Expectativa e emoção musical

José Fornari (Tuti) – 27 de fevereiro de 2019

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Os estudos de musicologia cognitiva baseados na expectativa musical, conforme anteriormente formalizados por Hanslick, Wundt e Meyer, continuaram progredindo na virada do século 21 DC, especialmente ao se valerem dos avanços em neurociência, os quais permitiram um maior entendimento do modo como a informação musical é processada em diversas áreas do cérebro. Segundo a abordagem da expectativa musical, ao escutar música, a mente do ouvinte inconscientemente elabora predições a respeito de quais eventos musicais irão ocorrer. Estas antecipações são baseadas na informação de eventos sonoros que já ocorreram, tanto em termos intrínsecos à obra (os eventos que especificamente compõem a música sendo escutada) quanto extrínsecos (os eventos que fazem parte do imaginário musical deste ouvinte, que constituem o seu repertório musical e que compõem o seu conhecimento, experiência e afeto musical). A música é uma comunicação fortemente atrelada à duração do tempo, onde a ordenação regular de eventos sonoros que constituem uma peça musical e a sua taxa de reprodução (o andamento) são fatores fundamentais para estabelecer o modo como a informação musical é percebida, identificada e compreendida. Isto potencializa a geração de predições que ocorrem automaticamente na mente do ouvinte, o que gera o fenômeno aqui chamado de “expectativa musical”, que é um fator predominante na evocação de emoções pela música.

Um modelo para o entendimento da expectativa na escuta de melodias musicais foi proposto por Elizabeth Hellmuth Margulis; o MME (Model of Melodic Expectation). O objetivo deste modelo é estabelecer o grau de expectativa de eventos melódicos através da verificação de 4 aspectos da melodia: Estabilidade, Proximidade, Direção e Mobilidade. Estabilidade exprime o quanto a melodia é estável (em termos das notas que a compõem) em relação à sua tonalidade. Proximidade exprime o quanto as notas da melodia são próximas entre si. Direção exprime se a sucessão de notas da melodia é predominantemente ascendente ou descendente, onde grandes saltos intervalares tendem a induzir na mente do ouvinte a expectativa de uma mudança de direção melódica. Mobilidade exprime a tendência de movimentação ou variação de um evento melódico repetitivo, como no caso da repetição prolongada de uma mesma nota numa melodia. Os 3 primeiros fatores (estabilidade, proximidade, direção) são considerados primários, enquanto que o último (mobilidade) é considerado secundário, ou seja, de menor relevância para a expectativa melódica. A experiência do ouvinte em relação ao repertório e à peça musical escutada é um fator determinante para a tensão percebida pelo ouvinte na melodia, o que no caso do MME reflete diretamente no grau da expectativa musical. Este modelo distingue a expectativa musical em 2 tipos: verídica e esquemática. A expectativa verídica tem uma abordagem top-down, que ocorre sobre uma estrutura conhecida, ou seja, sobre uma peça musical que o ouvinte já conhece, e portanto espera a ocorrência de certos eventos musicais já conhecidos. A expectativa esquemática tem uma abordagem bottom-up, que ocorre com base na estrutura em si, independente do ouvinte conhecer a estrutura musical que está sendo escutada. Ambas expectativas não são mutuamente exclusivas e assim podem ocorrer simultaneamente na mente do ouvinte, durante o processo de escuta musical. O MME trata especificamente da expectativa melódica esquemática e da sua relação com a evocação de emoções durante a escuta musical. [1]

