DiÔrio de Israel #1 Eu sou daqui, eu não sou de Marte

Para dar o tom: ā€œInfinito particularā€, de Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown

Israel nĆ£o era um plano ou uma meta definidos a priori. Simplesmente aconteceu, com a grata surpresa de resgatar ideias iniciais de um projeto que rabisquei logo após terminar o doutorado, ainda com a cabeƧa cheia de dados coletados e teorias baseadas nas inĆŗmeras referĆŖncias que digeri ao escrever a tese (muito alĆ©m das citadas!). ā€œPra tudo tem hora certaā€ Ć© a frase favorita da minha mĆ£e. A oportunidade de pesquisa no Instituto Weizmann de CiĆŖncias veio assim, na hora certa.

Em meio Ć  pandemia da Covid-19, a viagem para Israel parecia turva, turbulenta e distante. TĆ£o distante que, quando a data chegou, me senti no meio de um tsunami. IncrĆ©dula. Informativos lotavam a minha caixa de entrada. Os passo a passos eram vistos e revistos com base nos grĆ”ficos de progressĆ£o do contĆ”gio da doenƧa. Tudo podia mudar de um dia para o outro. Definir a data da viagem, comprar a passagem aĆ©rea, fazer o seguro saĆŗde, assegurar o local da quarentena e da moradia permanente estavam entre os itens prioritĆ”rios e incertos.  

Inicialmente a viagem poderia ser realizada sem visto; depois, a orientação mudou e precisei correr para obtĆŖ-lo no consulado em SĆ£o Paulo. No dia do agendamento da entrevista, a notĆ­cia: Israel entraria em lockdown durante as festividades: Rosh HashanĆ”, Yom Kippur e Sukkot. O consulado ficaria fechado por tempo indeterminado. Com sorte, a entrevista foi agendada seis dias antes da data da viagem. 

Com a restrição do turismo, o prédio e seu entorno estavam domingueiros. Foi fÔcil conseguir uma vaga no estacionamento, e o café da esquina parecia não oferecer riscos com as vÔrias mesas de espaçamento entre um cliente e outro e os enormes frascos de Ôlcool em gel sentados no centro das mesas. Nas ruas, poucas pessoas a pé. De vez em quando um carro perdido entrava na viela. Tudo parecia correr em ritmo lento na superfície da capital financeira do país.

A experiĆŖncia no consulado de Israel foi interessante e Ćŗnica, prova da hospitalidade dos israelitas. O agente de seguranƧa, em tom profissional, demandou respostas rĆ”pidas e olho no olho para cada pergunta de um questionĆ”rio ainda no hall de entrada do prĆ©dio. HĆ” um ano no Brasil, ele falava bem o portuguĆŖs. Antes de subir para o andar onde seria realizada a entrevista, sorridente, ele previu que eu voltaria de Israel com o hebraico melhor que o portuguĆŖs dele. Depois, fora do protocolo, conheci o cĆ“nsul pessoalmente. Entusiasta da ciĆŖncia e ciente de sua importĆ¢ncia, prontamente acolheu mais uma cientista no paĆ­s.   

Com a papelada em mãos e burocracia em ordem, as malas se tornaram o grande obstÔculo. O que levar? Ou melhor, o que não levar? Uma mala grande para ser despachada, uma mala pequena de bordo e uma mochila compacta para o laptop foram capazes de acolher todos os itens que julguei necessÔrios, úteis ou inúteis. Abri e fechei as malas três vezes antes de conseguir organizar e distribuir de forma inteligente os poucos mais de 23 quilos permitidos.

Confinada no meu infinito particular e alienada dos contatos por quase seis meses, acabei esquecendo de avisar os mais distantes sobre a futura jornada. Os que souberam a tempo receberam a notĆ­cia com surpresa e alegria. Alguns descreveram a jornada como de uma astronauta com destino Ć  Marte! 

Esquecemos que Israel Ć© logo ali. O mundo Ć© portĆ”til, como descreve a mĆŗsica ā€œInfinito particularā€, qualquer que seja a definição de mundo. Os votos e desejos por uma boa viagem e experiĆŖncia enriquecedora foram bĆ”lsamos. Agora, sem uma transmissĆ£o ao vivo da missĆ£o Ć  altura das transmissƵes da NASA, resta estabelecer contato por aqui.

 

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrÓnoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

CrƩdito imagem: DALL*E
Revisão de texto: NatÔlia Flores


Texto publicado originalmente em 04 de novembro de 2020