Porque a matemática não ajuda nos dilemas morais, nem mesmo no “Dilema Ethan Hunt”

Gosto de dilemas morais, pois eles são divertidos já que não admitem soluções claras.

Um modelo simples de dilema moral é o dilema do trem, pense que um trem está para passar por um desvio. De um lado do trilho temos uma pessoa e do outro lado do trilho temos 5 pessoas. Você precisa decidir qual direção o trem seguirá.

Understanding A Moral Dilemma. - Aranza Sánchez | Tealfeed

Se é a primeira vez que você ouve este dilema, talvez uma resposta natural seja escolher sacrificar uma pessoa em vez de 5.

Mas a graça deste dilema é que ele gira em torno de valores, e não quantidades.

Vamos dizer que as 5 pessoas possuem doenças terminais e tem seus diagnósticos médicos dando a cada uma no máximo alguns meses a mais de vida, e do outro temos uma criança saudável. Ficou mais difícil decidir agora?

O dilema é interessante pois te obriga a colocar valores a cada um dos lados. Se em vez de cinco pessoas, tivessemos 500 pessoas com doenças terminais, mudaria algo? E se fossem 5.000?

A grande questão do dilema moral é, em qual dos trilhos existe algo de maior valor a ser conservado para quem vai escolher o destino do trem.

Este dilema aparece muitas vezes na série Doctor Who, quando o Doutor precisa decidir “o que não é possível decidir”. Um momento que a dificuldade desta decisão e seu “papel” de decisor, fica clara, é no episódio “The Girl Who Waited”. Nele o Doutor convence uma versão futura da sua assistente, que passou por um imenso sofrimento ao longo de vários anos, a ajudá-lo a salvar uma versão mais nova dela mesma, que não sofreu o que a fez quem é. Para simplificar, imagine que você ficou em um lugar de difícil sobrevivência durante 10 anos, e isto fez de você uma pessoa bem diferente do que era antes de entrar lá. Você não se arrepende de ter sobrevivido ali, pois isto fez quem você é hoje. Então alguém te convence a ajudar uma versão sua de 10 anos atrás a não ir para aquele lugar e passar pelo que você passou. Essa pessoa promete que você e sua versão 10 anos mais nova poderão co-existir no mundo. Então você aceita, afinal, você não deseja deixar de existir :3

Contudo, depois de você acreditar nesta pessoa, na hora final, esta pessoa tranca a porta e te deixa para fora, condenada a sucumbir ali. O Doutor no caso explica que se sua assistente entrasse na nave, a versão mais nova deixaria de existir, e então ele teria feito-a sofrer ali por 10 anos. Rory (marido da assistente, que viaja junto) não aceita a decisão, e diz que não podia enganar e trair a versão que ficou lá 10 anos. Mas o Doutor o deixa com a trava da porta e diz, a decisão é sua, e o Rory questiona, que isto não é justo, pois isso o faria igual ao Doutor… enfim, a questão é que as aventuras mais intensas do Doutor envolvem exatamente isto, lidar com Dilemas Morais.

Por fim, vou apresentar um “dilema moral” que inventei, chamado “Dilema Ethan Hunt”

No filme Missão Impossível 4, o protagonista Ethan Hunt em determinado momento procura impedir uma arma de destruição em massa ser disparada. Isto ocorre a partir de uma cena dirigindo um carro nas ruas da Europa em altíssima velocidade, cada segundo é crucial para salvar a vida das pessoas daquela região. Não há indícios de que a arma de destruição em massa não será lançada caso o protagonista não o alcance para interceptá-lo.

Basicamente Ethan Hunt procura impedir que as 10 milhões de pessoas daquela região morram, uma cena de ação do filme XD

Mas então, ao virar uma rua, está ocorrendo um evento de rua. Seu caminho está totalmente interditado por pessoas dançando e festejando no meio da rua. O protagonista então freia e deixa a arma de destruição em massa escapar, que por alguma razão que só ocorre em filmes hollywoodianos, faz com que a arma não fosse disparada naquele momento, dando ao protagonista um “tempo extra” para impedí-lo e levar o filme ao seu tão aclamado “final feliz”.

Pode parecer que este dilema tem solução… pois aquelas 50 pessoas que Ethan Hunt viria a atropelar para impedir o lançamento daquela arma de destruição em massa, permitiria salvar as outras milhões que vivem naquela região. E se nada fosse feito, estas 50 viriam a ser destruídas junto com as outras milhões que seriam atingidas pela arma de destruição em massa.

