José Fornari (Tuti) – 30 de janeiro de 2019
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O começo do século 20 DC foi marcado por grandes contrastes políticos e ideológicos que também influenciaram a estética musical. Desde o final do século 19 DC vinha-se percebendo o que alguns teóricos chamavam de “crise da tonalidade”, onde as regras de composição tonal não mais abarcavam todas as possibilidades e necessidades estéticas musicais. Compositores como Liszt já exploravam novas fronteiras, em composições fora dos domínios tonais, como a peça para piano “Bagatelle sans tonalité”, ou Richard Wagner, com trabalhos como a abertura de “Tristan und Isolde”, contendo os famosos acordes tonalmente dúbios, com a quarta, a sexta e a nona aumentadas, conhecidas como “Tristan chords” (acordes de Tristan).
O termo “atonalismo” foi cunhado pelo compositor e teórico Joseph Marx, em sua tese de doutorado sobre tonalidade, defendida em 1907. Este é conhecido como período Modernista, onde ocorreu uma revolução na estética das artes como um todo. Com relação aos teóricos musicais, tem-se, de um lado, os trabalhos de Heinrich Schenker (1868–1935), criador da análise schenkeriana para música tonal, e de outro lado, os trabalhos de Arnold Schoenberg (1874–1951), considerado o precursor do pós-tonalismo.
Tanto Schenker quanto Schoenberg eram compositores e teóricos de origem judaica que viveram no início do século 20 DC em Viena; um período de grande efervescência cultural, onde importantes figuras da história lá habitavam, tais como: Brahms, Mahler, Richard Strauss, Ludwig Wittgenstein, Sigmund Freud, Adolf Hitler, Leon Trotsky e Joseph Stalin, entre diversos outros.
A análise schenkeriana estuda a música através de gráficos que procuram descrever sua hierárquica estrutural composicional até que se consiga encontrar o que Schenker chamava de Ursatz; a sua “estrutura fundamental”. Isto, de certa forma, se aproxima dos trabalhos de Freud sobre o inconsciente humano, onde sugere que traços do comportamento de um indivíduo muitas vezes tem a sua origem, e assim são ocasionados, por processos do seu inconsciente, que o próprio indivíduo desconhece.
Schenker tinha uma visão hierárquica, tanto social quanto musical, afirmando que, via de regra, faltava “alma e gênio” às massas para entenderem as sutilezas que a sua análise musical ressaltava. Já Schoenberg tinha uma visão estética e social mais igualitária, achando que suas teorias e composições musicais no futuro seriam lugar comum a todos, entendidas e apreciadas por qualquer indivíduo.
Schoenberg é famoso por ter criado o Dodecafonismo, definido por ele mesmo como “um método de composição com as 12 notas [musicais] que estão relacionadas apenas umas às outras” (“method of composing with twelve tones which are related only with one another“). Neste contexto schoenbergiano, as notas não pertencem a uma estrutura hierárquica tonal. Estas tem como que “direitos iguais” dentro de cada série que constitui a composição dodecafonista.
Schoenberg apresentou o conceito de “Grundgestalt”; a “forma básica” da composição, que é constituída de “motifs” (constituídos de pelo menos um intervalo de 2 notas musicais, contendo informação rítmica) e que constitui, através de suas repetições com variações, a superestrutura da peça musical, que ele chama de “tema”. Em termos cognitivos, nota-se que a abordagem sistemática schenkeriana obedece uma ordenação “bottom-up” (ou seja, da estrutura fundamental para a obra completa) enquanto que a abordagem schoenbergiana obedece uma estrutura “top-down”(da inteira forma de uma peça musical até os seus motifs constituintes). [1,2].
A onda iconoclasta modernista avançou além dos limites estéticos musicais, perpassando da técnica musical (o que fazer) à tecnologia de sua geração (com o que fazer). Em paralelo, o surgimento e o avanço da tecnologia eletrônica trouxe novas possibilidades de exploração e manipulação musical que permitiram cruzar uma fronteira até então intrasponível; a da manipulação da menor estrutura musical, até então intangível; o timbre musical.
Neste sentido, destacam-se os trabalhos pioneiros do compositor Edgard Varèse (1883–1965). Varèse foi inicialmente influenciado pela música tradicional, fortemente embasada no tonalismo, como a música medieval e renascentista, bem como pelos trabalhos modais dos compositores: Erik Satie, Richard Strauss e Claude Debussy. Em seguida, Varèse se envolveu com os primeiros processos composicionais de música eletrônica, como o Theremin, a criação de Léon Therem, inventor deste equipamento que é considerado como sendo o primeiro instrumento musical eletrônico. Varèse tinha formação em ciência e engenharia, o que facilitou o seu entendimento e utilização das tecnologias eletrônicas que traziam novas possibilidades para a composição musical.
