Diário de Israel #7: Já estivemos aqui antes

Para dar o tom:  “Sign of the Times”, de Harry Styles

Na sexta-feira, dia 06 de outubro de 2023, eu esboçava mentalmente uma entrada no diário sobre o medo de bombas, mencionado na postagem anterior De pé no chão. Refleti sobre a serenidade dos primeiros meses em Israel, interrompida pelos bombardeios de maio de 2021. 

Eu estava em Israel há seis meses e a crise entre Israel-Palestina parecia distante. A pandemia estava no auge e vencer a COVID-19 parecia um risco mais iminente do que uma guerra. Enquanto no Brasil, a vacinação ainda avançava lentamente nos grupos prioritários, eu já estava imunizada com duas doses da vacina da Pfizer. A rotina de trabalho seguia sem restrições e eu me sentia segura. 

Mesmo com a calmaria aparente, Reut ― uma das estudantes no meu laboratório ― considerou que era hora de me familiarizar com uma mamad (acrônimo do hebraico “merhav mugan dirati“, que significa espaço protegido em prédios). Essa decisão foi tomada depois de um debate acalorado entre aqueles que achavam o assunto desagrável para depois de um almoço preguiçoso.

A mamad representa o epítome da vida do cidadão israelense

Ao entrar na sala de estudos, sempre animada com alunos de pós-graduação e com a porta sempre aberta, surpreendi-me ao encontrar ali uma mamad. Estrategicamente localizada no centro do corredor e ao lado da escada de incêndio, a mamad é acessível aos pesquisadores distribuídos em três grandes laboratórios.

No edifício Nella & Leon Benoziyo de Ciências Biológicas, onde trabalho, há quatro mamadim (plural de mamad) por andar, totalizando seis andares. Em todo o campus do Instituto Weizmann de Ciência, existem onze miklatim (plural de miklat, abrigo anti-bombas) e seis mamadim em espaços públicos, como estacionamentos e jardins.

Logo depois do estabelecimento do Estado de Israel (1951), a construção de abrigos antibombas já era incentivada em todo o país. Em 1992, tornou-se obrigatória a construção de mamadim em todas as unidades habitacionais, e hoje mais de 40% das residências estão em conformidade com a lei.

A mamad é um quarto de cinco a doze metros quadrados, com paredes, piso e teto revestidos por 20 a 40 centímetros de concreto maciço, além de uma porta de aço que se abre para fora e uma janela à prova de explosões em formato quadrado, também revestida com aço. As versões mais modernas incluem até um sistema de ventilação para ataques biológicos e químicos.

No ambiente doméstico, a mamad desempenha diversos papéis, desde quarto de criança, quarto de visitas, escritório, sala de televisão até simples quartos de bagunça. Em edifícios mais antigos, como o meu atual, contamos com uma miklat comunal localizada no primeiro piso, utilizada pelos condôminos como um espaço extra de armazenamento.

Mamad na minha segunda residência em Israel (2023).

A mamad representa o epítome da vida do cidadão israelense, independentemente de sua etnia ou status socioeconômico. Essa construção é considerada um vetor de resiliência emocional, tornando a vida possível mesmo durante intensos bombardeios ao mesmo tempo que cria uma complexa e ambígua amálgama entre normalidade e estado de emergência.

A supressão moral da esperança pela paz, em troca de uma rotina possível, é também uma estratégia político-militar que torna o conflito administrável e menos suscetível à pressão popular. Em uma sociedade onde guerra e paz não são fenômenos distintos ― alguns autores a descrevem como um continuum “nem guerra, nem paz” ou “quase guerra, quase paz” ―, as mamadim, combinadas com a tecnologia do Domo de Ferro (sistema de defesa antimísseis), tornam-se quase terapêuticas, embora não sejam um antídoto para a depressão e o estresse pós-traumático.

Mamad na minha primeira residência em Israel (2021).

Antes do sono, revisitei as reações fisiológicas de viver em um país em estado de guerra, apenas para acordar no sábado (7) às 6:30 ao som estridente das sirenes. Meu coração acelerou, e uma onda de oxigênio e adrenalina inundou meu corpo. Levantei-me com agilidade da cama, calcei os chinelos, abri a porta com destreza e desci as escadas, pulando degraus. Em Rehovot, tenho um minuto e meio para alcançar um local seguro. A cada andar, as portas se abriam, e as famílias emergiam em filas, algumas com crianças ainda adormecidas no colo, acompanhadas por cachorros; a escada ficou cheia. Meu corpo, no modo autômato, conhecia o percurso de cor.

