Liberdade, criatividade e música

Parte 2

José Fornari (Tuti) – 24 de janeiro de 2020

fornari @ unicamp . br


No artigo anterior eu tratei do determinismo e da sua incompletude, tanto científica quanto artística, e assim também musical. Apesar de Einstein ter sido ferrenhamente determinista (como ele mesmo se intitulava, mencionado no artigo anterior), onde acreditava que tudo pode ser completamente explicado por uma equação matemática formal (determinística, ou seja, não probabilística), é também atribuída a ele a seguinte frase: “Imagination is more important than knowledge. Knowledge is limited. Imagination encircles the world“. Isto parece paradoxal, pelo menos a princípio. Einstein considerava a imaginação, ou seja, a criatividade (algo caótico, que talvez só possa ser parcialmente explicado por um modelo probabilístico), como um atributo da mente humana, que é mais importante do que o seu conhecimento formal (determinístico). Por exemplo, um livro registra conhecimento, porém não o imagina nem o utiliza. Sócrates, o filósofo mais importante de toda a história do pensamento ocidental, nunca escreveu um livro, ou mesmo registrou seus pensamentos filosóficos de qualquer forma permanente. Diz-se que Sócrates não confiava no pensamento registrado na forma de escrita. Ele afirmava que a prática da leitura traria o esquecimento à alma (consciência) do leitor pois este passaria a acreditar mais nas palavras e nas frases do que em sua interpretação daquele conhecimento, que equivaleria à diferença entre memorizar e lembrar. Por outro lado, só sabemos destes e outros brilhantes pensamentos do passado graças ao seu registro dado pela escrita e acesso pela leitura. Acho que a diferença está em saber interpretar os fatos e utilizar adequadamente os recursos; saber ler nas entrelinhas, não somente o que está escrito mas porque foi escrito. No processo de ponderar, rememorar e sintetizar, de modo a destilar da informação lida apenas aquilo que de fato interessa, entra em cena a criatividade.

Apesar de sua estrondosa carreira científica, sendo considerado por muitos como o físico mais importante de toda a história da humanidade (segundo uma pesquisa realizada pela Physics World magazine, em 1999) Einstein era mais conhecido pela sua criatividade do que pelo seu conhecimento. Einstein era também um violinista muito competente, capaz de executar peças clássicas de significativa beleza e complexidade.

Apesar da criatividade ser um processo caótico, no sentido de que ninguém, nem mesmo o que cria, sabe se e quando um resultado esperado será obtido, esta necessita da ordem, de regras e de estruturas para que o processo criativo possa se sustentar. Talvez a paixão pelo determinismo de Einstein seja similar à sua paixão pela música clássica, onde a estrutura musical é rígida. Nao há improvisações. As notas que compõem uma peça musical erudita clássica são imutáveis e perfeitamente dispostas numa forma de programação organizada ao longo do tempo, chamada de partitura, que através de símbolos da notação musical determina exatamente qual, quando e como cada nota deve ser executada pelo músico. No entanto, a execução verbatim de uma partitura (por exemplo, aquela realizada por um software musical, que executará qualquer peça musical sem erros, exatamente como foi escrita) é irremediavelmente enfadonha. A pequena, diminuta fresta de liberdade, quase que imperceptível, que está na fronteira entre a habilidade e a incompetência (de inserir ou tentar evitar o erro humano, na execução do instrumentista humano), é o que faz toda a diferença. Ao inserir variações de tempo, duração e intensidade nas notas que executa, o interprete humano compõe a sua interpretação, que pode ser desde medíocre até genial, mesmo que todas suas interpretações da mesma peça executem corretamente todas as notas de uma dada obra musical. Esta é a parte não escrita de uma partitura, que um software musical não consegue executar mas que permite ao músico humano interpretar uma peça musical e assim demonstrar sua criatividade ao executar uma obra musical formal (ou seja, determinística).

Eu sempre lembro de um episódio que ocorreu na época que eu cursava a faculdade de música popular (modalidade piano, na Unicamp). Na época eu resolvi também fazer algumas aulas de piano erudito, para aperfeiçoar a minha técnica e interpretação. Assim, treinei algumas peças do repertório clássico, e entre elas, uma que eu dediquei bastante tempo decorando e depurando, foi a sonata patética, de Beethoven.

