O desafio na porta do abismo

No começo dos anos 70 quando a popularidade do xadrez estava em alta no mundo, surge um boato entre os principais representantes da categoria envolvendo um desafio das trevas. Para acessá-lo haviam diversos requisitos, como subir num elevador de um prédio localizado na esquina de duas ruas com nomes de santos católicos, mas a fim de evitar que mais pessoas se submetam a esse perigo, omitimos aqui os demais passos necessários para tal.

Não se sabe ao certo como esse boato surgiu, nem quem o divulgou de maneira tão precisa entre tantas nações, mas vários enxadristas profissionais se viram tentados a participar. Apesar do boato ser levado pouco a sério em alguns grupos, todos aqueles que se colocaram a realizar os procedimentos para acessar esse desafio das trevas nunca mais eram vistos. Na época, devido ao conflito da Guerra Fria, os mais céticos atribuiam esses desaparecimentos as agências de inteligencia das grandes nações.

Mas o boato chegou até um jogador amador bastante velho que nunca tinha se destacado o suficiente para ser reconhecido, mas durante sua trajetória chegou a dar bastante trabalho a grandes mestres do xadrez devido a sua capacidade de colocar-se em situações de altíssimo risco. Essa característica fez com que ele fosse conhecido dentro da própria comunidade como o Enforcado. Esse jogador havia perdido o contato com alguns excelentes jogadores com que tinha amizade que foram atrás do desafio das trevas, tentado a descobrir mais sobre isso, foi o mesmo seguir as instruções do boato para acessá-lo.

O Enforcado estava no elevador do prédio quando finalizou todos os procedimentos que o suposto ritual arcano exigia, na hora veio uma sensação de decepção ao perceber que continuava tudo igual, não fora transportado a lugar nenhum, nem nada havia ocorrido. Por um momento, se chateando por ter acreditado naquilo, quando a porta do elevador abre e percebe estar em um andar completamente vazio e escuro. A poucos metros da porta do elevador, havia um tabuleiro de xadrez montado e uma entidade sombria sentada ao seu lado.

Em pânico toda a coragem do homem se foi, e ele quis sair dali. Apertando para o elevador mudar de andar, mas apesar da porta fechar-se, o elevador permanecia parado até que a porta se abrisse novamente e revelasse aquele mesmo andar. O Enforcado percebendo que havia realmente acessado o desafio das trevas se arrepende daquilo, mas sente que não há volta, então com as pernas trêmulas se dirige aquela entidade que lhe cumprimenta pelo nome de Enforcado, dizendo que sua fama era reconhecida até mesmo ali, nos limites do abismo.

O homem assustado se coloca arrependido, dizendo que sentia muito ter tentado aquilo, que gostaria de ir embora. Mas a entidade diz que isso não era possível, que estavam agora numa bolha entre o abismo e sua realidade, e o único jeito de romper essa bolha é derrotando-a numa partida. O Enforcado então se dá conta do porque seus companheiros e outros enxadristas nunca retornaram do desafio, devem ter perdido a disputa, mas com a voz trêmula e morrendo de medo, pergunta para aquele ser obscuro na sua frente, o que ocorreria caso perdesse a partida. E o ser lhe respondeu que absolutamente nada, que poderia disputar contra ela quantas vezes quisesse. O Enforcado então se colocou a jogar, estava com bastante medo. Logo na primeira jogada, a entidade disse:

Non curat

Então ouve-se um tipo de assobio vindo do tabuleiro e uma peça se move.

O Enforcado perguntou o que significava “Non curat“, e imediatamente ouve-se outro assobio vindo do tabuleiro e uma peça do lado dele se move. A criatura então explicou que era uma expressão do Latim, que significava “eu não me importo”, dizer isso era um comando para que uma jogada aleatória fosse realizada, uma pequena conveniencia para os momentos de indecisão, tais como o primeiro lance do jogo.

Após a explicação bastante educada e cordial, o Enforcado parece ter entendido porque a criatura não se importava com algumas jogadas simples, visto que sua habilidade no jogo era absurda. Em poucas jogadas estava com sua partida toda arruinada, sendo derrotado. Após a derrota o Enforcado esperava alguma punição, mas nada ocorreu, aquela entidade apenas agradeceu a partida e se propôs a arrumar as peças para que jogassem de novo.

O Enforcado surpreso da cordialidade e gentileza, se colocou a jogar de novo e de novo. Tentando estratégias diferentes, jogadas suicidas e todo tipo de artimanha que conhecesse para obter alguma vantagem frente ao seu fabuloso adversário. Após muitas partidas, alguns embates mais equilibrados que os outros, pela primeira vez o Enforcado se via no domínio. Controlando o jogo começou a enxergar algumas possibilidades de vitória, quando sentiu um frio na espinha, de que havia algo de errado em tudo aquilo. Olhou para o tabuleiro e refletiu sobre o jogo por bastante tempo, observou atentamente todos os movimentos possíveis de todas as peças restantes, pensando no que havia de estranho, no que estava deixando de notar. Então, após quase meia-hora observando aquele jogo, se deu conta de uma coisa óbvia, de que ele não era realmente um bom enxadrista em comparação aos colegas dele que sumiram nesse mesmo desafio das trevas.