Leia mais:

BIRD-DAVID, N.; SHAPIRO, M. Domesticating spaces of security in Israel. In: LOW, S.; MAGUIRE, M. (Ed.) Spaces of security: ethnographies of securityscapes, surveillance, and control. Nova Iorque: New York University Press, 2019. p. 163-183.

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALL*E
Revisão de texto: ChatGPT

Diário de Israel #6 De pé no chão

Para dar o tom:  “Principia”, de Emicida

Setembro tem profundo significado na tradição judaica, marcando o início de diversas celebrações e festividades. Em 2023, o Rosh Hashaná (Ano Novo Judaico) e o Yom Kippur, celebrados entre 15 e 25 de setembro, trouxeram à tona lembranças do início da minha jornada em Israel, em 2020. 

A exaustão típica do final do ano, combinada com as múltiplas confraternizações, culminou na minha primeira contaminação pela COVID-19. O período de isolamento para recuperação evocou memórias do auge da pandemia, meus primeiros momentos em Israel e o diário que permaneceu intocado por quase três anos.

Dentre os diversos feriados judaicos como Hanukkah, Lag Ba’omer, Tu Bishvat, Shavuot, Sukkot, Purim e Passover, meu favorito é o Yom Kippur. Distinto dos outros, o Yom Kippur, também conhecido como Dia da Expiação, não é uma inovação cultural dos sionistas. Ao contrário, é uma manifestação popular que se faz presente no espaço público, tocando tanto judeus quanto não-judeus.

Esse dia reflete as nuances e complexidades da sociedade israelense, contrapondo-se às visões tanto dos religiosos conservadores quanto dos seculares cosmopolitas, mas unindo a todos.

No Yom Kippur, Israel experimenta uma paralisação completa. Atividades econômicas, de transporte e de lazer são suspensas. Estabelecimentos por todo o país, desde bancos, aeroportos, lojas, bares, restaurantes, parques e museus, permanecem fechados. Até mesmo os serviços básicos, tanto estaduais quanto municipais, incluindo áreas vitais como saúde e segurança, cessam suas operações. A programação de rádio e TV é interrompida e os jornais impressos não circulam. Não há movimentação de transporte público ou automóveis particulares. Durante essa pausa, o país respira melhor, com níveis reduzidos de poluentes na atmosfera.

Na véspera do Yom Kippur, as ruas se enchem de vida. Famílias se reúnem para longas caminhadas ou bate-papos com vizinhos, escolhendo passear pelas faixas de trânsito ao invés das calçadas. É comum ver muitos trajando roupas brancas, simbolizando boas vibrações para o ano novo que se inicia. As crianças, em especial, tomam conta do espaço urbano: andam de bicicleta, patinete, patins e skate, aventurando-se por ruas, avenidas e até rodovias. É impressionante observar os pequenos, muitas vezes sem a supervisão direta de adultos, se divertindo em grupos ou até mesmo sozinhos. Por 25 horas, a cidade pertence a eles.

Para a maioria dos adultos, o Yom Kippur é um momento de jejum, de refletir sobre as transgressões do ano passado e pedir perdão. Também é a época de fazer um balanço moral, conhecido em hebraico como ‘heshbon nefesh‘, em preparação para o ano novo. Enquanto alguns veem o dia como uma pausa introspectiva, outros o acham restritivo e monótono. Além disso, para muitos, o feriado carrega as sombrias memórias da guerra de 1973, quando Israel foi atacado de surpresa por Egito e Síria exatamente no Yom Kippur daquele ano.

Para mim, o Yom Kippur oferece uma oportunidade de enxergar a cidade sob uma perspectiva renovada e de conectar-me profundamente ao lugar onde resido. Nos anos anteriores, ao final da tarde, peguei minha bicicleta e em meio às crianças explorei Rehovot e a vizinha Yavne. Este ano, para minimizar a propagação do vírus, optei por apreciar e absorver o dia através da minha janela.

As últimas postagens do diário datam de novembro de 2020, “O pião entrou na roda” e “Laranja madura na beira da estrada”. O tempo voa. Desde então, a quantidade e a velocidade das experiências e vivências em Israel deixaram os pensamentos embaralhados demais para serem escritos. 

