Por Livia Savóia e Juliana Di Beo
Santa Catarina deu um passo inédito no final de julho: inseriu os efeitos das mudanças climáticas em sua Lei de Diretrizes Orçamentárias, o que na prática define que o Governo do estado terá que incluir os impactos ambientais em seu orçamento. O feito vem como resposta aos danos ambientais sofridos no final de 2023. A medida vem em boa hora, pois estudo publicado por pesquisadores da Universidade do Vale do Itajaí (Univali) alertam para o aumento de desastres naturais, especialmente em áreas urbanizadas como Florianópolis.
O artigo de revisão lançado em junho na revista nacional sobre ciências ambientais, Brazilian Journal of Aquatic Sciences and Technology, aponta uma série de impactos que já estão atingindo o estado catarinense e podem causar mais danos nas próximas décadas. Os principais impulsionadores desses impactos são o aumento do nível do mar e eventos climáticos extremos, como ciclones extratropicais, chuvas e secas severas. A falta de planejamento urbano associado a esses impulsionadores trará prejuízos à pesca, maricultura, turismo, setor portuário, saúde pública e à conservação da biodiversidade.
Como a população tem desenvolvido suas atividades atreladas ao litoral de Santa Catarina, em uma relação bastante próxima com a zona costeira, os efeitos das mudanças climáticas têm exposto o Estado aos riscos e demandado mais avaliações sobre os impactos. O estudo coordenado pelo oceanógrafo José Angel Alvarez Perez, pesquisador da Univali, indica que a transformação do território na região litorânea, em decorrência da expansão urbana desordenada, somada ao aumento de eventos extremos, vão deixar os ecossistemas costeiros mais vulneráveis à degradação.
Alerta para a saúde pública e conservação da biodiversidade
Um exemplo apontado pelo estudo é o processo de eutrofização em praias de enseadas, que é impulsionado pelas alterações climáticas e atribuído ao uso do solo, a falta de saneamento, ao turismo e outras atividades econômicas. A eutrofização é um processo de poluição orgânica e despejo de nutrientes em excesso nas águas que torna rios, lagos e oceano com coloração turva devido a proliferação de algas e bactérias decompositoras. Esse processo tem se tornado mais frequente e está associado também à floração de microalgas tóxicas (dinoflagelados), que causam o fenômeno da maré vermelha.
Tudo isso compromete a balneabilidade das praias, o turismo, o lazer e a saúde dos ecossistemas, pois diminui a oxigenação e qualidade da água, afetando diretamente a saúde pública e a conservação da biodiversidade. Também impacta a pesca, diminuindo a disponibilidade de pescados e contaminando muitos animais marinhos, como moluscos bivalves (ostras, mexilhões, vieiras e berbigões) — que estão em sinal de alerta essa semana no litoral paulista com possibilidade de apresentar alto nível de toxinas da microalga (Dinophysis acuminata).
Para se ter uma ideia, a toxina da maré vermelha pode levar a intoxicação paralisante, diarreia e alguns casos até a morte, caso haja a ingestão de alta concentração da toxina. No ar contaminado, o odor da maré vermelha é parecido com o gás de cozinha e se inalado pode causar dentre outros sintomas, enjoo, tosse e dor de garganta.
Outra questão de saúde pública apontada pelo estudo envolve queimaduras por águas vivas durante o verão. Apesar de ser um fenômeno comum, principalmente pela existência de espécies menos nocivas aos banhistas (Hydrozoa), os pesquisadores apontam a possibilidade de agravamento do fenômeno devido às alterações do clima. Além disso, a presença de espécies letais que não ocorrem naturalmente na região, como as Cubozoas, pode ser mais frequente.
O aquecimento das águas e o processo de acidificação marinha, leva espécies de Cubozoa a regiões onde antes não eram vistas. Essas espécies perdem seus sentidos de orientação e equilíbrio, que são regulados por estatocistos – organelas formadas por “estatólitos” calcáreos passíveis de dissolução e malformação em um oceano progressivamente mais ácido.
No litoral catarinense, diversas espécies migratórias incluindo aves e mamíferos marinhos que aparecem em determinadas épocas do ano estão sendo afetados pelas alterações do clima. Uma espécie emblemática é a baleia franca (Eubalaena australis) que, durante os meses de inverno, utiliza o litoral sul catarinense como local de reprodução e, após o período reprodutivo, se desloca para suas áreas de alimentação em águas antárticas. No entanto, com o aumento da temperatura do oceano, a disponibilidade de krill diminui, prejudicando o sucesso reprodutivo das baleias francas no sul do Brasil.
Impactos nos ecossistemas costeiros e no planejamento urbano
Eventos climáticos extremos têm potencial de destruir propriedades, causar inundações severas e também afetar a topografia de praias e vegetação de dunas e manguezais, essencial para a proteção costeira. Estima-se que entre 20% e 90% das áreas costeiras alagadas podem desaparecer até 2100, como marismas, manguezais e estuários, como resultado de desmatamento e crescimento urbano desordenado, agravada pelo aumento do nível do mar.
