressão, especialmente ao revelar um pouco de suas máscaras poéticas, como gênios criativos, caprichosos e inconstantes, que inspiram sua obra ímpar e a esta aferem a tão conhecida autenticidade, a grande expressividade e a assombrosa profundidade de suas canções. Não tenho dúvidas de que Chico Buarque é de fato o autor das canções que assina; que ele não as compra de “fornecedores” e que este vídeo (abaixo) seja uma brincadeira que o próprio artista fez. Porém, todo artista, mesmo sem querer, se expõe em sua própria obra, e como dizem (e aqui num contexto tanto metafórico quanto metafísico) “todo boato tem seu fundo de verdade”. 

continua …

 


Como citar este artigo:

José Fornari. “Musas, música e o mundo mental – parte 4”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. Data da publicação: 23 de outubro de 2022. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2022/10/16/musas-musica-e-o-mundo-mental-parte-4/