Estupidez

A estupidez dos “especialistas” de internet em tempos de pandemia: o efeito Dunning-Kruger

Por Daniel Nunes e Davi Carvalho

A principal causa dos problemas no mundo de hoje é que os idiotas estão cheios de certeza enquanto as pessoas inteligentes estão cheias de dúvida.” (Bertrand Russell, em o Triunfo da estupidez)

Você provavelmente já se deparou com comentaristas de redes sociais falando com convicção sobre um determinado tópico sem ter uma dose razoável de conhecimento necessário para isso, não? No contexto de uma pandemia, a coisa fica ainda pior: não faltam “especialistas” a versar sobre assuntos que pouco ou nada sabem, mas sempre cheios de certeza. “É só uma gripezinha”, alguns defendiam, convictos, sobre a doença causada pelo coronavírus, em que pesem várias evidências em contrário.  É muito estranho que, mesmo com bem pouco conhecimento,  tenham tanta certeza, não é mesmo? Na verdade, esse é um fenômeno bastante comum. Quando se depara com os “especialistas” de internet (e mesmo fora dela), você assiste à manifestação de um mecanismo psicológico humano dos mais recorrentes: o efeito Dunning-Kruger.

Entendendo o conceito

“A ignorância gera autoconfiança com mais frequência do que o conhecimento“. (Charles Darwin)

 O efeito Dunning-Kruger é um problema ligado à metacognição — a habilidade do indivíduo em monitorar seus processos cognitivos e identificar suas limitações de conhecimento e compreensão em diversas situações. Esse efeito se manifesta mais comumente nas pessoas como a incapacidade de reconhecer sua própria ignorância, alimentando, assim, uma ilusão de superioridade e conhecimento superestimados. De forma mais direta: quanto mais ignorante em determinado assunto, mais confiante a pessoa pode se sentir ao opinar sobre ele. Isso te soa familiar?

O efeito leva o nome dos pesquisadores que primeiro o estudaram e a história de sua descoberta científica é das mais curiosas, quase cômica.

O assalto à razão – a descoberta do efeito Dunning-Kruger

Um caso pitoresco, ocorrido em 1995, chamou a atenção dos psicólogos David Dunning e Justin Kruger da Universidade de Cornell, EUA.  Um sujeito chamado McArthur Wheeler acreditava ter o poder de ficar invisível ao passar suco de limão no rosto e, certo dessa habilidade, assaltou dois bancos sem usar máscara alguma. Wheeler, que chegou a piscar para uma das câmeras de segurança em um dos assaltos, foi, claro, facilmente identificado pela polícia após analisarem as imagens. O mais intrigante na atitude de Wheeler é que ele não apresentava sintomas de transtornos psiquiátricos e nem estava sob efeito de entorpecentes; ele realmente acreditava em sua invisibilidade diante das câmeras ao cometer o crime. Tanto ele acreditava nisso que, relataram os policias, Wheeler ficou chocado que seu plano infalível (?) tivesse falhado e lhes teria dito, espantado: “Mas eu usei o suco de limão!”

O que a princípio era um caso surpreendente e cômico, motivou um criterioso estudo publicado por Dunning e Kruger [1], em 1999. Nesse estudo, os pesquisadores investigaram o que leva um indivíduo a sentir-se tão confiante e a superestimar tanto suas habilidades sobre algo, ainda que não tenha um conhecimento razoável para tal.  Essa postura, evidentemente, pode levar a pessoa a um comportamento absolutamente estúpido e, paradoxalmente, a se orgulhar disso.

Em alguns testes, como de gramática e lógica, aplicados a estudantes da universidade como voluntários, os pesquisadores descobriram que os alunos que ficaram entre os 25% de pior rendimento superestimaram grosseiramente suas notas nos testes, avaliando a si mesmos de forma mais positiva do que os alunos mais competentes. A conclusão à que chegaram Dunning e Kruger foi a de que a ignorância gera realmente mais confiança e segurança do que o conhecimento.

