Musicalidade, improvisação e disponibilidade – parte 2

José Fornari – fornari@unicamp.br

20 novembro 2022

 

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Musicalidade, para mim, é a capacidade qualitativa de ser musical. Ser musical é a capacidade qualitativa de produzir, interpretar ou mesmo apreciar música. Música é uma comunicação sonora humana, que é expressiva e não semântica (distinguindo-se assim da linguagem, que é a nossa comunicação sonora semântica). Som é de fato qualia, ou seja, é um elemento subjetivo, qualitativo, psicológico; é a percepção, memória ou imaginação de um estímulo acústico, ou seu correspondente multimoda (como a vibração acústica sentida pelo tato). Por isso que podemos escutar, lembrar ou até sonhar com sons e músicas inteiras, mesmo na ausência do seu correspondente estímulo acústico. Se o som é psicológico, música é necessariamente contextual pois depende do entendimento subjetivo a priori do ouvinte (o que ouve ou imagina ouvir o som); englobando também como o ouvinte compreende e julga o que é música, em contraste ao seu oposto, que para mim não é o silêncio mas sim o ruído, Este é aqui definido como sendo “todo som não consentido”, que não é desejado, que não é bem vindo, que não queremos escutar (ouvir com atenção) mas que somos obrigados pelas circunstâncias a escutá-lo compulsoriamente. Ruídos vão desde ocorrências de anomalias auditivas, como tinnitus (diversos tipos de zumbidos nos ouvidos, frequentes e insistentes), anomalias cognitivas (subjetivas) como earworm (trechos de música que obsessivamente se repetem involuntariamente em nossa memória auditiva) ou até mesmo a “música” que não gostamos e não controlamos, como aquela da festa do vizinho, que você é obrigado a escutar e que por isso normalmente detesta. Sendo assim, musicalidade não é apenas contextual mas também cultural, pois o mesmo músico poderá ser considerado muito musical para uma certa audiência e o contrário para outra. Um exemplo disso, a meu ver, foram os Ramones, a famosa banda punk rock fundada nos anos 1970 e que começaram a se apresentar musicalmente mesmo sem saber tocar ou cantar, mas mesmo assim (ou talvez justamente por isso) acabaram tendo um enorme sucesso. Eu, que não sou fã desse gênero musical, mesmo assim sempre tive uma estranha simpatia pela musicalidade desse grupo, a qual atribuo à espontaneidade e à sinceridade, tanto pessoal de seus membros quanto criativa da banda, que se evidenciava nitidamente em sua produção musical. 

https://youtu.be/3RmlYRlWvB0

Sinceridade e espontaneidade são para mim atributos fundamentais da musicalidade. É raro algum artista fazer sucesso público compondo e interpretando músicas de gêneros que não fazem parte de sua formação cultural pessoal; de sua história de vida. Os ouvintes são particularmente sensíveis à sinceridade expressa pela música e mesmo que o artista seja muito habilidoso, a sua raiz cultural é sempre destacada e involuntariamente evidenciada em sua expressão musical. Comparando, é como o sotaque na linguagem. Não importa quanto tempo alguém viva no estrangeiro, se este indivíduo aprendeu o novo idioma depois de adulto, jamais irá falá-lo sem sotaque. Mesmo regionalmente, em países como o Brasil, com grande diversidade cultural entre regiões, é impossível não percebermos o sotaque de alguém que não seja de nossa comunidade de origem. A música também tem seu sotaque e assim a sua sinceridade com o gênero de origem, o que é imediatamente percebido pela audiência; estabelecendo ou destruindo laços de empatia do artista com seu público. Em estilos musicais improvisados, como o Jazz, este efeito é ainda mais evidente, pois a música (normalmente sua estrutura melódica) é desenvolvida no momento da sua performance, o que invariavelmente leva o músico a utilizar trechos já conhecidos de um repertório automatizado de ações musicais que identificam ainda mais a sua origem sociocultural. Assim, tentar improvisar num estilo que não faz parte da formação do músico (como, por exemplo, um estadunidense improvisando um samba ou um brasileiro improvisando um jazz, apesar de ser um bom exercício, para mim, artisticamente é sempre coibido pela inevitável falta de espontaneidade). A meu ver, uma das vantagens de músicos improvisadores brilhantes como Hermeto Pascoal, foi justamente não ter imitado improvisadores estrangeiros, mas criado o seu próprio, autêntico e indubitável estilo improvisacional de criação musical (além, é claro, de seu enorme talento acusmático e performático). 

