Potes de cozinha, Cinderela e funções de uma variável

Era uma vez em uma cozinha muito distante, um armário cheio de potes e tampas.
Sempre que alguém precisava guardar algo começa uma jornada as pressas atrás de potes e tampas compatíveis naquela coleção.
Mas existiam tampas e potes de todos os formatos e tamanhos, e nenhum pote ou tampa eram repetidos.
A busca de pote e tampa terminava quando encontravam uma tampa próxima dos padrões esperados para fechar o pote.
Se a tampa era apenas para cobrir, então podia ser maior do que o pote.
Se era para fechá-lo, uma tampa um pouco menor com “aquela apertada forte” servia (ou as vezes rachava a tampa na hora de fechar).
Se um pote ou tampa quebrava, ele ia pro lixo mas o seu parzinho ficava no armário.
Se a situação envolvia movimentar o alimento (por exemplo, levar a marmita na mochila), a busca era ainda mais dura, precisávamos de uma que fechasse perfeitinho.
Porém, mesmo quando tampas e potes se encontravam e viviam momentos felizes juntos, após a louça ser lavada, voltavam todos para o mesmo armário de caos, onde a nova jornada começaria.

Percebe alguma semelhança entre este drama e a história da Cinderela?

Neste drama de vez em quando para a alegria dos potinhos surgia uma “fada madrinha” e cheia de seu “Bibidi Bobidi Bu!” reunia os potes com suas tampas, juntando os pares e dando-lhes momentos de felicidade.
Mas a magia acabava à meia-noite, quando depois de limpos, potes e tampas retornam para o armário e perdem a esperança de novamente formarem seus pares.

Mas o que diabos isso tem a ver com matemática? Será que este período de quarentena me fez perder a linha do blog e agora estou antropomorfizando potes de cozinha? Talvez sim, mas o post de hoje tem a ver exatamente com este tema e funções de uma variável. Sim, a inspiração surgiu enquanto organizava os potes na casa da minha sogra (para você ver como a ciência pode participar do nosso dia a dia).

O problema de organizar potes com tampas envolve particularmente a formação de relações bijetoras entre o conjunto de potes e o conjunto das tampas. Por exemplo, eu adoro ter muitos potes iguais, tenho uns 20 potes de apenas 3 tipos, assim meu conjunto de potes é pode ser descrito como: {A, A, A, A, A, A, A, A, B, B, B, B, B, B, B, B, B, B, C, C} e meu conjunto de tampas {Z, Z, Z, Z, Z, Z, Z, Z, Y, Y, Y, Y, Y, Y, Y, Y, Y, Y, X, X}.

Ao encontrar uma tampa do tipo Z preciso apenas verificar sua compatibilidade com:
Pote tipo A – Tampa tipo Z;
Pote tipo B – Tampa tipo Z;
Pote tipo C – Tampa tipo Z.

Por regra, assumimos que cada tipo de tampa encaixe-se perfeitamente apenas com um tipo de pote. Assim, se uma mesma tampa pode ser usada para dois potes, então eles são do mesmo tipo.

Contudo, em um cenário menos organizado, podemos ter uma situação parecida com o conto no começo deste post, no qual em uma cozinha temos todos os tipos de potes e tampas distintos. Apenas para exemplificarmos, trataremos de um caso com 13 tipos de potes e seus respectivos 13 tipos de tampas, todos os tipos com apenas uma unidade. Chamemos os potes do conjunto de {A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M} e as tampas de {Z, Y, X, W, V, U, T, S, R, Q, P, O, N}.
Apenas para facilitar as futuras notações, vamos dizer que a relação dos potes e tampas seja esta:
A-Z B-Y C-X D-W E-V F-U G-T H-S I-R J-Q K-P L-O M-N

Ao encontrar uma tampa do tipo P deveríamos verificar sua compatibilidade com:
Pote tipo A – Tampa tipo P;
Pote tipo B – Tampa tipo P;
Pote tipo C – Tampa tipo P;
Pote tipo D – Tampa tipo P;
Pote tipo E – Tampa tipo P;
Pote tipo F – Tampa tipo P;
Pote tipo G – Tampa tipo P;
Pote tipo H – Tampa tipo P;
Pote tipo I – Tampa tipo P;
Pote tipo J – Tampa tipo P;
Pote tipo K – Tampa tipo P.