Se pensarmos apenas nas “quantidades de vidas”, este problema tem uma solução sim, atropelar quem for preciso, para impedir a arma. Mas será que a morte que você geraria ou ao sofrimento que você geraria nas pessoas atropeladas ou próximas a elas, é equiparável a salvá-las desta arma? Se a arma gerasse uma destruição instantânea, e indolor, seria coerente levar a uma morte agonizante de 50 pessoas para salvar 10 milhões que incluiriam estas 50?

Podemos pensar por exemplo, se houvesse uma fila com 9 milhões de pessoas, que precisariam ser atropeladas para impedir a arma de destruição em massa que mataria de forma instantânea 10 milhões de pessoas, incluindo estas 9 milhões. Será que agora a decisão muda?

De forma semelhante, se fosse preciso provocar um sofrimento inimaginável a uma dessas 10 milhões de pessoas, para salvar as outras, sendo que se nada fosse feito esta pessoa junto com as outras 10 milhões viria a morrer, você faria?

E com este dilema moral, chegamos no post número 150 deste blog XD

Créditos da imagem de capa à Rosy – The world is worth thousands of pictures por Pixabay


Como referenciar este conteúdo em formato ABNT (baseado na norma NBR 6023/2018):

SILVA, Marcos Henrique de Paula Dias da. Porque a matemática não ajuda nos dilemas morais, nem mesmo no “dilema Ethan Hunt” In: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS. Zero – Blog de Ciência da Unicamp. Volume 8. Ed. 1. 2º semestre de 2022. Campinas, 29 set. 2022. Disponível em: https://www.blogs.unicamp.br/zero/4680/. Acesso em: <data-de-hoje>.

2 thoughts on “Porque a matemática não ajuda nos dilemas morais, nem mesmo no “Dilema Ethan Hunt”

  • 29 de setembro de 2022 em 16:32
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    Bom post 🙂
    Acho que outra questão no caso de Ethan Hunt é a incerteza. Se ele atropela as 50 pessoas, é quase certeza que elas irão morrer ou ao menos sofrer gravemente - mas não é certeza que ele consiga evitar a destruição em massa. E se ele atropelasse e mesmo assim não conseguisse impedir o disparo?
    Isso aparece em histórias sobre o bruxo Geralt de Rívia. Tem um conto chamado O Mal Menor que é justamente sobre isso - escolher o menor dos males... Mas será essa escolha certa? E será que realmente é o menor dos males?
    Finalmente... Uma adição interessante ao dilema dos trilhos:
    Cenário 1: o trem poderá atropelar cinco pessoas ou uma pessoa, dependendo da escolha do operador.
    Cenário 2: se nada for feito, ele irá atropelar cinco pessoas; se o operador mover a alavanca, ele irá atropelar uma pessoa.
    Cenário 3: se nada for feito, ele irá atropelar cinco pessoas; se alguém empurrar uma pessoa gorda que está perto do trilho, o trem irá parar (e não atropelar as cinco pessoas), mas a pessoa gorda irá morrer.
    E aí? Puxar uma alavança é diferente de empurrar uma pessoa para os trilhos? 🙂

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    • 29 de setembro de 2022 em 19:07
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      Pensando por este lado, realmente você tem razão, as incertezas impedem que qualquer dilema tenha uma solução. Daí chegamos que só em um cenário determinístico poderíamos responder um dilema, como por exemplo no xadrez. Você sacrifica 5 peões para salvar 1 que transformará em uma Rainha.
      Acho que o puxar a alavanca é uma ação mais branda que empurrar uma pessoa. Assim como o Juri sabendo que caso o réu seja condenado, ele será executado, não vê tanto peso em dar um voto, quanto sentiria se precisasse cada um injetar uma seringa com líquido que levará o réu a morte. Empurrar seria diferente então de puxar a alanca 🙂
      Agora refletindo sobre o que você colocou, o dilema também teria uma solução complexa se quisessemos fazer maximizar o mau. Pensando em qual trilho você fará o trem ir para o maior estrago possível... porque ainda assim, há o aspecto de valor em quem serão as vítimas. Enfim, não dá pra resolver por nenhuma das direções 😀

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