Por Denis Miranda
Se você se interessa pelas comunidades costeiras e pelo tema do desenvolvimento sustentável, vai gostar de saber que um artigo publicado na última edição da revista Desenvolvimento & Meio Ambiente trouxe reflexões importantes sobre como a pesca artesanal brasileira se relaciona com a chamada Economia Azul — um conceito que valoriza o potencial econômico dos oceanos e mares, mas sempre a partir da sustentabilidade.
O estudo, liderado por Deborah Santos Prado da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), mostra de perto a relação complicada entre políticas públicas, interesses econômicos e os direitos das comunidades de pescadores artesanais. Segundo os autores da pesquisa, o conceito de Economia Azul no Brasil tem ressaltado “a agenda desenvolvimentista para o mar, calcada no potencial de grandes empreendimentos econômicos para a costa brasileira”. Neste cenário, não sobra espaço para as questões sociais como o uso de recursos pesqueiros por comunidades tradicionais.
Avaliação realizada por Eduardo Haddad e Inácio Araújo da Universidade de São Paulo (USP) estima que a economia azul brasileira movimenta 2,91% do PIB, que em 2024 foi de US$64 milhões. Porém, poucos recursos chegam aos pescadores artesanais, que somam cerca de um milhão de pessoas, de acordo com o Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP).
Deborah e coautores analisaram 133 casos de conflitos e injustiças ambientais envolvendo comunidades de pesca artesanal no litoral brasileiro, que incluem questões de degradação ambiental, disputas por territórios tradicionais, até casos de contaminação por petróleo, químicos e resíduos.

Grande parte desses conflitos está associada a projetos de energia (como petróleo e gás, mas também eólica offshore), expansão portuária, turismo e mineração, implantados sem consulta prévia às comunidades, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que reconhece os direitos dos povos indígenas e determina que sejam consultados antes de qualquer projeto que possa impactar suas terras, recursos ou modo de vida, respeitando sua cultura e autonomia.A própria liderança do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP) entrevistada pelos autores foi enfática: “Os projetos estampados com o rótulo de Economia Azul são projetos de morte para a pesca artesanal e para os povos e comunidades tradicionais pesqueiras.”
O Brasil possui leis importantes para a proteção dos recursos naturais e a regulamentação da pesca, como a Lei 11.959/2009 sobre a atividade pesqueira no Brasil. No entanto, na prática, essas normas raramente são aplicadas de maneira efetiva. Muitas comunidades sequer são consultadas antes da implantação de projetos que afetam diretamente sua sobrevivência.
Essa situação pode ser também atestada em entrevista que a Ressoa Oceano realizou com Joilton Tobias Pereira, pescador artesanal e líder comunitário na Reserva Extrativista de Cururupu (MA), em março deste ano. “Estamos há algum tempo em um embate, tendo o ICMBio [Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade] como nosso principal inimigo, infelizmente, quando deveria ser nosso principal amigo. Porque muitas vezes, o ICMBio não reconhece a voz das comunidades na prática”, lamentou. O descaso em relação à participação das comunidades acaba resultando na perda de territórios, em injustiças sociais e no enfraquecimento dos modos de vida tradicionais, o que coloca a subsistência de milhares de famílias em risco.
Economia azul sustentável para quem?
Embora o conceito de Economia Azul englobe a sustentabilidade e o uso responsável dos recursos do mar, na prática o estudo mostra outra realidade: “A narrativa da Economia Azul prioriza o grande capital e invisibiliza a pesca artesanal”, concluem os autores do estudo.
A expansão de portos, a exploração de petróleo e gás e até os projetos de energia eólica offshore são apresentados como progresso econômico. Mas, sem a devida participação das comunidades, esses projetos acabam ocupando territórios tradicionais de pesca e fragilizando a autonomia cultural e econômica dos pescadores artesanais. “As iniciativas brasileiras de Economia Azul não têm tido um olhar voltado para a pesca artesanal e para a preocupação de redistribuir as riquezas obtidas do mar de forma mais justa”, enfatizam os autores.
Líderes comunitários entrevistados para o artigo relatam que as consultas feitas antes da instalação de projetos costumam ser superficiais, servindo mais para informar do que para ouvir. Os autores reforçam essa percepção ao afirmar que “quando as comunidades são convidadas para reuniões relacionadas aos empreendimentos, trata-se de encontros meramente informativos sobre os projetos, em que já não se permite uma consulta real ou modificações substanciais nas iniciativas”. A pesca artesanal, nesse contexto, acaba sendo invisibilizada nas narrativas oficiais sobre a Economia Azul, mesmo sendo essencial para a segurança alimentar e para a economia local em diversas regiões do Brasil.
Os especialistas recorrem ao conceito de justiça azul, que reconhece o direito das pessoas e comunidades a um ambiente marinho saudável, produtivo e sustentável e ao tratamento justo de todas as populações costeiras, incluindo o acesso, uso e gestão dos recursos oceânicos e costeiros. O estudo sugere que não existe desenvolvimento sustentável sem justiça social e ambiental. Portanto, uma economia azul plena precisa incluir atores sociais, hoje invisíveis, que exercem papel fundamental para a sustentabilidade e a manutenção dos recursos marinhos.
Leia o artigo completo
Esta postagem se baseia no estudo “Revelando as interações entre a pesca artesanal e a economia azul no Brasil”, dos autores Daniel Silva Prado, Luciana Machado Rodrigues, Eliane Silva Mendonça, Bruno Garcia Gimenez, Bianca Maria Pires Ferreira, Paulo Wagner Melo e Luiz Carlos Gerhardinger. Foi publicado na revista Desenvolvimento & Meio Ambiente, volume 66, de 2025.
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