Interrompemos esta busca no pote K, dado que encontramos um pote com encaixe perfeito (pote K e tampa P)

Mas se nossas condições permitem um pote com compatibilidade próxima, podemos por exemplo encerrá-la após testar a tampa tipo P com o pote tipo H, aceitando que este, por exemplo com seja um pouco menor do que o pote, servindo desde apliquemos um pouco de força para encaixá-la.

Porém, agora temos uma contingência maior, pois o pote do tipo H não perfeitamente compatível com aquela tampa, ou seja, S (a verdadeira tampa do pote H), terá incompatibilidade de encaixar no pote K (o pote verdadeiro da tampa P).

Assim mesmo que a busca pelo pote da tampa S ocorra com todos os 12 potes restantes, nenhum deles terá a compatibilidade perfeita, exigindo que o sujeito decida novamente entre um pote um pouco maior ou menor.

Se escolhemos o pote K, fechamos este ciclo com dois potes tampados de forma inadequada (K-S; H-P).

Mas se escolhemos um pote diferente de K (por exemplo, o pote G), então agora fica sobrando a tampa T (verdadeira combinação do pote G), levando as combinações G-S e H-P .
Desse modo, temos o pote K e a tampa T sem nenhum par correspondente.

Notemos que as escolhas erradas podem fechar um ciclo ou estendê-lo, no segundo caso surge a possibilidade dos erros de compatibilidade aumentarem ainda mais. Isto porque já não há garantias de que o pouco a mais ou a menos usado numa combinação, será compensada de forma inversamente proporcional na outra.

Essa situação é resultado de uma ruptura na relação bijetora inicial entre potes e tampas, ou seja, cada pote tem sua respectiva tampa. Quando admitimos tampas a mais para um pote e vice-versa, temos uma relação que não pode ser descrita como uma função de uma única variável, por exemplo:
pote(1) leva à tampa(1);
pote(2) leva à tampa(2);

Mas desse erro, chegamos que o pote(1) leva à tampa(1) e à tampa(2).

Assim, como na situação apresentada, se a função não tem uma relação entre todos os elementos de cada conjunto ou esta relação não é única, como no caso das tampas e potes, a mesma não pode ser expressa como uma função de uma variável.

Para entender porque funções de uma variável precisam ter uma relação bijetora entre conjuntos, imagine a função de converter centímetros para polegadas. Seja qualquer a medida em centímetros, devemos converter para uma única medida em polegadas, e qualquer medida em polegadas deve ter uma respectiva medida em centímetros.

Se por exemplo, tivermos dois valores em polegadas distintos para uma mesma medida em centímetros, então conversão não é uma função de uma variável (ficou mais claro onde esta o problema de uma entrada levar a duas respostas distintas?).

De volta ao problema das tampas e potes, como resolver isso? Indexar tampas e potes:
pote(1) – tampa(1);
pote(2) – tampa(2);
pote(3) – tampa(3)

pote(n) – tampa(n)

E se tiver vários potes e tampas iguais?

Fácil, numere todos os iguais com o mesmo número, pois a numeração diz respeito apenas à compatibilidade dos potes e tampas, não necessariamente à quantos temos de cada tipo.

Por exemplo, a tela de dois computadores com 14 polegadas, terão a mesma conversão para centímetros, ainda que sua marca, modelo e outros aspectos sejam diferentes. Isto não afeta em nada a relação ser bijetora (na matemática elementos repetidos pertencentes a um conjunto geralmente são tratados como o mesmo elemento).

Para facilitar o gerenciamento de nossa função potes-tampas, guarde as tampas e os potes (se possível) de forma ordenada, assim ao encontrarmos o pote 15, não precisaremos buscar entre todas as tampas qual delas tem o número 15, podemos a partir de qualquer tampa encontrada, saber se a número 15 encontra-se à frente ou atrás dela. No mesmo contexto de tabelas para conversão de unidades, esperamos que a unidade 14 polegadas venha listada depois da unidade 13 polegadas e antes da unidade 15 polegadas (já imaginou se estivessem embaralhadas, o trabalho para achar uma medida?)

