A transmissão de rádio que mudou o mundo

Por volta de 2009, antes mesmo de entrar na faculdade de física, ouvi uma história em uma palestra que me impactou muito. Anos mais tarde, voltei a ouvir a mesma história ao menos 3 outras vezes, sendo uma delas em uma disciplina que cursei na faculdade de comunicação da minha universidade.

Mesmo nunca tendo lido essa história em lugar nenhum, passei a replicá-la. Toda vez que queria convencer as pessoas do quão poderosa é a imprensa, essa história vinha à tona.

Recentemente, resolvi colocá-la no papel e publicar um texto na minha sessão da revista Ciência Hoje. E, pela primeira vez, fui estudar sobre o assunto. Mas afinal, que história é essa?

Este conteúdo foi originalmente publicado em uma versão editada na edição 403 da Revista Ciência Hoje e também o publiquei em vídeo no canal Ciência Nerd. Você pode assisti-lo no player ao lado!


A Guerra dos Mundos

Em julho de 1938, a emissora de rádio Columbia Broadcasting System (CBS) lançou um programa chamado Mercury Theatre on the Air, criado e apresentado pelo ator Orson Welles (1915-1985). Com trilha sonora de Bernard Herrmann (1911-1975) – que veio a se tornar um dos maiores compositores de cinema –, um grupo de atores liderados por Welles interpretava obras literárias clássicas, como DráculaA volta ao mundo em 80 dias e O Conde de Monte Cristo. O programa era uma espécie de radiodrama, como um teatro em áudio através do rádio.

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Estúdio da CBS onde foi realizada a transmissão da Guerra dos Mundos. Créditos: Acme Telephoto

No dia 30 de outubro daquele ano, às vésperas do Halloween, iniciou-se uma transmissão que entraria para a história. O programa começou às 20h com o aviso de que o espetáculo da noite seria uma adaptação do romance A guerra dos mundos, de H. G. Wells (1866-1946). Os próximos 50 minutos de programa simularam uma programação típica de rádio, com músicas tocando e um apresentador dando informações sobre elas. Porém, havia algo de diferente: de tempos em tempos, as músicas eram interrompidas por boletins de notícias que traziam informações em tempo real de fenômenos estranhos que estavam ocorrendo.

Nas primeiras interrupções, foram relatadas explosões estranhas na superfície de Marte, a queda de um objeto não identificado em uma fazenda na região de Grovers Mill (Nova Jersey, Estados Unidos) e a chegada das pessoas, da polícia e de repórteres ao local para descreverem tudo o que acontecia. 

Mais tarde, o objeto revelou-se uma nave espacial, de onde saíram marcianos armados destruindo tudo e todos. As notícias seguintes foram cada vez mais catastróficas. Máquinas de guerra enormes lançavam fumaça venenosa por Nova Iorque, cidades eram evacuadas e os poucos sobreviventes narravam tudo que estava acontecendo. Em suma, o programa de rádio se tornou uma espécie de narração em tempo real da destruição do planeta por marcianos.

Ilustração da Guerra dos Mundos

Foram vários os elementos dessa dramatização que contribuíram para o realismo do programa: o formato de boletins de notícias ao vivo, a credibilidade jornalística do rádio, o trabalho dos atores (que interpretaram repórteres, cientistas, políticos e sobreviventes), a trilha e os efeitos sonoros, a precisão das descrições dos objetos marcianos e a ausência de novos lembretes de que se tratava de uma obra ficcional. Por essas razões, esse programa é considerado por muitos como uma obra-prima. 

No dia seguinte, os jornais da época relataram que a transmissão provocou pânico em toda a costa leste dos Estados Unidos. Estimava-se que mais de 1 milhão de pessoas acreditaram que, de fato, aquilo estava acontecendo. Linhas telefônicas ficaram sobrecarregadas, as ruas foram tomadas por pessoas desesperadas, estradas ficaram obstruídas por uma tentativa de fuga em massa de algumas cidades, delegacias ficaram cheias e até foram registrados casos de suicídio, homicídio e ataques cardíacos naquele dia. A manchete do dia seguinte nos maiores jornais do país era: ‘Guerra falsa no rádio espalha terror pelos Estados Unidos’.

Alguns estudiosos afirmam que a transmissão de A guerra dos mundos é um exemplo de como a mídia é capaz de moldar a realidade e criar informações falsas, capazes de afetar drasticamente a vida das pessoas. E até hoje, passados mais de 80 anos, conta-se sobre esse evento que marcou a história da comunicação. Se um programa de rádio foi capaz de convencer as pessoas de que a Terra estava sendo invadida e destruída por extraterrestres, imagine a facilidade que a mídia teria para nos enganar sobre coisas muito menos espetaculares e mais cotidianas.

A capa do jornal New York Daily News de 31 de outubro de 1938 estampava a manchete: “Falsa guerra do rádio provoca terror nos Estados Unidos” (tradução livre). CRÉDITO: ARQUIVO DO NEW YORK DAILY NEWS VIA GETTY IMAGES

Quando fui me preparar para escrever esse texto, busquei jornais da época, relatos de pessoas que viveram esse período, reportagens atuais relembrando essa transmissão de rádio e pesquisas científicas da área de comunicação analisando toda essa história. Depois de muitos dias de pesquisas intensas, cheguei a uma conclusão que ‘tirou o meu chão’. Essa impressionante repercussão da transmissão de rádio, na realidade, nunca aconteceu!


