Ato ou efeito de limpar

Simples hábitos de higiene pessoal como lavar as mãos e tomar banho são críticos para frear o contágio de doenças. Sabão e banheiro surgiram em momentos diferentes da história e juntos institucionalizaram a cultura da limpeza. Hoje, a ordem é limpar, limpar e limpar.

Epidemias e pandemias causadas por vírus são hoje o grande desafio da saúde mundial. Nos últimos 20 anos, vimos o terror gerado por SARS-CoV (2003), H1N1 (2009), MERS (2012), Ebola (2014) e, mais recente, SARS-CoV-2 (2019). Apesar da maior abrangência e acesso a coleta de lixo, água tratada, sistemas de esgotamento sanitário e saúde pública, a vida contemporânea, principalmente nas grandes cidades, impõe desafios para a contenção dessas doenças altamente infecciosas, transmitidas por contato entre pessoas ou com objetos contaminados.

O controle e a prevenção estão na vacinação, nos tratamentos antivirais (fármacos que inibem a replicação viral) e na higiene pessoal. Entre as alternativas, a higiene pessoal se destaca por ser a mais econômica, além de reduzir a disseminação de uma gama de outros agentes microbianos causadores de doenças, muito além dos vírus. Por higiene pessoal entende-se principalmente o hábito de lavar as mãos com água e sabão (ou álcool gel com teor de 70% em casos muito específicos, como na ausência de pia ou sabão).

Palli Thordarson, professor de química da Universidade de New South Wales na Austrália, viralizou ao postar no seu Twitter que o ordinário sabão é tão bom quanto, senão melhor, que o álcool em gel. As mensagens de Thordarson chegaram antes da Organização Mundial da Saúde declarar a pandemia de COVID-19 em 11 de março de 2020. Mesmo assim, não foram suficientes para evitar que farmácias e supermercados tivessem seus estoques de álcool em gel esgotados.

Na última thread postada, Thordarson comenta sobre os dois produtos. O cientista acredita que comprar álcool em gel faz parte do imaginário coletivo que lavar as mãos é algo simples demais para combater uma pandemia. Apesar do sabão ser associado à suavidade e beleza, ignorar seu poder destrutivo é ignorar seu maior trunfo. 

 

Sabão: o aliado químico

Padrões de higiene pessoal e ambiental, bem como a introdução do banheiro como um cômodo essencial a qualquer construção, são muito recentes. Em meados de 1800, Florence Nightingale, fundadora da enfermagem moderna, estatística e divulgadora de ciência, já promovia a lavagem das mãos. No entanto, o primeiro guia endossando esse hábito para profissionais da saúde apareceu bem mais tarde, publicado pelo Centro de Controle de Doenças e Prevenção (CDC), principal instituto de saúde pública dos Estados Unidos, em 1975. 

A partir daí, o uso do sabão passa a ser o ato individual mais importante da vida em sociedade. Além de remover sujeira, o sabão previne infecções de pele, limpa ferimentos e interrompe o ciclo de transmissão de doenças quando feito por todos. 

A produção desse ingrediente crítico é bem simples e depende de uma reação química chamada saponificação, em que a mistura de gordura (o termo técnico é ácido graxo, geralmente de origem vegetal, como óleo de coco, palma e de oliva, ou animal, como sebo bovino e gordura de porco) e uma base (hidróxido de sódio ou potássio) resulta em sabão, ou melhor um sal de ácido graxo.

O sal de ácido graxo é uma estrutura híbrida com propriedades interessantes. A molécula lembra um alfinete-de-cabeça: de um lado, a cabeça hidrofílica (ama água) e de outro, a haste hidrofóbica (odeia água). A interação entre moléculas de água é maior na interface ar-água. Nessa região a água parece formar uma película elástica (propriedade conhecida como tensão superficial da água). Quanto dissolvido em água, as “hastes” do sabão fogem da água e se organizam para fora do meio líquido, separando e enfraquecendo as interações entre as moléculas de água nesta região. Quebrar a tensão superficial da água, ajuda o sabão a formar micelas (estruturas arredondadas); quando as cabeças dos alfinetes se alinham, voltadas para o exterior aquoso, e as hastes se protegem da água, no interior das micelas.

tensão superficial da água

O sabão é capaz de permeabilizar algumas células e desestabilizar membranas lipídicas. As “hastes”, com afinidade por óleos e gorduras, aprisionam sujeiras e pedaços de alguns agentes patogênicos dentro das micelas, ao mesmo tempo que permanecem dissolvidos na água, facilitando a remoção quando feito o enxágue. Apesar do álcool em gel 70% também afetar as membranas de microrganismos, sozinho é incapaz de remover os detritos da pele.

