José Fornari – fornari@unicamp.br
13 novembro 2022
Ainda é comum professores de música comentarem que determinados alunos têm mais “musicalidade” do que outros, ou fãs dizendo que um certo músico que eles apreciam, mesmo não tendo muita técnica, tem uma musicalidade incrível. Se logo após você escutar uma dessas frases, você perguntar a quem disse qual é o significado de “musicalidade”, provavelmente esta pessoa não será capaz de responder, pelo menos não de modo formal, e que não seja circular, por exemplo usando palavras similares ou sinônimos (como: “musicalidade” é a capacidade expressiva do músico, é relacionado ao seu talento, é a energia da performance, etc.). Na verdade, esta é de fato uma pergunta capciosa pois existe uma infinidade de conceitos óbvios e ao mesmo tempo inefáveis, por exemplo, o que é beleza, ou o que é justiça, o que é bom ou mau. Mesmo o que é música, e se música é ou não é uma linguagem. As pessoas, ao mesmo tempo que têm opiniões fortíssimas sobre tais assuntos, normalmente são incapazes de definir formalmente os termos que defendem ou atacam (e por “formalmente” eu quero dizer, de modo claro, coerente, conciso, sem redundâncias e evitando falácias lógicas). Para mim, um dos papéis mais interessantes da musicologia sistemática (o estudo científico da música) é tentar definir formalmente termos e conceitos de natureza musical, artística, expressiva e portanto não semânticos, como são os elementos da linguagem (com seus sujeitos, adjetivos, verbos e afins).
Musicalidade é amplamente estudada ao mesmo tempo que pouco definida. Segundo Susan Hallam, autora do livro “Musicality” (da Oxford University Press, 2006), o termo é usado de modo muito genérico, referindo tanto a pessoas muito talentosas em música (seja em composição, performance ou análise) como também para se referir a pessoas que gostam muito de música. Eu conheci pessoas que amavam música mas que não tinham qualquer talento musical (pelo menos aparentemente ou auto declarado). Também conheci excelentes músicos que diziam gostar pouco ou quase nada de música, tratando a arte das musas mais como um trabalho, um fardo de sua profissão, ao invés de uma satisfação. Existem também casos na neurociência de pessoas desprovidas de capacidade ou gosto musical; disturbio este chamado de “amusia“; uma condição hereditária porém não necessariamente genética (não foram encontrados “genes da amusia” porém esta costuma ocorrer mais frequentemente dentro da mesma família) que ocorre em cerca de 4% da população. indivíduos com amusia são incapazes de cantar ou assobiar uma melodia simples, como “parabéns a você” de modo que outros a reconheçam. Tim Falconer é um desses casos, que relata gostar de música, porém antes de ser diagnosticado clinicamente com amusia congênita pela pesquisadora e neurocientista Isabelle Peretz, não entendia porque todos ficavam apavorados quando ele começava a cantar. Segundo Peretz, Falconer é uma pessoa muito inteligente, espirituosa, articulada, e que inclusive escreveu um livro bastante engraçado, sobre o seu curioso caso de “cantor ruim” (Bad Singer).
Amusia algumas vezes é também chamada de “surdez tonal” (tone deafness) e é interessante notar que de fato, este disturbio realmente parece afetar apenas a capacidade do paciente em entender, identificar e produzir tonalidade (pitch). Porém sua percepção rítmica parece não ser afetada pela amusia. No vídeo acima mencionado, Peretz mostra uma gravação de Falconer cantando “happy birthday” onde é possível perceber como a divisão rítmica da melodia está correta, enquanto que as notas estão bastante alteradas (especialmente quando Falconer canta a melodia substituindo a letra da canção por “lá-lá-lá”). A musicalidade, no sentido de apreciação musical, como se nota em pessoas com amusia, transcende a capacidade de produção melódica. Na verdade, a musicalidade transcende até mesmo a capacidade de escutar música. Existem muitos estudos e exemplos de surdos que apreciam e produzem música. A comunidade surda participa de concertos e muitos shows de música pop (ou seja, contendo canções, que são músicas com letra) frequentemente traduzidos durante a performance por intérpretes de lingua de sinais. Existem inclusive músicos famosos que são surdos, como a percussionista Evelyn Glennie, ou o artista de hip-hop Matt Maxey. É importante destacar que a comunidade surda é muito eclética em termos de sensibilidade auditiva. Existem nela desde surdos com uma leve perda auditiva (que os incapacita, por exemplo, a acompanhar uma conversa ou escutar uma TV em volume normal) até pessoas profundamente surdas. Os surdos totais são raros; normalmente são os que realizaram o procedimento cirúrgico de implante coclear, que fisicamente interrompe a condução acústica para a cóclea tornando-os, na ausência do sensor eletrónico, totalmente incapazes de escutar qualquer estímulo sonoro. No entanto, som é vibração e como tal, é também percebido pelo tato ou na vibração de nossas vísceras (especialmente no caso de sons bastante graves e intensos), estímulos estes que os surdos especialmente profundos e congênitos, pelo processo cerebral de neuroplasticidade funcional, se tornam particularmente sensíveis. O fato é que musicalidade transcende nossa capacidade de escutar ou de produzir música pois está fortemente embasada numa necessidade humana; a necessidade de se comunicar expressivamente, o que antecede e ampara a linguagem, sendo desta a intenção expressiva e subjetiva por trás de sua expressão semântica e objetiva. Desse modo, existem infinitas estéticas musicais, as quais muitas vezes (ou quase sempre) se antagonizam, como é comum a geração anterior detestar a música da geração seguinte, e vice versa. A musicalidade também expressa identidade cultural; processos de enculturação que criam estéticas sonoras podem não ser entendidos por ouvintes de fora daquele contexto comunitário. Por exemplo, nas cantigas de capoeira, para mim existe a evidência deste fenômeno; um interessante exemplo de identidade cultural sonora na inflexão tonal das notas prolongadas nos finais das frases, que tendem a se deslocar ligeiramente acima da nota correspondente da escala musical. Isso que parece uma desafinação para mim é intencional (apesar de intuitiva) pois insere um significado expressivo sonoro dramático, de combate, uma musicalidade de tensão e expectativa que intensificam a expressividade geral de todo o espetáculo multimodal. Provavelmente isto foi incluído naturalmente, ao longo de gerações, sem que ninguém ao certo desse conta, mas que de fato funciona (tanto é que muitas gravações de estúdio, das cantigas de capoeira, com a voz do cantor perfeitamente afinada e bem processada, para mim perdem grande parte do mistério e da relevância dessa tradição cultural nacional, tão icônica e importante).
Importante: As opiniões aqui apresentadas são única e exclusivamente do autor do artigo, no momento de sua escrita e assim não representam a opinião formal institucional ou de qualquer grupo cujo autor pertença.
Como citar este artigo:
José Fornari. “Musicalidade, improvisação e disponibilidade – parte 1”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. Data da publicação: 13 de novembro de 2022. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2022/11/13/musicalidade-improvisacao-e-disponibilidade-parte-1/