“Taxa de confiança x Conhecimento real” [Fonte: https://medium.com/altruísmo-eficaz-brasil/]

No entanto, é também possível que pessoas competentes sofram de inferioridade ilusória, duvidando de suas próprias habilidades e subestimando suas capacidades, muitas vezes acreditando que são uma fraude. Quando isso ocorre, passam a acreditar que outros indivíduos menos capacitados estão no mesmo nível delas em termos de de conhecimento e desenvolvimento de habilidades. Essa distorção, que é o oposto do efeito Dunning-Kruger, é chamada síndrome do impostor e foi descrita, em 1978, pelas psicólogas Pauline Rose Clance e Suzzane Imes, da Universidade Estadual da Geórgia, EUA [2].

A esta altura, ao entender o que é e como funciona o efeito Dunning-Kruger, é bem possível que você já esteja se lembrando de situações do Brasil atual nas quais viu esse mecanismo psicológico ocorrendo, não? 

Dunning-Kruger, estupidez e política em tempos de pandemia 
“Especialista” de internet no ringue (Fonte: Renato Machado – cartunista)

Tal como ocorre em época de Copa do Mundo, quando todo brasileiro se torna técnico de futebol, no Brasil atual, em função da pandemia de covid-19, muitos se tornaram epidemiologistas e microbiologistas. Até quando deve durar a quarentena? A cloroquina deve ser utilizada por quem contrair o vírus? Há milhares de cidadãos ávidos para responder a perguntas como essas país afora.

Desnecessário seria dizer que, em um país formalmente democrático, todos são livres para ter uma opinião e para expressá-la nas redes sociais ou fora delas. Quando um cidadão comum exerce seu inalienável direito de expressão e emite uma opinião pouco ou nada embasada, distante da realidade, isso pode até ter algum impacto negativo em termos da influência de sua afirmação sobre a concepção de outras pessoas. Essa influência, porém, tende a ser bastante limitada no caso do cidadão comum. Em geral, se existente, ela é limitada a um círculo social restrito, como sua família e amigos.

No entanto, algo bem mais problemático ocorre quando pessoas em posições-chave  no mundo da política reproduzem, com convicção, — exatamente por serem ignorantes — opiniões anticientíficas, enviesadas ou completamente equivocadas [3]. Do ministro das Relações Exteriores atribuindo o aquecimento global à posição de termostatos próximos a asfalto quente [4], passando pelo presidente criticando material didático por ter “muita coisa escrita” [5], até, mais recentemente, o ministro interino da Saúde afirmando que as regiões norte e nordeste estão ligadas ao inverno do hemisfério norte [6], tem sido muitos os exemplos de gente em posições-chave opinando, com curioso grau de segurança, sobre assuntos que nitidamente desconhecem.

O efeito Dunning-Kruger não tem lado ideológico

Dada a capacidade de lideranças políticas de influenciarem milhões de seguidores, em qualquer tempo isso já seria um problema; torna-se ainda mais grave, porém, podendo atentar contra a saúde pública, em um contexto de pandemia global. E na conjuntura atual, fica claro que o efeito Dunning-Kruger não poupa líderes de nenhum dos lados do espectro político-ideológico. Tanto Jair Bolsonaro, no Brasil, quanto Nicolás Maduro, na Venezuela, insistem, convictos, mesmo sem fundamentos científicos sólidos, no uso da cloroquina no combate ao coronavírus [7]. Maduro, líder latinoamericano de esquerda, chegou a postar uma receita caseira de ervas como antídoto ao coronavírus no Twitter [8]. Nos Estados Unidos, Donald Trump chegou a sugerir que injetar desinfetante poderia ajudar no combate ao coronavírus (sim, você leu certo), o que levou ao aumento de casos de intoxicação por desinfetante, em Nova York, horas após a fala do presidente estadunidense [9].

Como é possível que, mesmo autoridades que deveriam se fiar pelos dados e pela ciência, ajam dessa maneira? Por mais trivial que a explicação possa parecer, aí vai: faltam a eles as habilidades necessárias para reconhecerem sua ignorância, ou seja, sua ignorância é tal que os impede de saberem o quão ignorantes são. Como bem resume o psicólogo social David Dunning: “Se você é incompetente, não tem como saber que é incompetente (…) As habilidades que você necessita para produzir uma resposta certa são exatamente as habilidades que você precisa ter para reconhecer o que é uma resposta certa.” [10]

Uma conclusão pela humildade

“Todo mundo é ignorante, mas em assuntos diferentes” Will Rogers (1879-1935)