Annie Fischer (interpretação muito melhor do que a melhor de minhas antigas interpretações)

Na época, me indicaram uma professora particular (esqueci o nome dela) que era considerada excelente pelos alunos do curso de piano erudito. Esta senhora vinha de São Paulo para Campinas uma vez por semana, para dar aulas particulares de piano da região. Marquei um horário e fui visita-la. Ela me recebeu. Era uma senhora com bastante idade, que já apresentava certa dificuldade de para caminhar, tinha mãos bem pequenas e aparentava para mim (na época, jovem, com muita energia e técnica pianística), de uma certa fragilidade preocupante. Ela me perguntou se eu poderia tocar alguma peça para ela me ouvir. Eu, mais do que depressa, me sentei ao piano e toquei as primeiras páginas da patética, que sabia tão bem. Ela me escutou com atenção. Depois me disse que estava muito bem, mas que ela teria interpretado de outra forma. Eu levantei do piano um pouco intrigado. Ela se sentou. Enquanto ela se ajeitava, eu tentava imaginar o que ela poderia fazer de diferente ou melhor do que eu havia feito ao tocar esta peça. Já estava preparado para ouvir uma versão titubeante, geriátrica, com bem menos técnica do que a minha, e depois disso ter que fingir algum interesse antes de desaparecer de lá para sempre. No entanto, quando ela tocou esta peça (e eram as mesma notas que eu havia acabado de tocar), eu fiquei chocado. Aquela peça parecia uma outra música, similar ao que eu havia realizado, no entanto; melhor, com mais profundidade, mais nuances, maior complexidade e nexo. Enfim, era uma interpretação obviamente muito mais bela do que a que eu havia realizado. Como eu disse acima, esqueci o nome dessa grande professora e pianista, mas creio que jamais esquecerei a maneira formidável como ela tocou e assim a certeza de como a interpretação é fundamental para a música.

Na minha opinião, criatividade é o nome que se dá ao processo que une método à imaginação. Estruturas são importantes para alicerçarem a construção daquilo que é novo, por isso a criatividade necessita do pensamento formal, determinista, para expressar o novo e exprimir o belo. A criatividade musical se baseia numa estrutura tripartida: 1) a criatividade do compositor, que se baseia no processo subjetivo de suas inferências abdutivas apoiadas pelos processos indutivos (de testar) e dedutivos (de aplicar) seu conhecimento musical, bem como das interrelações destes com sua época, gênero e interveniências socioculturais de sua comunidade; 2) a criatividade do interprete, que opera no nível subliminal de variação de tempo, duração e intensidade musical das notas que executa, para poder assim expressar novas leituras de uma mesma composição (algumas vezes sequer concebidas pelo próprio compositor que a criou); e 3) a criatividade do ouvinte, que escuta a obra e, baseado em sua memória e predileção pessoal e social, tece uma cadeia de expectativas musicais, antecipando eventos sonoros e, desse modo, sendo emocionalmente afetado pela sua teia de constatações e surpresas. É preciso uma certa restrição de opções, imposta pela estrutura formal de uma peça ou gênero musical, para que o interprete possa de fato ser livre para exercer a sua criatividade.

 

Referências:

Albert Einstein? Apocryphal? https://quoteinvestigator.com/2013/01/01/einstein-imagination/ 1929 October 26, The Saturday Evening Post, What Life Means to Einstein: An Interview by George Sylvester Viereck, Start Page 17, Quote Page 117, Column 1, Saturday Evening Post Society, Indianapolis, Indiana. (Verified on microfilm)

Socrates on the Forgetfulness that Comes with Writing https://newlearningonline.com/literacies/chapter-1/socrates-on-the-forgetfulness-that-comes-with-writing

Poll Reveals All-Star Physicists https://www.aps.org/publications/apsnews/200002/top10.cfm

 

 

Como citar este artigo:

José Fornari. “Liberdade, criatividade e música – parte 2”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 24 de janeiro de 2020. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2020/01/24/46/