Enfrentei temores inesperados, como o medo de bombas, abelhas e aeroportos, e consegui superar outros, como a hesitação de me mostrar em fotos e vídeos. Assimilei novas formas de organização do trabalho de pesquisa em equipe, dominei técnicas e protocolos. Tive o prazer de guiar jovens rumo à ciência. Percorri Israel de ponta a ponta e tive o privilégio de conhecer notáveis pesquisadores brasileiros, que hoje constituem minha rede de suporte aqui. 

Ainda há muito a se compartilhar!

Leia mais:

Hizky Shoham (2013) Yom Kippur and Jewish public culture in Israel. Journal of Israeli History, 32:2, 175-196, DOI: 10.1080/13531042.2013.822732

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALL*E
Revisão de texto: ChatGPT

Diário de Israel #5 Laranja madura na beira da estrada

Para dar o tom: “Laranja Madura”, de Ataulfo Alves

 

Rehovot é uma cidade de médio porte, localizada à 20 Km ao sul de Tel Aviv, e foi fundada em 1890 pelos primeiros colonos judeus. No brasão vê-se uma laranja, um microscópio e um livro representando os citros, a ciência e o espírito. Os três itens me chamaram a atenção nos primeiros dias na cidade, mesmo antes de saber o significado deles para a região. 

ויקרא שמה רחובות כי הרחיב הי לנו

Apesar de industrial e tecnológica, a cidade foi no passado um polo agrícola, batizada por uma passagem bíblica em que Isaac, filho de Sara e Abraão, e seus homens chamam “Rehobot” o local onde abriram o terceiro poço sem causar conflito com locais, “porque agora, disse ele, o Senhor nos pôs ao largo, e prosperaremos na terra” (Gênesis 26:22).

Em 1904, Zalman Minkov, judeu polonês, compra as terras de um cristão árabe e transforma os vinhedos de árvores improdutivas em pomares de laranja. Com uma estação de trem, infraestrutura para exportação e a chegada de novos colonos judeus iemenitas, russos e etíopes, os laranjais se expandem e geram riquezas. Mais tarde, com a mecanização e a competição internacional, os pomares perdem a importância.

Hoje, pés da laranja “limta“, com frutos perfeitamente redondos, amarelos e amargos, enfeitam as ruas da cidade e as praças mantendo o passado vivo na memória. As oliveiras também são frequentes e me encanta as flores, ervas e plantas aromáticas que brotam nas varandas, sacadas e quintais. Caminhando pelas ruas, me pego bisbilhotando dentro das casas e apartamentos. A quantidade de plantas mantidas no interior também impressiona.

O cultivo das plantas é toda uma ciência. Além do Instituto Weizmann de Ciências, a cidade abriga o campus de agricultura, nutrição e medicina veterinária da Universidade Hebraica de Jerusalém, grandes empresas israelenses do setor alimentício e inúmeras startups de alta tecnologia.

Os livros representam o espírito, parte do tripé da cidade, e estão por toda a parte. Há prateleiras de livros em todos os halls de entrada de prédios sempre gratuitos e acessíveis a qualquer leitor. Rehovot também foi casa e ponto de encontro de alguns dos primeiros escritores e poetas da língua hebraica, entre eles Rachel Bluwstein, Moshe Smilansky e Benjamin Tammuz, para citar alguns exemplos. Parte da literatura, arte e cultura israelense nasceu aqui. 

Entre citros, ciência e espírito, sinto-me em casa.

“Numa gentil noite suave, eu irei

Para fora e imóvel,

Sem falar com uma única alma,

Vou sentar um pouco.

Vou descansar como quem busca refúgio

Do calor do siroco,

À sombra de uma árvore frondosa,

Enquanto sento sob seus pés.”

Parte do poema “Four Poems – One Gentle Evening Suave” de Rachel Bluwstein. Tradução do hebraico para o inglês de Elias Pater. Minha tentativa de tradução para o português.

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALLE*E

Texto publicado originalmente em 13 de dezembro de 2020

Diário de Israel #4 O pião entrou na roda

Para dar o tom: “Roda Pião”, de Dorival Caymmi

 

Um dia antes do término da quarentena, fechei as malas, me dediquei a uma limpeza superficial do cubículo e empacotei os lixos de acordo com as instruções de segurança. Era uma terça-feira ensolarada, quando finalmente abri a porta do n. 103. Um corredor longo e dois lances de escada me separavam da saída principal do prédio. 

