Oralidade terciária e a convergência da produção musical

José Fornari (Tuti) – 11 de setembro de 2019

fornari @ unicamp . br


Os avanços das TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) criaram nas últimas décadas uma malha informacional que permeia grande parte da sociedade global. Esta é organizada em redes sociais que são, em sua maioria, estruturas comerciais onde a informação de milhões de usuários é dinamicamente organizada de forma “ecológica”, ou seja, esta informação circulante nas redes é tanto influenciada quanto influencia a sociedade de onde emana. Este ecossistema informacional, anteriormente chamado simplesmente de cybespace, permitiu a criação de um novo patamar da comunicação humana, através da utilização em massa de recursos computacionais, tais como: e-mails, chats, posts, mensagens rápidas de texto (muitas vezes com imagens, videos ou gravações de áudio), etc. que são compartilhadas, tanto de modo abrangente em forma de broadcast (onde uma mensagem pode ser recebida por muitos), quanto de modo discriminado ou customizado, onde uma mensagem pode ser enviada especificamente para um indivíduo ou grupo específico, que compartilha características similares, selecionadas pelo próprio usuário (o que envia a mensagem) ou de forma automática, muitas vezes selecionados por algoritmos de inteligência artificial. Este fenômeno gera na sociedade o que alguns teóricos chamam de oralidade terciária, lembrando que a oralidade secundária refere-se à invenção da escrita e a oralidade primária ao desenvolvimento evolutivo da linguagem. A oralidade terciária, que vem dos recursos das TIC, é majoritariamente estudada no caso da comunicação contextual das linguagens. Porém esta também afeta outras formas de comunicação sonora, como é o caso da música.

A possibilidade de registro do áudio em alta fidelidade (ou seja, com tamanha aproximação perceptual que o registro sonoro e o seu som original tornam-se virtualmente indistinguíveis, para a maioria dos ouvintes) permitiu o registro da música na forma de fonograma (a mídia que contém fisicamente o registro sonoro) onde esta pode ser armazenada, editada e distribuída, como se fosse um arquivo de texto ou de notação musical, como é a partitura.

Imagem macroscópica da superfície de um DVD, onde a informação de áudio e video é registrada. Fonte: http://mintywhite.com/wp-content/uploads/2010/06/dvd-media.jpg

Imagem macroscópica da superfície de um vinil, onde a informação analógica de áudio é registrada. Fonte: https://images.app.goo.gl/8Q9xBXp78ZqZNg9TA

Houve assim uma forma de “materialização” do áudio, em fonogramas de alta-qualidade, como os CDs, cartões de memória e os repositórios online; as chamadas “nuvens” ou clouds, que permitem não apenas o armazenamento mas também a manipulação (seu processamento, transformação, edição, etc.) e a sua síntese. O primeiro padrão de fonograma da era digital que foi amplamente difundido socialmente é o CD de áudio, lançado comercialmente na década de 1980. Este permite a gravação em dois canais de áudio, cada qual com alta relação sinal ruído (96dB) capazes de registrar frequências sonoras contendo todo o espectro da percepção auditiva humana (considerada entre 20 a 20.000 Hz). Posteriormente, vieram padrões de áudio com maior resolução ou maior compactação, como é o caso do MP3, que permite a diminuição de um arquivo digital de áudio para menos de 10% do seu tamanho inicial (em bytes). Estes permitiram que as gravações transpusessem um limite de qualidade auditiva suficiente para comunicarem fidedignamente a informação afetiva contida na composição musical, permitindo a sua análise, edição, processamento e até síntese computacional. Estes arquivos passaram a veicular livremente, através das redes sociais da internet, permitindo a ampla divulgação do seu conteúdo musical.

Isso fez com que a música pudesse ser criada, editada e registrada diretamente através de meios computacionais; dispensando o registro em partitura musical. Grande parte da produção de música popular é atualmente produzida diretamente a partir da manipulação dos arquivos de áudio. Do mesmo modo, a produção de música erudita também passou a se valer desses recursos computacionais a fim de criar performances ainda mais rebuscadas, perfeitas, impressionantes e algumas vezes até impossíveis de serem realizadas ao vivo. A música eletroacústica, conforme mencionada anteriormente, foi um importante ramo da música erudita do século 20 que se desprendeu quase que completamente da partitura, criando obras inteiras unicamente através dos processos eletrônicos disponibilizados em estúdios de gravação (os quais, hoje em dia, podem muitas vezes ser substituídos por softwares de gravação e edição de áudio em computadores pessoais, memórias externas e equipamentos caseiros de gravação, que compõem o que é atualmente chamado de “home studio”). Nessas obras eletroacústicas, especialmente as de tape music; um subgênero da musique concrete, o fonograma muitas vezes substitui a partitura, onde a sua reprodução (playback) passa a ser a performance musical, o que em termos mais contemporâneos e populares, aproxima-se, (não em termos estéticos mas em termos técnicos) da música de DJ.

