“Ser mulher”, “ser enfermeira” e “ser cientista”

Por Lilian Ayres

A feminização do cuidado na saúde, desde muitos séculos, contribuiu para que a profissão de enfermagem fosse majoritariamente constituída por mulheres. A prática da enfermagem está diretamente associada ao cuidado e sempre esteve vinculada a ideia de um trabalho extensivo do lar e aos atributos femininos como delicadeza, fragilidade, pureza, altruísmo, disponibilidade e submissão. Para a sociedade brasileira, ainda permanece a visão que esta prática do cuidado está relacionada com o empirismo, corroborando para a falta de reconhecimento científico da nossa profissão.

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Atualmente, percebo que a enfermeira está inserida em diversos cenários como unidades de saúde, ambulatórios, hospitais, maternidades, secretarias de saúde, planos de saúde, exercendo cargos assistenciais e gerenciais. Além disso, a enfermeira vem buscando sua legitimidade no campo científico e por isso, temos avanços no que concerne à inserção e à participação dela neste campo por meio da pós-graduação, como estudante, ou nas universidades e centros de pesquisas, como profissionais. Porém, é baixa a proporção de mulheres em cargos como professora associada ou titular nas universidades. De fato, ainda os homens são os predominantes.

Para obter estes cargos, de acordo com a hierarquia acadêmica, alguns critérios são utilizados, entre eles, a produção e a publicação do conhecimento científico em revistas de “alto impacto”. E ainda, é necessário ter dedicação integral ao trabalho, conviver com relações competitivas e relações de poder entre mulher e homem. Neste contexto, depreendo que a enfermeira, ao longo do tempo, vem conquistando e construindo o seu espaço na ciência, porém, ainda precisamos avançar e buscar reconhecimento e valorização no campo científico.

Para entender a trajetória da enfermeira na ciência, é necessário considerar as questões de gênero que se fazem presentes na vida acadêmica e que determinam e condicionam a nossa produção científica, bem como, o modelo patriarcal em que prevalece na sociedade brasileira o qual influencia diretamente no cenário das universidades e instituições de pesquisa. Com efeito, ela enfrenta desafios e obstáculos invisíveis que favorecem essa situação.

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Adiciona-se, ao ambiente do trabalho, a existência da conciliação das tarefas domésticas, o ser esposa e o ser mãe. Apesar de incentivos à paternidade e a participação do pai na criação dos filhos e nas atividades domésticas, percebo que geralmente a mulher ainda é a responsável principal por esse cuidado e educação, além daqueles relacionados à casa. Entretanto, ressalto que essa divisão sexual do trabalho e concepções de maternidade ou paternidade é plural, sendo influenciada por fatores culturais, sociais, econômicos e políticos.

A título de ilustração, entre os anos de 2008 e 2014 me dediquei à carreira científica por meio da realização de um mestrado e doutorado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Concomitantemente, ocupei cargos como enfermeira pesquisadora e assistencial. Além da minha carreira profissional e científica, havia as questões pessoais como marido, família, amigos, casa, entre outros. A escolha da maternidade veio após o término do doutorado em 2014. O meu investimento científico atrelado ao profissional e pessoal resultou em baixa produção científica, apesar de compor atualmente um cargo como docente em uma universidade federal.

Tal situação é encontrada em diversas histórias de enfermeiras. Algumas optam pelas famílias, outras pela carreira profissional e/ou científica e outras preferem conjugar essas situações. Com isso, convivemos com cansaço físico e mental, sobrecarga de trabalho e sentimentos como culpa, solidão, ansiedade, entre outros. E com intuito de minimizar essa situação, encontramos no campo científico mulheres que escolhem jornadas reduzidas ou preferem não entrar no âmbito competitivo das produções científicas.

Ademais, ao analisar os tipos de pesquisas realizadas pelas enfermeiras há uma concentração em pesquisas qualitativas, quantitativas e poucos estudos experimentais que visem avaliar o cuidado de enfermagem baseado em evidência científica. Acredito que tal situação favorece para a manutenção da visão que a prática do cuidado está pautada no empirismo, na baixa valorização profissional e falta de reconhecimento científico.

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Desta forma, abordar sobre a enfermeira no campo científico, implica em entender que este contexto é marcado por situações que limitam, dificultam e determinam a participação dela na ciência. Existem sinais de modificações nas relações de gênero, contudo, é fundamental tentar construir cenários de trabalhos externos e domésticos que possibilitem relações mais equânimes e que contribuam para o crescimento da mulher, sendo este na ciência da enfermagem ou onde ela escolher.

Sobre Lilian Ayres 1 Artigo
Especialista em Enfermagem na Atenção a Saúde da Mulher/IFF(Fiocruz) Doutora em Ciências da Saúde e Enfermagem/UNIRIO Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem e Medicina (DEM)-UFV

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