Arrastei as malas uma hora antes do combinado com a carona para fora do prédio. A rua sem saída limitava o trânsito de pedestres. Segura, retirei a máscara do rosto para sentir a brisa leve que passava à sombra de um jacarandá. 

Ziva e Grace organizaram suas agendas para me ajudar com a mudança para o apartamento oficial, fazer a primeira compra de supermercado e trocar um pouco de dinheiro para emergências. Não demorou muito para o carro entrar no bolsão. A dinâmica do tempo mudou quando entrei no carro em direção à avenida principal de Rehovot, Herzl. 

Juntas éramos um time participando de uma gincana. As duas olhavam atentamente cada segundo do relógio. Os movimentos eram coreografados, sem espaço para improvisação. As malas foram deixadas no apartamento, e seguimos o trajeto mais curto para cumprir todas as tarefas. 

A lista de itens essenciais para sobreviver às primeiras semanas foram lidas em voz alta por mim ainda no carro. No supermercado, elas se dividiram na busca pelos produtos. Eu, atônita, esperei junto ao carrinho e acatei todas as sugestões sobre as melhores aquisições. Tudo escrito em hebraico. As compras foram colocadas no apartamento sem nenhuma ordem, e voltamos para o Instituto Weizmann de Ciências.

No almoço, os integrantes do laboratório se reuniram com pão pita, homus e tahini, descumprindo as regras do distanciamento social. As mesas foram arranjadas ao ar livre em um vão do prédio protegido do sol. Por alguns instantes voltei à vida antes da Covid-19. 

À tarde, o professor me apresentou as instalações do laboratório. Entrei em todas as salas e conversei pessoalmente com cada um dos alunos. Paramos apenas para um café turco com cardamomo e doces típicos no meio da tarde e seguimos para mais um tour guiado pelos jardins e prédios até as casas de vegetação.  

Tudo rodava muito rápido como um tufão. No final do dia, já em casa, sentada na escrivaninha, como um pião, minha cabeça ainda dava as últimas voltas como que por inércia. Tento pensar sobre o que aconteceu e refazer mentalmente o dia. As imagens passam borradas e distorcidas.

O corpo inteiro doía, da cabeça aos pés. Depois do banho, meu cérebro parecia um arquivo em branco com o cursor piscando, excitado para começar a digitar algo. A cada piscada, um batimento cardíaco e nada mais. Bloqueio. A única certeza foi estar grata pelo próximo dia. 

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALL*E
Revisão de texto: Natália Flores


Texto publicado originalmente em 25 de novembro de 2020

Diário de Israel #3 A baleia é mais segura que um grande navio

Para dar o tom: “Mestre Jonas”, de Sá, Rodrix e Guarabyra

 

Montanhas, árvores, casas, postes de iluminação passavam em perspectiva pela janela do automóvel. Tudo tingido de dourado reluzente do aeroporto até Rehovot. O brilho era tão intenso que a posição do sol era difusa e probabilística. 

O pôr-do-sol é mágico em Israel. Até o tempo para para contemplar. Nesse estado de transe, foi difícil perceber que entravámos no centro de Rehovot e adentravámos o portão principal do Instituto Weizmann de Ciências. Dali, o carro foi escoltado por seguranças em motocicletas até a Residência Ruthie & Samy Cohn. Uma entrada pomposa para quem assistiu da calçada, quase como um desfile.

Eu e as malas fomos colocadas para dentro do prédio com uma única indicação: “Vá para o quarto!”. Com a eficiência e a precisão robótica de um sabujo mecânico (Fahrenheit 451, Ray Bradbury), encontro o quarto n. 103, agarrando a maçaneta delicadamente e projetando a probóscide (a chave) na fechadura.

Uma vez fechada, a porta só seria aberta 14 dias depois. 

Com o sol já na linha do horizonte e passado o transe, não sei bem onde estou no tempo e no espaço. Meu mundo tem 16 metros quadrados e uma pequena sacada com vista para um elevado feito de pedras hexagonais cor areia, que esconde uma praça, prédios altos e uma estação de trem. 

Acompanho o ir e vir de alguns poucos pedestres logo cedo e no entardecer. Raramente vejo um carro. Os trens são frequentes. Às vezes o barulho é ensurdecedor, quando helicópteros militares sobrevoam a área. Muito ao longe, escuta-se barulho de trânsito e buzina. Há luzes que piscam como vagalumes.