A origem do sabão é desconhecida. Diferente de artefatos arqueológicos que recontam a história de civilizações antigas, seus costumes e modos de vida, o sabão de fácil decomposição não deixou vestígios. Segundo a lenda romana, o Monte Sapo, um provável local de sacrifícios animais, é o ponto de origem. Chuvas fortes após os cerimoniais levavam gordura animal e cinzas para dentro do Rio Tibre. A mistura das duas substâncias gerava espuma e logo as mulheres perceberam que as roupas ficavam mais limpas quando lavadas nessas águas.

Os egípcios também produziam sabão, provavelmente usando óleo de gergelim, linhaça ou mamona, ao invés de gordura animal, em combinação com uma substância alcalina, como carbonato de sódio ou potássio (a soda), obtida das cinzas de plantas halófitas. Essas plantas suculentas vivem em regiões marítimas ou costeiras; por isso, acumulam grande quantidade de sal em seus tecidos. Até a Idade Moderna, plantas halófitas seriam usadas como fonte de soda e o sabão considerado um item de luxo. 

plantas halófitas

Banheiro: o aliado físico

Imagine um dia que já amanhece quente. No trajeto para o trabalho, gotas de suor brotam do seu rosto. Depois de uma manhã cheia, você segue a pé com o sol à pino e o céu azul livre de nuvens até um restaurante próximo para almoçar e volta para o refúgio do escritório com ar condicionado. O dia passa concentrado em várias tarefas, reuniões… Na volta para casa, o calor emana do concreto e do escapamento dos carros parados no trânsito. O suor pinga. Você chega em casa e qual o maior desejo? Imagino, um banho!

A espuma branca do sabão descendo pelo ralo, o cheiro frutado do shampoo e o ar de discoteca retrô, com o vapor d’água condensando nos azulejos, espelho e box, faz do banheiro um lugar festivo. O banho diário é um hábito que purifica e renova. Porém, na história da humanidade nem sempre foi assim.

Na Roma e Grécia Antigas, os banhos públicos eram espaços de socialização e embelezamento. A preferência era por esfoliação do corpo, usando argila, cinzas ou areia, seguida de aplicação de óleo vegetal. Já na Idade Média, os cristãos viam os banhos como hábitos decadentes e obscenos. Segundo Santo Jerônimo, o banho, principalmente em água quente, era pecado. Santo Benedito, fundador da ordem Beneditina, permitia banhos corporais completos apenas em datas festivas do calendário cristão. A sujeira e o mau odor eram celebrados e tolerados à base de incensos.

Do Oriente Média ao Japão, os padrões de limpeza eram outros. Para os muçulmanos, por exemplo, o banho diário era um ritual endossado pelo profeta Maomé. Os banhos turcos, extensões das tradições greco-romanas, eram comuns, assim como o uso do sabão, que foi provavelmente re-introduzido na Europa como item de higiene pessoal por mouros praticantes do Islão. 

A limpeza é metade da fé

Profeta Maomé

Com o passar do tempo, as águas ganharam status terapêutico no Ocidente e o turismo médico para regiões de águas termais explode. A alegria dos banhos é redescoberta. No entanto, somente com a popularização dos banheiros é que os hábitos de higiene pessoal tiveram ampla e irrestrita adoção.

A união da pia, do vaso sanitário e do chuveiro em um mesmo cômodo é uma revolução arquitetônica do final do século XIX e início do século XX e ocorreu independentemente do aparecimento de água encanada e do esgoto. As peças foram colocadas juntas para simplificar e baratear a construção do encanamento. No início, a inovação era restrita às camadas sociais mais abastadas e somente quando atingiu as massas modificou hábitos e a cultura, incluindo a percepção de status social, as ideias sobre conveniência, a forma de fazer o trabalho doméstico e os padrões de limpeza e higiene pessoal, por exemplo.

No início do século XIX, sanitaristas, acreditando erroneamente que miasmas (cheiro ruim de putrefação) causavam doenças, criaram movimentos para drenar pântanos, implementar a coleta de lixo e instalar sistemas de esgoto. As medidas reduziram os miasmas e mais do que isso, evitavam a disseminação de insetos e roedores, vetores de doenças. Quando aliada à higiene pessoal, a reforma sanitária aumentou significativamente a saúde da população, reduzindo a mortalidade infantil e aumentando a expectativa de vida. O controle da sujeira passou a ser visto como um valor da sociedade e também um direito cívico.

Nos séculos anteriores, tomar banhos uma vez por semana quando muito era mais que suficiente. Transportar, aquecer e descartar a água era trabalhoso. No entanto, a partir do século XIX, tomar banho com mais frequência era sinal de status social. Limpeza virou marca de superioridade. Os banhos se tornaram mais populares com a aceitação religiosa e a recomendação médica. Com o passar do tempo, a classe média também adotou os banhos como rotina e a construção dos banheiros se tornou imprescindível.