David Huron publicou em 2006 o livro “Sweet Anticipation” onde apresenta o seu modelo de expectativa musical, que foi desenvolvido a partir do trabalho de Leonard Meyer bem como baseado em princípios da psicologia evolutiva e das ciências cognitivas. Este modelo é conhecido pela sigla ITPRA (Imaginação, Tensão, Predição, Reação e Avaliação). Imaginação é anterior ao evento e corresponde ao conhecimento musical do ouvinte e ao conjunto de possibilidades de eventos musicais por este esperado. Tensão é anterior ao evento e ocorre quando a mente do ouvinte antecipa a possível ocorrência de um evento, gerando uma predição e aumentando a intensidade de sua antecipação até a ocorrência do evento. Predição e Reação ocorrem simultaneamente e imediatamente após a ocorrência do evento, Predição representa a constatação mental da assertividade ou não da predição mental deste evento específico. Reação representa a reação mental ou corporal a este compatível, como por exemplo sincronizar movimentos de pés, mãos ou cabeça com o andamento da música escutada. Após estes, tem-se a Avaliação que representa o processo cortical de entendimento da ocorrência deste evento, que avalia as consequências do acerto ou erro da predição realizada. Predição e Avaliação parecem respectivamente representar as reações daquilo que é chamado de “sistema dual de processamento cerebral” (dual process theory), sendo que o primeiro (predição) é rápido, involuntário e afetivo, enquanto que o segundo (avaliação) é lento, voluntário e lógico. É importante ressaltar que o ITPRA transcende uma explicação específica para a expectativa musical. Este pode ser utilizado como uma teoria geral de expectativa e eventos genéricos. No caso da música e da comédia (entre outras formas artísticas sequenciadas no tempo), não existem normalmente consequências danosas ao ouvinte quando a sua predição não é assertiva (como seria o caso de errar a predição, ao atravessar uma rua, do momento em que um veículo irá passar por nós). Assim, quando isto ocorre, o primeiro sistema (predição) gerará a sensação de insatisfação e o segundo (avaliação) concluirá que este erro de predição é de fato inofensivo, o que irá gerar no ouvinte a sensação de surpresa seguida de alívio; o que é também uma das bases da comédia. Huron atribui tanto à surpresa gerada pela antecipação errônea da expectativa musical, quanto à satisfação gerada pela sua antecipação assertiva, uma das grandes capacidades que a música possui de evocar emoções positivas nos ouvintes. Este modelo propõe que os 5 processos mentais acima descritos participam da criação da expectativa musical, a qual gera emoção, não pela inibição de uma ação, conforme é mencionado por Meyer, mas pela sua antecipação, dada pela avaliação inconsciente da assertividade de predições musicais.

Esta abordagem se baseia em pesquisas de neurociência que atribuem o sentimento de prazer, satisfação e recompensa à ativação de algumas regiões cerebrais, entre elas, o NAc (Núcleo Accumbens). Ao ser estimulado, o NAc libera dopamina; um neurotransmissor ligado ao sentimento de satisfação. NAc localiza-se na interface entre o sistema límbico e motor e é associado ao primeiro sistema (rápido), relacionado ao processo da Predição. Se uma previsão que fazemos for assertiva, NAc libera dopamina e sentimos a sensação de satisfação, pois segundo esta abordagem, o cérebro foi evolutivamente desenvolvido no sentido a responder com sensação de satisfação e conforto à previsões assertivas, bem como responder com sensação de insatisfação e desconforto à predições equivocadas. A previsão errada ativa um tipo de sistema de punição cerebral, relacionado ao neurotransmissor serotonina, provocando no indivíduo a sensação temporária de ansiedade e desconforto mental. A capacidade de avaliação está relacionada com a região cerebral PFC ( “Prefrontal cortex”, ou Córtex Pré-Frontal) que também libera dopamina no caso da ocorrência de uma avaliação satisfatória. PFC é relacionado ao segundo sistema acima mencionado (lento), que realiza o processo da Avaliação, no ITPRA. Desse modo, tanto o processo rápido e mais basal, da predição, quanto o lento e mais elaborado, da avaliação, podem gerar satisfação no ouvinte, o que de certa forma explica a razão pela qual o belo musical pode tanto estar relacionado à capacidade da música em evocar emoções satisfatórias (através da predição) quanto em gerar satisfação (através da avaliação) pela constatação de suas intrincadas e coerentes estruturas sonoras. [2]

Referências:

[1] Margulis, E. H. (2005). “A Model of Melodic Expectation”. Music Perception: An Interdisciplinary Journal, 22(4), 663–714. doi:10.1525/mp.2005.22.4.663. https://psycnet.apa.org/record/2005-05004-004

[2] David Huron. “Sweet anticipation: Music and the psychology of expectation”. MIT Press. 2006


Como citar este artigo: 

José Fornari. “Expectativa e emoção musical”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 27 de fevereiro de 2019. Link: : https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/02/27/9/