A natureza também é visita frequente. Os pássaros fazem das árvores dormitório e são muitos. Há também pequenos lagartos que escalam o paredão e se escondem entre as pedras. Além de minúsculas e inteligentes baratinhas que encontrei duas noites seguidas no banheiro.

A primeira semana foi marcada por uma dor de cabeça à britadeira. O serviço começava no meio da tarde com vibrações intensas e pontiagudas no topo da cabeça, que desciam ressoando por cada membro. O corpo autômato deixava-se cair aos pedaços sobre a cama. O sono era interrompido para comer, quando o corpo criava nova forma para, então, voltar para a cama em uma versão mais leve. 

Os raios de sol temem o interior do cubículo. Os dias passam entre três quinas – cozinha, escritório e quarto – cada uma separada por oito peças de piso cerâmico antigo. A sacada é o lazer e respiro entre uma tarefa e outra ou o refúgio quando me sinto entediada. 

O ciclo circadiano adaptou-se ao claro e escuro, e entrei na segunda semana mais consciente do entorno. Cada detalhe e objeto do apartamento me interessam. Na cozinha, impressiona a qualidade das matérias-primas, e misturo ingredientes e temperos em criações culinárias duvidosas, apesar de nutritivas.

Pega na tempestade da Covid-19, como Jonas, resta-me apenas contar os dias.

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALL*E
Revisão de texto: Natália Flores


Texto publicado originalmente em 18 de novembro de 2020

Diário de Israel #2 Diga pra Nazaré que eu não tardo em chegar

Para dar o tom: “As mil e uma aldeias”, de João Bosco

 

Aeroportos estão no topo da lista de risco durante uma pandemia. Antes da viagem para Israel, cenas do filme “Contágio“, de Steven Soderbergh (2011), disparam como flashes: me vejo no mesmo terminal de embarque de Elizabeth Emhoff com as infindáveis superfícies de contato – balcões, corrimões, maçanetas, touch screens – e as limitações do distanciamento físico. 

Em Guarulhos, a realidade se mostrou diferente. No saguão principal, havia transeuntes, aqui e acolá, e alguns poucos funcionários zumbis. No portão de embarque, os passageiros com destino a Londres se aglutinavam lentamente como elétrons, cada um em sua camada, e, mantendo a ordem, embarcaram no avião. Aconchegada em três poltronas, oscilei energeticamente entre o estado de repouso e de excitação, com as possibilidades de entretenimento fácil ao longo de todo o trajeto. 

Em Londres, o bilhete de conexão no aeroporto Heathrow indicava uma missão aparentemente simples – desembarcar no terminal 5 e embarcar no mesmo terminal – não fosse o aeroporto um labirinto. Um trem, três escadas rolantes, longos corredores e enormes painéis informativos depois, encontrei filas quilométricas.

O mundo parecia se reunir ali. Os funcionários estavam perdidos e exaustos. As filas se multiplicavam. As malas eram invariavelmente vasculhadas uma a uma, criando novas aglomerações no final das esteiras. Enquanto isso, eu me espremia para transpor a barreira de viajantes ansiosos e descalços que aguardavam a manipulação descuidada de seus objetos pessoais. 

Corri o mais rápido que pude, arrastando as malas e esbarrando em gente, para pegar o último ônibus até o avião. No Whatsapp, escrevi no grupo da família: “Em Londres. Um segundo e não embarco. Tremendo toda“. O avião decolou sem tempo para mais explicações. 

O relógio marcava 7:30 quando deixamos para trás um amanhecer de céu azul levemente frio. A bordo, judeus ultraortodoxos se preparavam para as orações matinais. Os homens jovens, reunidos de pé entre as poltronas, conversavam animados. Diferente da vestimenta religiosa, as máscaras pareciam intrusas e incômodas; ora descansando sob o queixo, ora cobrindo nariz e boca de forma displicente. 

Cada peça de roupa ou adereço tem um significado para o judaísmo. Pela manhã, os homens se livram dos casacos longos, pretos e quentes (os bekishes) e dos formais chapéus, mantendo o quipá e deixando à mostra o tzitzit. O único homem mais velho do grupo se arrumou lentamente. Posicionou um tefilin no braço esquerdo, enrolando a faixa de couro com cuidado pelo braço, e o outro na porção frontal da cabeça. Depois, cobriu a cabeça com um talit branco de seda e, em oração, percorreu todos os corredores do avião. Logo, os jovens se uniram a ele nas poltronas centrais vazias do avião. As preces prosseguiram e os corpos em movimento embalaram meu sono. Adormeci.