Os hábitos de higiene pessoal mudaram significativamente no ocidente a partir de 1910. A ditadura da limpeza foi finalmente instaurada! Hoje sabão e banheiro são os aliados mais eficazes que a humanidade tem para conter a pandemia atual do COVID-19 e o avanço de agentes patogênicos que ainda estão por vir. 

Bibliografia

AIELLO, A. E.; LARSON, E. L.; SEDLAK, R. Hidden heroes of the health revolution. Sanitation and personal hygiene. Am. J. Infect. Control., v. 36, p. S128-S151, 2008. 

CURTIS, V. A. A natural history of hygiene. Can. J. Infect. Dis. Med. Microbiol., v. 18, n. 1, p. 11-14, 2007.

LARSON, E. Hygiene of the skin: when is clean too clean? Emerg. Infect. Dis., v. 7, n. 2, p. 225-230, 2001.

KONKOL, K. L.; RASMUSSEN, S. C. An ancient cleanser: soap production and use in antiquity. In: Chemical Technology in Antiquity. North Dakota: ACS Symposium Series, 2015, cap. 9, p. 245-266.

CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION. Guideline for hand hygiene in health-care settings: Recommendations of the healthcare infection control practices advisory committee and the HICPAC/SHEA/APIC/IDSA Hand Hygiene Task Force. MMWR, v. 51, n. RR- 16, 2002. Disponível em: rr5116.pdf. Acesso em: 26 de março de 2020.

Agradecimento à Graciele Almeida de Oliveira do Blogs de Ciência da Unicamp pela revisão do texto e sugestões.

Crédito imagem de capa: Burst por Pexels.


Texto publicado originalmente em 26 de março de 2020

 

A corrida espacial turística é público-privada

Vai para onde: Lua ou Marte? Na reportagem, o astrônomo Ricardo Ogando, do Observatório Nacional, fala sobre o recente avanço das viagens com tripulação feito pela SpaceX, com apoio e financiamento da NASA. O marco histórico atingido na missão SpaceX Demo-2 é o primeiro passo para o turismo espacial comercial. 

No sábado, 30 de março de 2020, às 16:22 (horário de Brasília), em meio a pandemia da COVID-19, os astronautas Robert Behnken e Douglas Hurley a bordo da cápsula Dragon acoplada ao foguete Falcon 9 partem de Cabo Canaveral na Flórida em direção à Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês). O objetivo da missão, denominada SpaceX Demo-2, foi testar a atracação da Dragon à ISS, fazer testes simulados para demonstrar o sistema completo de transporte de tripulação e retornar à Terra sem danos ou prejuízos físicos e materiais. A missão deve terminar em agosto deste ano.

“Nos últimos anos, os voos espaciais foram conduzidos por agências estatais, como a NASA e a Roscosmos da Rússia, a partir do Cosmódromo de Baikonur, no Cazaquistão. A SpaceX desenvolveu uma nova cápsula e um novo foguete reutilizável com o intuito de substituir os ônibus espaciais. A nova tecnologia devolveu a capacidade de lançamento aos Estados Unidos. Esse foi o primeiro voo tripulado no país desde julho de 2011”, disse Ricardo Ogando, astrônomo do Observatório Nacional, localizado no Rio de Janeiro.

Elon Musk é o nome símbolo da atual conquista espacial, que canaliza ciência, tecnologia e investimentos pesados dos setores público e privado. O bilionário de múltiplas facetas e credenciais – engenheiro, designer, empreendedor e filantropo – fundou a SpaceX em 2002, empresa responsável pela missão. O sonho de Musk é fazer da Lua e de Marte destinos turísticos possíveis para a população civil.

Segundo Ogando, a missão é um grande feito mesmo que indissociável do momento crítico atual. “O feito está conectado à crise política. Imagina-se que viagens espaciais inspirem ideais mais elevados, como na série de ficção científica Jornadas nas Estrelas. Infelizmente, o que se vê, em geral, é que os fãs do Elon Musk são bastante tóxicos e que a nova corrida espacial é uma cortina de fumaça dos males feitos do governo Donald Trump.”

Apesar da controversa figura de Musk, transvertido por fãs em guru do futuro, o voo com astronautas americanos, tecnologia americana e partindo de solo americano marca a independência dos Estados Unidos na conquista espacial científica e comercial. O acesso ao espaço passa pela revolução no transporte demonstrada na missão.

