José Fornari (Tuti) – 8 de janeiro de 2020
fornari @ unicamp . br
Esta semana eu li um blog engraçado, do Edson Aran, intitulado “Como destruir seu Réveillon”. O texto descreve os tradicionais percalços, tão conhecidos por todos aqueles que já se aventuraram a encarar uma passagem de ano na praia (digo isso do ponto de vista da classe média e baixa, pois os da elite com certeza desconhecem este fenômeno). Num ponto do texto, o autor fala sobre aquele fenômeno musical que ocorre também nas praias, onde atualmente sempre tem alguém tocando, a todo volume, 2 gêneros musicais:sertanejo universitário e/ou funk carioca. Aran arremata dizendo: “você jamais — nunca, ever, em hipótese alguma — verá alguém ouvindo Miles Davis. É só funk e sertanejo”. Isso me pos a pensar num fenômeno que considero pouco estudado pela psicologia musical mas que é muito significativo; o efeito afetivo que evoca no ouvinte a necessidade de comunicar aos outros a música que aprecia. Em maior ou menor escala todo ouvinte sente isso e sabe que, ao escutar uma música de sua predileção, para que a sua satisfação musical seja completa, não basta escutar sozinho. Os outros ao seu redor tem que escutar junto; expontânea ou compulsoriamente.
Reveillon é um aportuguesamento da expressão francesa “Le Réveillon” que se refere ao jantar festivo servido após a meia noite do último dia do ano. Esta expressão se origina da palavra “réveiller” que significa “despertar”. Já a palavra “rebelião” vem do Latim “rebellis” que significa “desobedecer a ordem”, resistir à imposição de um determinado controle; diferente de “revolução”, que se refere a “revolver”, a “mudar”. Em suma, o rebelde não é necessariamente um revolucionário. Este quer apenas desobedecer, resistir à imposição de uma regra ou lei, seja esta ímpia ou até mesmo coerente e justa. Música tem uma grande intersecção com rebeldia e revolta. Isso ocorre porque ambas dependem da indignação individual ou social para que ocorram. A indignação por sua vez, depende da evocação e da manutenção de certas emoções (como dito antes, de “emovere”, que significa “instigar o movimento”). Se a música é feita do som organizado,a sua expressão e comunicação se dá pela insurgência programada de emoções nos ouvintes. Música só existe de fato quando há comunicação de emoção, seja meramente pela constatação de sua intenção emotiva, ou pela persuasão da mente do ouvinte a evoca-la. Fora isso, há apenas o silêncio (quando a presença da música não é percebida), ou o ruído (quando sua presença não é consentida).
Nas festividades populares, como o Reveillon, o agrupamento entre pessoas amigas e familiares provoca nos participantes a agradável sensação de pertencimento. Sentimos naquele momento como que fazendo parte daquele grupo de pessoas. Porém, nenhuma coesão é perfeita. Existem sempre sentimentos infiltrantes, como ervas daninhas que espalham ramas de indiferenças, rancores, remorsos, despeitos, intrigas, invejas e outros sentimentos de exclusão e separação, que muitas vezes se infiltram nas mentes dos membros do grupo, e assim conspiram contra a sua coesão e união. Para amenizar isso usa-se a música. Falei anteriormente da propriedade conhecida como “musical entrainment” que é o fenômeno interpessoal que faz com que grupos se formem e compactuem dos mesmos objetivos através da música. Sabe-se que desde a antiguidade tem-se registro da presença de música em atividades sociais fundamentais, como a guerra, as colheitas, os funerais, os casamentos e as festas. Alguns arqueólogos, como Steven Mithen, que estudaram as origens das música, argumentam que sua origem antecede a própria humanidade, onde os hominídeos de onde descendemos, já apresentavamcapacidade cerebral desenvolvida, com evocação de emoções parecidas com as nossas, porém ainda sem a capacidade oral plenamente desenvolvida para propiciar a sua expressão através de uma linguagem. Assim, estes tinham que se comunicar com outros de seu grupo por “utterances”, ou seja, um tipo de protolinguagem formada de onomatopeia não intencional onde a oralidade se aproximava sonoramente do objeto, ação ou situação que se tentava descrever. Nota-se que em todos os idiomas humanos, uma repreensão é sempre feita com oralidade áspera; um cumprimento ou cordialidade são demonstrados através de oralidades suaves e tonais. Adultos naturalmente se comunicam com bebês, ainda em fase pré verbal, com oralidades tipicamente musicais, ou seja, com notada regularidade rítmica e tonal.