Acordei com o piloto anunciando a aterrissagem. Com o som das preces ainda ecoando na cabeça, piso em Israel.

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALLE*E
Revisão de texto: Natália Flores


Texto publicado originalmente em 11 de novembro de 2020

Diário de Israel #1 Eu sou daqui, eu não sou de Marte

Para dar o tom: “Infinito particular”, de Arnaldo Antunes, Marisa Monte e Carlinhos Brown

Israel não era um plano ou uma meta definidos a priori. Simplesmente aconteceu, com a grata surpresa de resgatar ideias iniciais de um projeto que rabisquei logo após terminar o doutorado, ainda com a cabeça cheia de dados coletados e teorias baseadas nas inúmeras referências que digeri ao escrever a tese (muito além das citadas!). “Pra tudo tem hora certa” é a frase favorita da minha mãe. A oportunidade de pesquisa no Instituto Weizmann de Ciências veio assim, na hora certa.

Em meio à pandemia da Covid-19, a viagem para Israel parecia turva, turbulenta e distante. Tão distante que, quando a data chegou, me senti no meio de um tsunami. Incrédula. Informativos lotavam a minha caixa de entrada. Os passo a passos eram vistos e revistos com base nos gráficos de progressão do contágio da doença. Tudo podia mudar de um dia para o outro. Definir a data da viagem, comprar a passagem aérea, fazer o seguro saúde, assegurar o local da quarentena e da moradia permanente estavam entre os itens prioritários e incertos.  

Inicialmente a viagem poderia ser realizada sem visto; depois, a orientação mudou e precisei correr para obtê-lo no consulado em São Paulo. No dia do agendamento da entrevista, a notícia: Israel entraria em lockdown durante as festividades: Rosh Hashaná, Yom Kippur e Sukkot. O consulado ficaria fechado por tempo indeterminado. Com sorte, a entrevista foi agendada seis dias antes da data da viagem. 

Com a restrição do turismo, o prédio e seu entorno estavam domingueiros. Foi fácil conseguir uma vaga no estacionamento, e o café da esquina parecia não oferecer riscos com as várias mesas de espaçamento entre um cliente e outro e os enormes frascos de álcool em gel sentados no centro das mesas. Nas ruas, poucas pessoas a pé. De vez em quando um carro perdido entrava na viela. Tudo parecia correr em ritmo lento na superfície da capital financeira do país.

A experiência no consulado de Israel foi interessante e única, prova da hospitalidade dos israelitas. O agente de segurança, em tom profissional, demandou respostas rápidas e olho no olho para cada pergunta de um questionário ainda no hall de entrada do prédio. Há um ano no Brasil, ele falava bem o português. Antes de subir para o andar onde seria realizada a entrevista, sorridente, ele previu que eu voltaria de Israel com o hebraico melhor que o português dele. Depois, fora do protocolo, conheci o cônsul pessoalmente. Entusiasta da ciência e ciente de sua importância, prontamente acolheu mais uma cientista no país.   

Com a papelada em mãos e burocracia em ordem, as malas se tornaram o grande obstáculo. O que levar? Ou melhor, o que não levar? Uma mala grande para ser despachada, uma mala pequena de bordo e uma mochila compacta para o laptop foram capazes de acolher todos os itens que julguei necessários, úteis ou inúteis. Abri e fechei as malas três vezes antes de conseguir organizar e distribuir de forma inteligente os poucos mais de 23 quilos permitidos.

Confinada no meu infinito particular e alienada dos contatos por quase seis meses, acabei esquecendo de avisar os mais distantes sobre a futura jornada. Os que souberam a tempo receberam a notícia com surpresa e alegria. Alguns descreveram a jornada como de uma astronauta com destino à Marte! 

Esquecemos que Israel é logo ali. O mundo é portátil, como descreve a música “Infinito particular”, qualquer que seja a definição de mundo. Os votos e desejos por uma boa viagem e experiência enriquecedora foram bálsamos. Agora, sem uma transmissão ao vivo da missão à altura das transmissões da NASA, resta estabelecer contato por aqui.

 

Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

Crédito imagem: DALL*E
Revisão de texto: Natália Flores


Texto publicado originalmente em 04 de novembro de 2020