O eterno ciclo das quintas

José Fornari (Tuti) – 27 de março de 2019

fornari @ unicamp . br


A música, como a maioria das pessoas conhece, entende e aprecia, é baseada numa organização melódica que descende do “ciclo das quintas”. Mais do que uma convenção socialmente aceita ou psicologicamente amalgamada, o ciclo das quintas é um fenômeno físico tão presente e significativo na natureza acústica que moldou a evolução e o desenvolvimento tanto do sistema auditivo quanto do cérebro.

Representação do ciclo das quintas (em sentido horário) com as respectivas armaduras de claves. Fonte: https://www.adultpianolesson.com/learn-the-sharp-scales-in-the-circle-of-fifths-in-3-easy-steps/circle-keysigs/

Conforme mencionado anteriormente, Pitágoras, no século 6 AC, é considerado o organizador da escala musical. Esta é conhecida como escala pitagórica ou “justa”, e é fundamentada no ciclo das quintas; um fenômeno acústico observado de diversas formas e em diversas situações. A frequência de ressonância de uma coluna de ar dentro de um tubo, ou mesmo a frequência de ressonância gerada por uma corda retesada ao ser estimulada mecanicamente (por exemplo, percutida por uma baqueta, pinçada pelos dedos ou por palhetas ou roçada por um arco). Quando estimulados (tubo ou corda) estes normalmente emitem um som audível. A peculiaridade deste som em relação à outros, como por exemplo, o som de uma pedra caindo no chão, é que o som de uma corda retesada apresenta uma clareza tonal parecida com o som que a voz humana pode gerar; normalmente representados pelas vogais. Chamaremos aqui estes sons de “sons tonais” em contraste aos demais, que não possuem uma clareza suficiente de tonalidade, de “sons não tonais”.

Sinais periódicos e aperiódicos. Fonte: https://www.phon.ucl.ac.uk/courses/spsci/iss/week3.php

O que diferencia um som tonal de um som não tonal é a sua periodicidade. Havendo suficiente repetição de um padrão infinitesimal no tempo (abaixo de 0,05 segundos, ou seja, 50 ms), estabelece-se uma regularidade da repetição das variações de pressão acústica que a audição percebe como tonalidade. Esta é expressa na forma de uma “frequência fundamental” ou simplesmente chamada de “fundamental” do som gerado, que se mantêm suficientemente constante para ser percebida pela audição através do processo tonotópico da audição (artigo anterior). Ao observar as componentes em frequência de um som (artigo anterior), vemos que a fundamental é normalmente a frequência mais grave e muitas vezes a de maior amplitude. No caso de uma corda retesada, a fundamental equivale ao modo de vibração principal, ou seja, quando toda a corda vibra em um único modo. O mesmo serve para a vibração da coluna de ar num tubo. Isto pode ser observado através de um aparato conhecido como Tubo de Kundt (em homenagem à August Kundt). Este permite visualizar as ondas acústicas de forma longitudinal, como de fato ocorrem ao se propagarem na atmosfera, diferente do padrão de vibração transversal observado nas cordas retesadas. Estas, apesar de vibrarem transversalmente, também geram ondas acústicas longitudinais pela compressão e expansão do ar que o movimento da corda (e normalmente também de uma caixa de ressonância a esta acoplada, como é o caso do corpo de um violão) gera no ar ao seu redor.

Representação transversal das variações periódicas de pressão (acima) que compõem as ondas longitudinais acústicas (abaixo). Fonte: http://hyperphysics.phy-astr.gsu.edu/hbase/Sound/tralon.html

No caso de uma corda ou coluna de ar dentro de um tubo, este sistema poderá entrar em diferentes modos de vibração estacionária que irão gerar variações regulares de pressão acústica. Desse modo, vê-se que a corda pode vibrar em diferentes modos superiores cujas frequências são múltiplos inteiros da sua frequência fundamental. Pela característica física do comprimento da corda retesada (ou do tubo) o segundo modo de vibração terá necessariamente a metade do comprimento de onda do modo fundamental e assim terá o dobro da frequência da sua fundamental. Da mesma maneira, o terceiro modo de vibração terá que ter o triplo da frequência da fundamental, e assim por diante. Essas frequências dos modos de vibração são muitas vezes chamadas de “harmônicos”. Assim, num som tonal, o primeiro harmônico é sua fundamental e tem frequência F. O segundo harmônico tem frequência 2.F. O terceiro, 3.F e assim sucessivamente.