De agora em diante, toda vez que a leitora se deparar com palpiteiros de plantão pela internet (mas também autoridades políticas), cheios de confiança, apesar do pouquíssimo conhecimento sobre o que falam, já saberá que está diante de um viés cognitivo muito comum. É possível também que esteja se perguntando se há maneiras de evitar o efeito Dunning-Kruger no seu próprio comportamento. Você não quer contribuir para a desinformação já colossal na internet, não é mesmo? Saiba que o primeiro passo, nesse sentido, já foi dado: saber da existência do efeito. É fundamental termos a humildade de reconhecer que sabemos muito pouco sobre muitas coisas. “Só sei que nada sei”, diz a célebre frase atribuída ao filósofo grego Sócrates. Sejamos socráticos. E isso porque, parafraseando o historiador norteamericano Daniel Boorstin, o grande inimigo do conhecimento não é a ignorância. É a ilusão de conhecimento.

E caso a leitora seja como nós, que vivemos nos envolvendo em debates na internet (quem nunca?), ao entrar na disussão de um tema qualquer, sugerimos, como “vacina” ao Dunning-Kruger, que se lembre sempre do seguinte provérbio popular, comum no mundo de língua inglesa: ao argumentar com um tolo, certifique-se que ele não está fazendo a mesma coisa.

REFERÊNCIAS:

  1. Kruger, J., & Dunning, D. (1999). Unskilled and unaware of it: How difficulties in recognizing one’s own incompetence lead to inflated self-assessments. Journal of Personality and Social Psychology, 77(6), 1121-1134. doi:10.1037/0022-3514.77.6.1121. [Link];
  2. Clance, P.R., Imes, S. (1978). The Impostor Phenomenon in High Achieving Woman: Dynamics and Therapeutic Intervention. Georgia State University, University Plaza Atlanta, Georgia 30303 [Link];
  3. Hornsey, M.J., Finlayson, M.,Chatwood, G.,Begeny, C.T. (2020). Donald Trump and vaccination: The effect of political identity, conspiracist ideation and presidential tweets on vaccine hesitancy. Journal of Experimental Social Psychology. Volume 88, Masy 2020, 103947. [Link].
  4. Marin, D.C. (2019) Chanceler atribui aumento da temperatura da Terra a asfalto quente. Revista Veja, edição de 30 de maio de 2019 [Link];
  5. (2020). Bolsonaro diz que livros didáticos tem “muita coisa escrita” e pede estilo mais “suave”. Jornal Estadão, Edição de 3 de janeiro de 2020 [Link];
  6. (2020) Ministro interino da Saúde liga inverno europeu ao Norte e Nordeste e vira meme. Revista Istoé, Edição de 10 de junho de 2020. [Link];
  7. Barrucho, L. (2020). Cloroquina “une” Bolsonaro e Maduro em meio à pandemia de coronavírus. BBC News Brasil em Londres, Edição de 15 de maio de 2020 [Link];
  8. (2020) Post de Maduro com recomendação de mistura de ervas para combater coronavírus é deletado pelo Twitter. Estado de Minas – Internacional, Edição de 26 de março de 2020 [Link];
  9. (2020) NY registra aumento de intoxicação por desinfetante após sugestão de Trump. Revista Exame, Edição de 26 de abril de 2020 [Link];
  10. Dunning, D. (2018). The best option illusion in self and social assessment. Pages 349-362, Self and Identity – Received 17 Sep 2017, Accepted 11 Apr 2018, Published online: 24 Apr 2018 [Link].

7 comments

  1. EU LI UM LIVRO DO Bertrand Russell NA MINHA PRÉ ADOLESCÊNCIA, QUE DEU NÓ NOS MEUS NEURÔNIOS, QUE ME AJUDARAM A SER MAIS CRITICO, OBRIGADO PELO ARTIGO

    1. Obrigado por seu comentário, Sérgio! Sei bem como é esse sentimento, já vi médicos também, nesta pandemia, defendendo os maiores absurdos, como tratamentos comprovadamente ineficazes para o Covid-19. Acho que, nesse caso, entra o componente da ideologia política, algo capaz de deixar as pessoas imbecilizadas. Ainda que tenham formação e conhecimento em suas áreas, é como se a ideologia turvasse-lhes a visão da realidade por completo. Em breve escreverei aqui no blog sobre isso também.

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