Imagem de um estúdio de gravação antigo (acima) e um home studio (abaixo). Fontes: https://images.app.goo.gl/gfNjun7tgMUW3eKZ7
https://images.app.goo.gl/S1bX6ZHkko5WY8wS8

Marshall McLuhan, filósofo e estudioso da mídia, cunhou a expressão “o meio é a mensagem” (the medium is the message); ou seja, o meio de veiculação da música passa a ser mais relevante do que o seu próprio conteúdo. Para McLuhan, a mensagem veiculada é formada por “conteúdo e caráter” (content and character). O conteúdo é a mensagem direta, facilmente entendida, enquanto que o caráter é a mensagem nas entrelinhas, subentendida e até mesmo subliminar. A expressão “vila global” (global village) também cunhada por McLuhan, representa a proximidade e a interconexão que a tecnologia proporciona a toda a humanidade. O ecologista midiático (media ecologist) Robert K. Logan tratou de estender os conceitos midiáticos de McLuhan, com quem trabalhou, de modo a traze-los para a contemporaneidade do século 21, com o advento da internet e das redes sociais, infelizmente não presenciados por McLuhan, que descreveu o seus termos referindo-se ao rádio e à TV.

Marshall Mcluhan. Fonte: https://www.hastac.org/blogs/amcrochet/2017/05/10/analyzing-theories-marshall-mcluhan

Logan, em seu livro “Understanding new media: extending Marshall McLuhan”, de 2010, apresenta um paralelo da teoria informacional unificante de McLuhan com 3 estágios cognitivos de representação, conforme estudados por Jerome Bruner. Estes são: Enativo, Icônico e Simbólico (Enactive, Iconic and Symbolic). O primeiro é dado pelo conhecimento gerado através de ações (como ocorrem com os bebês, que manipulam objetos para entende-los). O segundo é o icônico, representado por desenhos do objeto (como as crianças que desenham figuras dos objetos que conhecem). O terceiro é o simbólico, representado por palavras, ou seja, a escrita (como o adulto que descreve um objeto ou situação através da escrita). Segundo Logan, estes são encontrados nos processos de aquisição de conhecimento através das redes sociais da internet. Creio que seja possível encontrar estes 3 estágios de representação também na música, sendo o enactivo relacionado ao escutar (a apreciação musical), o icônico relacionado ao fazer musical (a performance) e o representacional relacionado à escrita, tanto na forma notacional (partitura) quanto digital (através de recursos das TIC).

Neste contexto percebo uma grande convergência dos fazeres musicais no sentido de se valerem das mesmas ferramentas representacionais para realizar a produção musical na contemporaneidade. Isto também cria uma convergência da apreciação, especialmente fomentada pelas TIC, que permitem o acesso ubíquo e virtualmente sempre disponível dos ouvintes a qualquer gênero musical que queiram, em qualquer quantidade e em qualquer momento ou situação. Desse modo, penso que diferentes gêneros continuarão existindo e prosperando, já que estes representam identidades socioculturais e/ou afetivas bastante específicas. Porém, cada vez mais estas serão apreciados de forma eclética, por uma plateia virtual cada vez mais informada e disposta a escutar gêneros e estilos musicais diferentes e até contrastantes, com diferentes intenções e em diferentes circunstâncias afetivas.

Referências:

Ángel-Botero, A. & Alvarado-Duque, C. A. (2016). Oralidad terciaria: mirada ecológica a la radio digital. Palabra Clave, 19(2), 473-500. DOI: 10.5294/pacla.2016.19.2.6
http://www.scielo.org.co/scielo.php?pid=S0122-82852016000200006&script=sci_abstract&tlng=pt

Logan, Robert K. (2010). Understanding new media: extending Marshall McLuhan. Nueva York: Peter Lang. Peter Lang Publishing. ISBN 978-1-4331-1126-6.

McLuhan, M. (1964). Understanding media: the extensions of man. CA: Ginglo Press. McGraw-Hill. ISBN: 81-14-67535-7.

 


Como citar este artigo:

José Fornari. “Oralidade terciária e a convergência da produção musical”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 11 de setembro de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/09/11/31/