Além disso, a erosão costeira intensificada, devido ao aumento do nível do mar e à frequência de inundações, deve reduzir a extensão de praias arenosas e mudar seu relevo.
Segundo o estudo, as cidades da região central da costa de Santa Catarina, onde há maior ocupação urbana, tendem a ser mais suscetíveis aos efeitos das mudanças do clima. Com isso, Florianópolis está com risco aumentado de ocorrência de desastres naturais, devido a possibilidade de chuvas intensas. O litoral centro-norte, onde está Balneário Camboriú, é naturalmente suscetível a alagamentos, devido à ocupação urbana, e a baixa hidrodinâmica formada por sistemas estuarinos. Na região do litoral sul, os riscos de desastres naturais atrelados a chuvas são reduzidos, pela baixa taxa de ocupação urbana e a presença de grande extensão de ecossistemas costeiros, restingas, dunas e lagoas costeiras.
Segundo o estudo, a ocupação urbana impõe efeitos sinérgicos a erosão costeira associada a áreas propícias a inundações, porque apresentam limitações de drenagem, impermeabilização do solo e influência direta dos regimes de marés
Setores vitais para economia são afetados
Devido ao aumento da temperatura do oceano, regiões marinhas estratificadas estão se deslocando para os pólos, levando espécies tropicais e subtropicais para latitudes maiores. Esse processo chamado de “tropicalização”, segundo o artigo, tem afetado gradativamente o setor pesqueiro de Santa Catarina.
Com essa tropicalização do oceano, espécies de águas quentes, como a corvina (Micropogonias furnieri), o camarão-rosa (Penaeus spp.) e o peixe porco (Balistes capriscus) tendem a se tornar mais disponíveis à pesca, enquanto espécies de águas frias, como a castanha (Umbrina canosai), a merluza (Merluccius hubsi) e o peixe-sapo (Lophius gastrophysus) têm se tornado progressivamente menos disponíveis.
Segundo o artigo, o impacto da “tropicalização” da fauna no desempenho econômico da pesca industrial e artesanal de Santa Catarina apresenta-se como um tema crucial a ser abordado pelas ciências
Além disso, os impactos das mudanças climáticas, como a diminuição da concentração de oxigênio dissolvido nas águas e a acidificação como consequência do aumento de CO2 atmosférico tem potencial para afetar organismos de cultivo. Muitas formas larvais de invertebrados marinhos, incluindo larvas véliger de bivalves, apresentam sensibilidade ao baixo pH, além de problemas associados à calcificação de suas conchas.
O setor portuário, também será afetado pelo aumento de eventos extremos, seja pelo aumento do nível do mar por um lado, com o aumento da frequência de marés altas e ressacas, seja pelo efeito de eventos de grandes precipitações no lado continental, o que resulta no aumento da probabilidade de enchentes, no represamento de água pelas frentes frias que eventualmente ocorrem durante as enchentes e ainda pelo assoreamento dos canais de navegação
Soluções baseadas na natureza e nas pessoas
“Esse artigo foi desenvolvido com o intuito de chamar a atenção principalmente da academia e dos cursos de pós-graduação em ciências ambientais do estado para direcionar esforços à compreensão das possíveis transformações ecossistêmicas em curso na zona costeira e suas consequências às atividades humanas”, resumiu Perez, em matéria no G1.
Os pesquisadores do estudo enfatizam a urgência de ações baseadas em evidências científicas para mitigar os impactos, prever os desastres e evitar perdas. “Os impactos permanentes podem estar acontecendo lentamente – a pesca, por exemplo, tem diminuído desde 2012. Sem que a ciência olhe para eles, eles ficam fora do radar até que seja tarde demais para evitar”, ressalta Perez em press release da Agência Bori.
Os pesquisadores propuseram um organograma ao final do artigo, com riscos e oportunidades de ação científica em diferentes ecossistemas e sistemas socioecológicos do estado catarinense. A análise contribui para identificar prioridades para a pesquisa científica, com ênfase no papel dos Programas de Pós-graduação em Ciências Ambientais, incentivando o preenchimento de lacunas de conhecimento para o enfrentamento das mudanças climáticas na região costeira de Santa Catarina.
O Blog Um Oceano tem parceria com a Rede Ressoa Oceano
2 comentários
Danielle Alabarce · 16 de agosto de 2024 às 23:13
Obrigada pela matéria, eu moro em Florianópolis, no campeche, e minha casa fica em frente as dunas/acesso à praia. Tenho enorme preocupação em relação a tudo isso, e estava procurando algum artigo completo para me aprofundar mais! Oremos que nossas dunas permaneçam e protejam de certa forma nossos lares!
Germana Barata · 9 de setembro de 2024 às 11:06
Pois é Danielle, importante que os cidadãos, como você, possam estar atentos e cobrar as autoridades. As eleições municipais podem ser um importante passo para acompanhar quem se propõe a pensar no meio ambiente. Boa sorte para todos nós.