Essa percepção da sua própria limitação, o fez pensar sobre porque os outros jogadores não voltaram desse desafio? Cada um deve ter se colocado nessa mesma situação que ele, jogando repetidas vezes contra esse oponente obscuro. Estariam eles até hoje jogando, presos nessa maré de derrotas sem fim?

Não! Pois se fosse assim, ele, um simples jogador amador como ele jamais teria chegado tão perto da vitória. Havia algo de estranho nisso, talvez esses jogadores não tivessem a humildade de perceber que a verdadeira armadilha não esteja em ser derrotado repetidas vezes, e sim, acreditar que a vitória no tabuleiro seria a vitória deles.

O Enforcado então respirou, e começou a olhar a partida por mais tempo, na sua percepção parece ter ficado cerca de duas horas olhando aquelas peças antes de iniciar o que seria sua sequência final de movimentos. Após essa longa reflexão, começou sua sequência calculada e precisa de lances. Entre cada lance, refletia friamente por um longo tempo, já que a entidade contra quem jogava apesar de sempre fazer seus lances de modo instantâneo, parecia não se importar com o tempo que seu adversário levava para jogar. Então, jogada após jogada, cavou sua vitória, chegando até sua penúltima jogada, na qual o Enforcado (de peças pretas) se encontrava em xeque.

O Enforcado feliz com a situação agradeceu à criatura pela partida que jogaram enquanto se levantava sem dar seu último lance. Dirigindo-se até o elevador, após entrar espera a porta fechar e então fechar e então, de dentro do elevador fala bem alto:

Non curat

Logo em seguida, ouve um pequeno assobio e após alguns instantes a porta do elevador se abre, mas agora em um andar comum do prédio. Aliviado de ter escapado daquele jogo, suas pernas estavam trêmulas, suava frio e seu coração palpitava, saiu do elevador direto para o chão, juntando as forças se encostou na parede e desceu quase se arrastando por todos os outros andares de escada, saindo imediatamente daquele lugar e sentando-se ao longe para tomar fôlego. Nunca mais entrou em nenhum elevador e nem jogou xadrez pelos anos que a mais que viveu, sempre que alguém mencionava uma partida de xadrez, sentia um horror sobrenatural de pensar no destino de seus colegas que na sede de vitória, estouraram a bolha sem antes estando ainda do lado de dentro do abismo.

Sobre o post

Esse é um conto de ficção baseado no 7o arco da 3a temporada de Doctor Who (série clássica), “The Celestial Toymaker” que foi ao ar em 1966. Nessa história, a nave do Doutor vai parar num universo controlado pela criatura conhecida como Celestial Toymaker (uma espécie de divindade cósmica). A criatura diz que a única forma do Doutor escapar dali, é resolvendo o desafio das Torres de Hanói no menor número de movimentos. A medida que o Doutor vai resolvendo, a criatura dá alguns comandos para o jogo avançar algumas jogadas. Ao final do arco, faltava apenas uma peça para a vitória do Doutor, e o mesmo se deu conta de um problema.

No momento que movesse a última peça, aquele universo do Celestial Toymaker iria se desfazer, e o Doutor ficaria preso no vazio. A única forma de escapar em segurança, era estando na sua nave antes do universo se desfazer, mas a nave também não conseguiria se deslocar enquanto o jogo não fosse encerrado. A solução encontrada pelo Doutor foi imitar a voz do Celestial Toymaker e de dentro da sua nave dar para o jogo o comando de mover a última peça restante. Com isso, o universo da criatura foi desfeito enquanto o Doutor permanecia seguro em sua nave pronto para escapar.

No caso desse conto, o comando “Non curat” fazia com que uma peça qualquer do seu lado do tabuleiro fosse movida. Essa informação dada pela entidade no seu primeiro movimento, era a chave para os desafiantes escaparem. No caso, o Enforcado conduziu o jogo de modo que só lhe restasse uma única jogada possível, e essa jogada resultasse no xeque-mate do oponente. Assim, ao ativar o comando “Non curat” a única peça que poderia se mover seria seu Bispo Preto, bloqueando a ameaça da Torre Branca, e resultando no xeque-mate ao Rei Branco.

Assim, apesar do jogador não ver a jogada final (pois já estava no elevador com as portas fechadas), isso o levou à vitória e consequentemente com a bolha do abismo sendo estourada com o Enforcado fora do abismo.

Créditos da imagem de capa à icheinfach por Pixabay


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. O desafio na porta do abismo. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 6. Ed. 1. 2º semestre de 2021. Campinas, 18 set. 2021. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/3498/. Acesso em: <data-de-hoje>.

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