Modos estacionários de vibração e respectivos harmônicos do uma corda retesado. Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Overtone.jpg

Por um processo psicoacústico conhecido como “fusão tonal”, em condições normais todos estes harmônicos são percebidos pela audição como um único som tonal, ao invés de serem percebidos como sons independentes. O mesmo ocorre com o som das vogais na fala humana. A diferença entre, por exemplo, um “a” e um “i” está nas diferentes amplitudes destes harmônicos que correspondem a uma diferença de timbre suficientemente perceptível para que seja possível à maioria dos ouvintes reconhecer com facilidade as diferentes vogais, mesmo que estas sejam entoadas com a mesma fundamental (na mesma tonalidade, ou altura musical) e pela mesma pessoa.

As diferentes componentes em frequência que constituem as vogais. Fonte: http://hydrogen.physik.uni-wuppertal.de/hyperphysics/hyperphysics/hbase/music/vowel.html

Os harmônicos de um som tonal são assim organizados em frequências que obedecem a sequência: F, 2F, 3F, 4F, 5F. Estes foram usados por Pitágoras para organizar a primeira escala musical. Vale lembrar no entanto que muito antes de Pitágoras escalas musicais seguindo este padrão físico já eram utilizadas, só que de um modo mais intuitivo e menos formalizado. É atribuída a Pitágoras a formalização matemática para a criação da escala musical baseada no fenômeno acústico dos harmônicos. Ainda a relação entre harmônicos e as notas de uma escala musical tenha sido formalizada por Pitágoras no século 6AC, a relação entre as propriedades físicas da corda retesada e a sua tonalidade só foram formalizadas no século 18 DC, por Brook Taylor (1685-1731). Taylor estabeleceu a seguinte fórmula: Fn = (n/2L).(T/d)^(1/2) ; onde: Fn=frequência do n-ésimo harmônico, n=número do harmônico, L=comprimento da corda retesada (m), T=força que retesa a corda (N), d=densidade linear da corda (kg/m3).

Considerando uma corda retesada afinada na nota Lá (A4=440Hz) o seu harmônico fundamental terá a frequência de 440Hz. O seu segundo harmônico terá o dobro desta frequência, ou seja, 880Hz, que equivale à tonalidade de Lá, só que uma oitava acima; A5. O seu terceiro harmônico terá frequência fundamental de 3*440=1320Hz que equivale à nota E5, ou seja, o quinto grau da escala de Lá. Seguindo este raciocínio, o quarto harmônico terá frequência de 1760Hz que equivale à nota Lá (A6) e o quinto harmônico terá 2200Hz equivalendo aproximadamente (dependendo da escala musical utilizada) à nota C#7, o terceiro grau da escala de Lá. O sexto harmônico terá 2640Hz que é próximo de E7, novamente o quinto grau de Lá. Esta série de harmônicos, conhecida simplesmente por “série harmônica”, em teoria extende-se infinitamente, se distanciando das notas estabelecidas de todas as escalas musicais. A relação harmônica mais importante, utilizada para a construção da escala musical é a dos primeiros 3 harmônicos, que estabelece a criação do chamado “ciclo das quintas”.

 

Referências:

[1] The Human Auditory System: Fundamental Organization and Clinical Disorders

edited by Gastone G. Celesia, Gregory Hickok. Chapter 2: Petr Janata. Neural basis of music perception. 2015

https://books.google.com.br/books?id=DXdLBAAAQBAJ&pg=PA696&lpg=PA696&dq=circle+of+fifths+human+cochlea&source=bl&ots=P9awMQxr8s&sig=ACfU3U2BYKhDO5y56xrXFNbM2TFSi15fww&hl=en&sa=X&ved=2ahUKEwiZ8ZyQ2_HgAhVJEbkGHQB4A6MQ6AEwCHoECAIQAQ#v=onepage&q=circle%20of%20fifths&f=false

[2] Francisco Bocafoli. “Cordas vibrantes”. Física e Vestibular. http://fisicaevestibular.com.br/novo/ondulatoria/acustica/cordas-vibrantes/

[3] Physics of musical notes. Frequencies for equal-tempered scale, A4 = 440 Hz.

 

 


Como citar este artigo: 

José Fornari. “O eterno ciclo das quintas”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 27 de março de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/03/27/13/