https://youtu.be/JyAaqPl_hSU

Num outro estilo musical diametralmente oposto, mas a meu ver também brilhante, é o trabalho musical de Arrigo Barnabé, menos improvisado e instrumental, mais formal e experimental; um tipo de serialismo popular bastante sincero às raízes culturais do artista, na musicalidade da sua geração urbana dos anos 1980, na então nascente sociedade ubiquamente eletrônica. 

https://youtu.be/hdvaiSRQaP4

Eu concordo com a proposta do arqueólogo, professor e autor Steven Mithen, ao sugerir que música descende de uma proto linguagem não-verbal, constituída por interjeições, que Mithen chama de HMMMM (Holistic, Manipulative, Multi-modal, Musical and Mimetic ) ou seja, Holísticas (que cada som tem um significado único e completo), Manipulativa (cada som representa uma ordem ou intenção específica), Multimodais (as interjeições normalmente acompanham gestos, expressões faciais, cheiros, etc.), Musicais (tem propriedades sonoras similares à música, como a regularidade tonal e rítmica) e Miméticas (ao escutar uma interjeição, outros indivíduos do mesmo grupo tendem a repeti-la). Este conceito está ligado à etologia musical que estuda a comunicação animal para traçar paralelos comportamentais, expressivos e similaridades sonoras com a música, como forma de comunicação expressiva humana. Nesse sentido, música é particularmente eficiente para identificar e constituir laços afetivos entre indivíduos de um mesmo grupo e justamente por isso que é tão sensível à sinceridade e à espontaneidade do artista, em especial durante sua performance e improvisação, que pelo viés da multimodalidade (o segundo M de HMMMM) permite sua extensão a outras formas de arte, como a dança e o cinema. Neste viés, a vida e obra de Federico Fellini, um dos maiores cineastas do século XX, se destaca. 

https://youtu.be/9vX83H9Z4dk

O cinema de Fellini, além de fortemente musical (com a fiel e assertiva participação de Nino Rota compondo as trilhas sonoras de seus filmes) foi conhecido (e por isso temido por muitos atores) por ser praticamente todo improvisado. Fellini dizia que ele dirigia seus filmes apenas nas primeiras semanas de filmagem e após isso era o filme que dirigia Fellini. Numa entrevista mostrada no documentário (do trailer acima), Fellini, num dado momento, fala com grande profundidade e lucidez sobre a sua visão do que é improvisação. De modo direto e sucinto, Fellini fala algo nas seguintes linhas; que “improvisação” é para ele uma palavra errada, de certo modo até ofensiva, pois não dá o devido peso e significado a este processo de criação espontânea. A palavra “improvisação” denota confusão, omissão, pouco caso (ex: um serviço feito de modo improvisado). Para ele, uma palavra mais correta para se referir a esse processo sincero e espontâneo de criação artística, que exige compenetração quase que ritualística daquele que a faz, seria “disponibilidade”. Não basta que o artista apenas ajeite a esmo os elementos componentes de sua obra, num improviso qualquer, desinteressado e ausente, mas este deve estar disposto e disponível para que um processo misterioso de criação artística ocorra através dele, que para tal deve se disponibilizar para promover a sua criação, como se desse fosse um atento e prestativo serviçal, ao invés de um vaidoso e centralizador mestre, o que quase sempre impede que o processo criativo seja excepcional. 

 

continua …

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Como citar este artigo:

José Fornari. “Musicalidade, improvisação e disponibilidade – parte 2”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. Data da publicação: xx de novembro de 2022. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2022/11/20/musicalidade-improvisacao-e-disponibilidade-parte-2/