Sua visão estética passou a incorporar o espaço, onde a música, para ele, podia ser encarada como sendo composta de “objetos sonoros flutuando no espaço” (“sound objects, floating in space“); um conceito que ele desenvolve e generaliza ao definir a música como a “arte do som organizado”.
Seu estilo composicional baseava-se na exploração de timbres e ritmos; que são os dois extremos de uma organização sonora separada pela fronteira auditiva que divide a percepção sonora em função do tempo e a percepção sonora em função da frequência. Apesar de sua pequena produção musical, Varèse chegou a influenciar figuras importantes da música, inclusive da música pop, como Frank Zappa. [3]
Também neste momento, no campo da filosofia e da estética musical, tem-se os trabalhos seminais de Theodor Adorno (1903-1969). Adorno era admirador das composições musicais de Schoenbeg, as quais ele encarava como sendo a música do futuro. Diferente de Varèse, Adorno parece não ter se impressionado muito pelos avanços da música eletrônica, a qual ele considerava avessa aos princípios musicais estabelecidos. Adorno dizia que antes seria necessário que tais compositores tivessem a tradição musical incorporada, para que posteriormente pudessem odiá-la, no sentido de assim querer e poder efetivamente modificá-la (“one must have tradition in oneself, to hate it properly”).
Adorno era um filósofo de tradição marxista e portanto via com reservas os avanços tecnológicos e sua constante dinâmica iconoclasta, o que ele encarava como um traço capitalista de controle social, ao impor uma constante e efêmera reinvenção estética a fim de criar novas necessidades consumistas. Adorno mescla uma teoria social à filosofia da música, colocando-a na posição de uma forma de arte autônoma, cuja tarefa deveria ser a de encontrar uma forma de expressão para as contradições de uma sociedade alienada.
A maneira que Adorno entende que a possibilidade de uma arte não semântica, como a música instrumental, exprimir questões da realidade factual é a de que esta deve ocorrer através da utilização da tradição musical continuada, que é assim representada pelo seu “material musical”.
Com o rompimento desta tradição através da utilização de recursos eletrônicos que permitem gerar novos materiais musicais fora dessa cadeia de tradição histórica, rompe-se esta sequência de significados, o que impede a possibilidade da utilização musical na expressão de questões sociais. Parece assim que a teoria de Adorno aponta para o fato de que, enquanto a libertação do tonalismo, pelas técnicas de composição atonais trouxeram novas possibilidades de expressão social moderna para a música, a libertação sonora do timbre, dada pela tecnologia eletrônica, impediu que isto se cumprisse devido ao seu rompimento com a tradição do que Adorno chama de material musical, ou seja, a gama de sucessivas e consequentes tradições de gêneros, orquestrações e timbres. [4]
No campo da análise e da educação musical, tem-se neste período os trabalhos de Carl Seashore (1866-1949) que se valeu de recursos tecnológicos para construir equipamentos a fim de testar a habilidade auditiva e musical, tanto de músicos como de não-músicos. Seashore afirmava que o talento musical pode ser cientificamente analisado e medido (“musical talent is subject to scientific analysis and can be measured“). Ele propunha que o talento musical é composto de diversas capacidades mentais hierarquicamente organizadas. Assim, se uma destas capacidades faltasse para um dado indivíduo (por exemplo, a percepção da relação entre alturas musicais) este não iriam conseguir desenvolver capacidades desta dependentes (por exemplo, a habilidade de diferenciar modos da escala diatônica). Seashore desenvolveu e utilizou desde testes quantitativos, como equipamentos para o teste da acuidade auditiva, até testes qualitativos, empregando questionários para analisar e medir o talento musical. [5]
Referências:
[1] Arndt, M. (2011). Schenker and Schoenberg on the Will of the Tone. Journal of Music Theory, 55(1), 89–146. doi:10.1215/00222909-1219205
[2] Hampson, Louise Barbara. “Schenker and Schoenberg: A critical comparison of two analytical methods, with reference to the first movement of Beethoven’s Appassionata Sonata.”. Master thesis. McMaster University. http://hdl.handle.net/11375/11393
[3] Robert Jackson Wood. “At the Threshold: Edgard Varese, Modernism, and the Experience of Modernity”. Graduate Center, City University of New York. 2014
[4] Floris Velema. From technique to technology. A reinterpretation of Adorno’s concept of musical material. 2007.http://www.icce.rug.nl/~soundscapes/VOLUME10/From_technique_to_technology.shtml
[5] THE BIOGRAPHICAL DICTIONARY OF IOWA. University of Iowa Press Digital Editions. Seashore, Carl Emil. http://uipress.lib.uiowa.edu/bdi/DetailsPage.aspx?id=332
Como citar este artigo:
José Fornari. “Musicologia e Modernismo”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 30 de janeiro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/01/30/5/