A música vem assim cumprindo um papel fundamental em promover o “entrainment” social, palavra esta que curiosamente pode também ser traduzida como “entretenimento”, novamente referenciando a ação de coesão social que as artes e especialmente a música cumprem. Isto ocorre através do estabelecimento de sentimentos de confiança entre os membros do grupo (como um bebê em fase pré-verbal, que confia no adulto que se comunica com ele por oralidades pseudo musicais) e da diminuição da sensação de individualidade de cada membro do grupo, em detrimento à manutenção de sua identidade coletiva (o que permite, por exemplo que, em guerras, ou caçadas, entre diversas outras atividades que envolviam risco de morte dos membros de um grupo, o grupo se mantivesse coeso e operante, apesar de eventualmente perder alguns de seus membros, muitas vezes mutilados na frente dos outros membros; mesmo assim a união entre os membros remanescentes era mantida, ou até talvez intensificada). A música funciona como uma cola que une as partes desse todo; um mecanismo psicológico de persuasão à formação e à manutenção de um grupo através da fusão dos seus membros pela diminuição momentânea de sua sensação de individualidade e aumento de sua confiança no grupo.
A rebelião musical típica que vemos no Reveillon mostra este fenômeno em ação. Grupos se formam e defendem sua identidade através da música. Não basta ao grupo escutar a música que os define e une; é também necessário irradiar esta mensagem emocional para fora das fronteiras do grupo. Este é um processo inconsciente e majoritariamente emocional. Não é consciente e portanto racional. Desse modo, os membros desses grupos contemporâneos agem impulsionados por numa programação milenar, que antecede suas (muitas vezes insípidas) racionalidades. A rebelião é a resistência; resistência à extinção. Como talvez dissesse algum partidário de Maturama e Varela, o grupo apresenta características autopoiéticas. Resiste às influências externas que eventualmente promoveriam sua dissolução; e tenta expandir, promovendo a irradiação de sua identidade através da música que obriga todos ao redor a escutarem. Abaixar o volume do som é um atentado à própria sobrevivência do grupo. Não importa que sonoridades se mesclem, entre grupos próximos, criando um emaranhado cacofônico . Isto normalmente é relevado por todos os grupos. A pergunta final que tento responder aqui é “por que não se escuta Miles Davis, ou qualquer outra música mais requintada nessas circunstâncias?”. A minha conjectura é ]que existem 2 tipos de prazer musical, em nível sonoro, que eu chamo de: prazer vestibular e prazer coclear. O prazer vestibular, vem do sistema vestibular, estrutura intimamente ligada à cóclea mas que detecta movimentos corporais, como o equilíbrio, o deslocamento e a aceleração, nas 3 dimensões do espaço. Este também é estimulado por sons muito intensos (já que este sistema e a cóclea estão conectados, pertencentes à mesma estrutura óssea, chamada vestíbulo).
Já o prazer coclear vem da habilidade de esmiuçar, decompor, investigar e entender mesmo que parcialmente a complexidade que compõe uma estrutura harmônica elaborada, ou ainda mais sutil e intangível, a constituição de um timbre. Pra mim, existem ouvintes que sentem mais prazer sonoro no estímulo vestibular (advindo do pulso, da batida, da percussão, da intensidade sonora) enquanto que outros ouvintes sentem mais prazer no estímulo coclear (pela harmonia, cadências, constituição do timbre, etc.). O entretenimento musical que promove o entrainment parece vir muito mais do estímulo vestibular do que do coclear. O pulso fala mais alto ao convencimento, à persuasão, ao agrupamento, do que o acorde complexo, o timbre elaborado ou a cadência inusitada. O que sustenta autopoiéticamente un grupo, nos moldes dos primitivoshominídeos proto linguístas, através da amálgama musical, é a intensidade e o pulso. Este é mais emocional e assim mais persuasivo. O outro prazer, coclear, é mais complexo e refinado, é assim mais racional, especulativo e assim mais difícil de se persuadir, de se estabelecer e manter a permanência de um pertencimento à um grupo apenas por vias do entrainment musical. O pensamento dos membros do grupo deve ser unânime para que este sobreviva. No entanto, como diz a fatídica frase de Nelson Rodrigues, “toda unanimidade é burra”; onde eu acrescento, e só mesmo sendo burra é que esta pode se manter unânime.
Referências:
Durham University, Music & Science Lab. Musical Entrainment.https://musicscience.net/projects/timing/iemp/what-is-musical-entrainment/
Steven Mithen. “The Singing Neanderthals: The Origins of Music, Language, Mind and Body”. 2005.
MATURANA R., Humberto; VARELA, Francisco J.. Autopoiesis and cognition : the realization of the living. Dordrecht: D. Reidel Publishing Company, c1980. 141p. v.8 ISBN 9027710155 (enc.)
Como citar este artigo:
José Fornari. “Reveillon, Música e Rebelião”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 8 de janeiro de 2020. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2020/01/08/44/