A SpaceX criou a série Falcon de foguetes de lançamento e também a cápsula Dragon, reutilizável e versátil no transporte de carga ou passageiros, dependendo de poucas adaptações. Para aumentar a segurança, baratear custos e agilizar inovações, a estratégia da empresa foi concentrar processos e desenvolver tecnologias internamente, minimizando parcerias com terceiros.

“Empresas focadas em um projeto podem otimizar e baratear desenvolvimentos. Agora, ao visar lucro, empresas privadas podem negligenciar certos requerimentos para diminuir custos ou mesmo desconsiderar a prestação de contas à sociedade. O resultado pode ser negativo. O caso dos satélites Starlink ilustram a questão: os milhares de satélites de comunicação em órbita têm brilho excessivo, atrapalhando as observações do céu por amadores e profissionais. O brilho é um problema conhecido e poderia ser evitado se considerado desde o início do projeto. Agora fazem gambiarras para resolver”, explica Ogando.

Na lista de tecnologias da SpaceX está o Falcon 1, um foguete de dois estágios, que usa como combustível propulsor RP-1 (um tipo de querosene para foguetes) e oxigênio líquido. Já o Falcon 9 é similar a primeira versão, com capacidade de colocar em órbita uma carga superior (até 12,500 kg). Há também a cápsula Dragon, desenhada inicialmente para atender às demandas da NASA de transporte de carga à ISS (ida e volta) e cujo desenvolvimento e missões, como a SpaceX Demo-2, são patrocinadas pelo Programa Comercial de Serviços de Transporte Orbital (COTS) desde 2006.

“O grande barato do Falcon 9 são os estágios que voltam e pousam na Terra em pé e de forma controlada. Nos antigos ônibus espaciais, os estágios caíam, em geral, no oceano e a recuperação por navios era muito cara e complicada. A cápsula Crew Dragon ainda cai no oceano, já que não tem combustível suficiente para a volta, mas as novidades incluem, além do design moderno, as telas touch, a opção manual ou de auto-acoplagem à ISS e um mecanismo de segurança para problemas durante o lançamento, por exemplo, uma explosão”, explica Ogando.

As roupas dos astronautas também estampam as aspirações do feito, como comenta Ogando. “O visual é bem mais moderno e vistoso do que as roupas abóboras dos ônibus espaciais e foram desenhadas pelo figurinista Jose Fernandez dos filmes de Hollywood, como Mulher Maravilha. Além disso, resistem a despressurização em caso de emergência, mas não são preparadas para caminhadas espaciais.”

Até o momento, a missão foi bem-sucedida e representa o primeiro passo para a SpaceX obter a certificação necessária para o Programa de Tripulação Comercial da NASA. “A facilidade de acesso ao espaço pode permitir mais experimentos na ISS e mais satélites e sondas no céu para melhorar nossa comunicação e conhecimento do nosso planeta e do universo. Para a ciência brasileira, o feito pode inspirar gerações de novos cientistas. O lançamento foi coberto por diversos canais e acompanhado por milhões de pessoas no Brasil e no mundo”, relata.

Juntas, NASA, SpaceX e também a Boeing vão projetar, construir, testar e operar o transporte humano para a órbita baixa da Terra (2.000 Km). O sucesso vai além da exploração científica espacial e demonstra que parcerias público-privadas podem alavancar empreendimentos comerciais lucrativos. As próximas metas da SpaceX incluem aumentar a quantidade de carga e o número de tripulantes por voo.

“Não há necessidade de voos tripulados para a Lua ou Marte para aprendermos sobre eles. Esses voos tripulados são caros e perigosos. Sondas robóticas podem muito bem fazer esse trabalho. Além disso, corridas espaciais não são sustentáveis, por isso chegamos na Lua há 50 anos e nunca mais voltamos. Nosso planeta é o único que temos, aqui encontramos o modo fácil de sobreviver no universo. Cuidar dele é muito melhor e mais fácil do que tentar terraformar Marte”, finaliza Ogando.  

Lua e Marte podem vir a ser destinos turísticos possíveis para os círculos sociais de Musk. Para a maioria da população, na iminência de uma crise climática sem retorno, com extinção de grande parte da diversidade de flora e fauna, a sobrevivência e manutenção dos meios de vida ainda está na Terra. A esperança é que as novas tecnologias, desenvolvidas na conquista espacial comercial, possam resolver problemas mais urgentes – em solo firme.

Bibliografia

DREYER, L. Latest developments on SpaceX’s Falcon 1 and Falcon 9 launch vehicles and dragon spacegraft. IEEE Aerospace conference, 2009. doi: 10.1109/AERO.2009.4839555

Fonte entrevistado: Agência Bori

Crédito imagens: SpaceX no Pexels

Revisão de texto: Natália Flores


Texto publicado originalmente em 26 de junho de 2020