Existe sim tradução 100%, mas ela é inútil

Hoje no curso de formação de blogueiros do Blogs de Ciências, veio uma frase que certamente trouxe-me algum incômodo. Dizer que não existe uma tradução 100%, e que toda tradução envolve uma interpretação, logo, o conteúdo traduzido é modificado. Contudo, traduções 100% existem, basta que exista uma bijeção entre cada palavra de um idioma para o outro, ou seja, para cada palavra de um determinado idioma existe uma única palavra de um outro idioma que remeta a este mesmo significado. Vou dar um exemplo de quando isso não ocorre. Pegue por exemplo a palavra Jogar, e pensemos em traduzi-la para o Inglês, temos throw (lançar) ou play (jogar um jogo). Ou seja, para uma palavra do domínio (no Português) “jogar”, temos 2 elementos no contra-domínio “throw” e “play”, isso significa que a tradução do Português para o Inglês não é injetora.

Contudo, a tradução do Português para o Inglês também não é sobrejetora, pois pegamos a palavra “brincar”, ao traduzi-la, temos a palavra “play”, que vimos no parágrafo anterior como referente ao “jogar”. Ou seja, essa bijeção para o Português e o Inglês, não ocorre. Mas se pensarmos, podemos criar uma tradução bijetora, ou seja, todas as palavras de um idioma serem associadas de forma única com um outro idioma, daí sim, teríamos uma tradução totalmente perfeita… mas isso é inútil e vou explicar porque. O idioma tem características próprias, particularidades, que praticamente são determinados pela cultura e características daquela região, isso faz com que o idioma seja algo vivo e que faça sentido para aquela população. Se pensarmos em dois idiomas com essa bijeção, teremos na verdade um mesmo idioma com duas pronúncias diferentes… ou seja, seria um mesmo idioma com duas pronúncias, escritas e leituras diferentes para o mesmo conjunto de palavras, e se isso não tem benefício algum (por não incorporar um regionalismo ou características daquela população), isso poderia ser simplesmente ignorado 🙂

Mas o que seria essa tal de tradução 100%? Então, se nos atermos a aspetos poéticos/rítmicos/sonoros da língua, certamente a tradução seria 100% somente se todas as palavras fossem exatamente idênticas a do outro idioma, logo, sequer seria necessária uma tradução. Agora, se desconsiderarmos estes aspectos podemos rapidamente construir um Português.2 cuja tradução seja 100%, curioso para saber como ele seria? Então, vamos inserir um “Da” antes de qualquer palavra deste idioma.

Texto em Português.1: O projeto Blogs de Ciência da Unicamp reúne pesquisadores, professores e alunos de pós-graduação da Universidade, com o objetivo de promover uma ferramenta prática e amigável como proposta de canal de divulgação científica.

Texto em Português.1 traduzido para Português.2: Dao daprojeto Dablogs dade Daciência dada Daunicamp dareúne dapesquisadores, daprofessores dae daalunos dade dapós-dagraduação dada Dauniversidade, dacom dao daobjetivo dade dapromover dauma daferramenta daprática dae faamigável dacomo daproposta dade dacanal dade dadivulgação dacientífica.

Pronto, temos um texto originalmente escrito em Português.1 traduzido sem nenhuma perda para Português.2. Vamos complicar um pouco mais (sim ou claro?)… que tal criarmos um Português.3, que nada mais é o acréscimo de “s” ao final de cada palavra, vejamos como fica:

Texto em Português.1 traduzido para Português.3: Os projetos Blogss des Ciências das Unicamps reúnes pesquisadoress, professoress es alunoss des póss-graduaçãos das Universidades, coms os objetivos des promovers umas ferramentas práticas es amigávels comos propostas des canals des divulgaçãos científicas.

Talvez agora pareça haver alguma confusão semântica, afinal, temos palavras que agora aparentemente dão conflito com o plural? Mas fique na paz, pois este conflito é apenas aparente, nas situações em que isso parece ocorrer, como em “Os projetos” ou “umas ferramentas práticas”, temos que nos ater exatamente à que idioma estamos considerando? Lembra do que falamos sobre os idiomas serem 100% traduzíveis se houver uma bijeção entre suas palavras? Vamos ver o que ocorre nestes pontos de suposto conflito:

Português.1Português.3
OOs
OsOss
ProjetoProjetos
ProjetosProjetoss
UmaUmas
UmasUmass
FerramentaFerramentas
FerramentasFerramentass
PráticaPráticas
PráticasPráticass

Com este quadro, podemos ver que para cada palavra do Português.1 existe uma única palavra em Português.3 que seja correspondente, e também que todas as palavras em Português.3 estão associadas à Português.1. Com isso, podemos dizer que existe uma bijeção entre Português.1 e Português.3, ou seja, a tradução entre estes dois idiomas ocorre sem perdas. Mas ai você pode estar pensando, como ficaria a tradução de Português.3 para Português.2? Deveríamos inserir um “da” no começo de “promovers“? Ficaria dapromovers? Errado!

Precisamos nos ater que a palavra “dapromover” existe em Português.2 e têm o significado de “promover”, contudo, a palavra “dapromovers” não existe em Português.2, pois senão ela teria que ter o significado de “promovers”. Então, para traduzir um texto de Português.3 para Português.2 precisamos além de adicionar “da” ao começo de cada palavra, remover “s” ao final de cada palavra. Ou seja, temos novamente uma bijeção entre Português.3 e Português.2. Mas isso já era de se esperar, né?

Afinal, se existe uma bijeção entre Português.1 e Português.2, e entre Português.1 e Português.3, deve haver também uma bijeção entre Português.3 e Português.2. Nesse sentido, podemos afirmar que a tradução de Português.3 para Português.2 também ocorre sem nenhuma perda 🙂

Divertido, não acha?


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Existe sim tradução 100%, mas ela é inútil. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 7. Ed. 1. 1º semestre de 2022. Campinas, 29 abr. 2022. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/3807/. Acesso em: <data-de-hoje>.

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