Potes e tampas únicas, podem ficar sem indexação (mas indexar também não fará mal).

Mas o que fazer com tampas e potes sem par? (No meu caso, tive muitas tampas sobrando, mas nenhum pote)

Guarde-os em um lugar bem escondido, para ninguém inocentemente misture com os pares e estrague nossa querida relação bijetora que admite transformarmos potes-tampas em uma função de uma variável.


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Potes de cozinha, Cinderela e funções de uma variável. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 3. Ed. 1. 1º semestre de 2020. Campinas, 05 jun. 2020. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/2169/. Acesso em: <data-de-hoje>.

8 thoughts on “Potes de cozinha, Cinderela e funções de uma variável

  • 6 de junho de 2020 em 06:31
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    Adorei este post 🙂
    No caso da relação que não é bijetora, se pá podemos pensar probabilisticamente:
    Tampa_certa_i = f(Pote_i)
    Mas
    Tampa_escolhida_i = f(Pote_i & Tampas_disponíveis) + erro_i
    Sendo erro_i vindo de uma distribuição discreta, representando a ordem da tampa (supondo que só o tamanho varie) e função do uso tipo,
    erro_i = 0 se uso=levar comida;
    erro_i ~ Poisson(lambda) se uso=cobrir (tampa pode ser maior)
    erro_i ~ Poisson(lambda) * -1 se uso=fechar
    E:
    Tampas_disponiveis é o conjunto de tampas existentes menos as tampas já escolhidas.

    Dá pra fazer uma função pra calcular a probabilidade de existir uma tampa pra fechar um pote dado que X tampas já foram usadas para cobrir potes 🙂

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  • 6 de junho de 2020 em 07:28
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    Realmente, podíamos pensar em um código que gere ao acaso N pares de pote-tampa com uma variação conhecida em termos de tamanhos (ignorando formatos), e depois determine a probabilidade de para um P tampas usadas para cobrir (ou para fechar com a apertadinha), qual a chance de uma tampa restante servir para fechar nos 3 casos (encaixe perfeito, fechar com a apertadinha, cobrir) 🙂

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    • 6 de junho de 2020 em 07:58
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      Simmm! E incluir depois formatos como uma segunda dimensão 🙂

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  • 6 de junho de 2020 em 09:52
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    Em breve precisaremos de um cluster para resolver o problema dos potes e tampas

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  • 24 de agosto de 2020 em 15:35
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    vejo que teu raciocínio pode ser aplicado a tantas outras formas além de tampas e potes. Nós, seres humanos, por exemplo, somos funções no espaço-tempo e devemos ter essa combinação probabilistica de encaixes por conta da nossa composição energetica polarizada. E toda essa tua explicação sobre aproximações e equivocos em encaixes me remete a causa de todo sofrimento humano, quando queremos ocupar um lugar no qual não cabemos.
    voce me fez perceber que compreender também a matemática, é uma forma de autoconhecimento. Eu já fazia isso com os fenomenos fisicos, inclusive com as equações mais ligadas a energia quantizada. Mas ver isso de uma forma tão simples e explicada de maneira tão prática me levou a outro nivel de amor pelo mundo matemático.
    obrigada.

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    • 24 de agosto de 2020 em 21:10
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      Obrigado pelo comentário Kamila,

      A escolha de potes de cozinha como tema foi justamente aproximar a ideia de funções com um tema corriqueiro à todas as pessoas que já sofreram na busca por tampas para seus potes 🙂

      Mas é certo que o tema de funções é muito mais amplo e permite discussões sobre praticamente qualquer assunto 🙂

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  • 21 de outubro de 2022 em 13:27
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    E o mistério das meias que somem na maquina de lavar? Isso realmente me preocupa, tenho uma sacola de meias sem pares, tentei resolver esta questão comprando todas as meias iguais, mas isso não funcionou. Eu ja abri a parte de trás da maquina e nada encontrei. Alguém teria um justificativa ou solução?

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    • 21 de outubro de 2022 em 20:26
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      Talvez você tenha meias velhas que se parecem com as novas, e a medida que as meias rasgam, guardamos o pé que não rasgou... dai vão surgindo os sem pares :3

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