A construção de uma lenda

Por meio de uma vasta documentação, incluindo milhares de cartas de ouvintes, pesquisadores garantem que, apesar da cobertura jornalística e dos relatos de supostas vítimas, nunca houve um pânico generalizado e o impacto foi, na verdade, muito pequeno. 

Em um livro de memórias, o editor de rádio Ben Gross afirma que as ruas de Manhattan estavam vazias e calmas naquela noite, contrariando as manchetes de alguns jornais, que afirmavam que a falsa guerra transmitida em rádio espalhou terror pelos Estados Unidos.

Outra evidência de que nada de espetacular aconteceu foi o fato de que nem a emissora, nem Welles sofreram qualquer processo ou sanção jurídica, o que seria esperado caso eles realmente tivessem causado todo esse caos no país. O historiador W. Joseph Campbell mostra, em seu livro Dez das principais histórias mal contadas no jornalismo americano, que os jornais abandonaram essa história muito rapidamente. Se a repercussão tivesse sido tão grande, porque ela não teria ocupado as manchetes dos jornais por mais do que dois dias? Outras evidências demonstram que a audiência do programa era muito pequena e não havia nenhuma chance dele ter alcançado tantas pessoas.


Quando recebi esse balde de água fria, senti que meu texto havia ido para o lixo! Eu queria usar essa história para demonstrar o quanto a mídia era poderosa, capaz de nos fazer acreditar que estaríamos vivendo o enredo de uma ficção científica. Mas diante de todas as evidências, não podia mais replicá-la, dizendo que ela realmente aconteceu. Mas, nesse momento, me veio uma luz: o rádio pode não ter sido capaz de convencer as pessoas de que o planeta estava sendo invadido por marcianos. Mas os jornais impressos foram poderosos o suficiente para nos convencer (até hoje) de que todo esse pânico realmente aconteceu. Então, de certa forma, a mídia norte-americana conseguiu, sim, forjar uma história e fazê-la perdurar e ser replicada por várias décadas.

Assim, resolvi seguir com a escrita do meu texto, seguindo uma nova linha de raciocínio. Mas, para isso, novas perguntas precisavam de respostas:

Se essa enorme repercussão não aconteceu, por que existem histórias sobre ela? Por que jornais da época foram categóricos ao narrar sobre o terror causado pela transmissão? Como conseguiram pessoas para dar depoimentos que confirmassem o pânico, o caos, e até as mortes. Por que nós vemos essa história ser contada até hoje como se fosse verdade, inclusive por jornalistas e professores em faculdades de comunicação?


O poder da mídia

Nas décadas de 30 e 40, o rádio estava ganhando muito espaço e credibilidade. Figuras políticas utilizavam o rádio como meio de comunicação. Isso fez com que o rádio atraísse uma grande receita de publicidade (que antes ia para os jornais impressos). Tudo indica que, ao se tornar um concorrente de peso, os jornais mais tradicionais se aproveitaram da situação e construíram uma história muito exagerada sobre a repercussão da transmissão para tentar abalar a credibilidade do rádio como fonte de notícias. Até mesmo jornais grandes, como o The New York Times, se uniram ao coro dos que denunciavam a irresponsabilidade do rádio, por meio de seus editoriais e de reportagens com supostas testemunhas.

A partir dessas evidências fica claro que a mídia tem sim um grande poder, porque ela foi capaz de construir uma lenda que perdura até hoje, apesar de todas as evidências contrárias. No entanto, esse seu superpoder depende de um fator muito importante: pessoas. Assim como o som se propaga pelo ar (ou outros meios materiais), uma informação só se propaga através de pessoas.

Para atrair a atenção das pessoas e fazer com que elas queiram espalhar informações, os veículos de comunicação e produtores de conteúdo usam todo tipo de estratégia, desde as mais tradicionais até as mais modernas, desde as mais éticas até as mais questionáveis e obscuras. Alguns veículos mais sensacionalistas costumam apelar para o lado emocional dos leitores, espectadores e ouvintes e manipulam, principalmente, a sua raiva e indignação. Sentimentos intensos como a raiva nos fazem compartilhar informações sem nem checar sua veracidade. 

Além disso, a nossa tendência de interpretar e selecionar as informações de modo que confirmem nossas crenças e nossa constante preocupação em nos posicionarmos publicamente sobre tudo o que acontece fazem de nós excelentes meios de propagação de informações, principalmente as falsas.

Um estudo da Iniciativa de Economia Digital do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) analisou 126 mil publicações no Twitter e concluiu que uma informação verdadeira leva um tempo seis vezes maior para alcançar 1.500 pessoas do que uma informação falsa. Esse resultado nos faz lembrar de uma famosa frase atribuída ao escritor norte-americano Mark Twain (1835-1910): “Uma mentira pode dar a volta ao mundo, enquanto a verdade está calçando os sapatos”. E veja que ironia, Mark Twain nunca escreveu essa frase.

Como defende o historiador cultural norte-americano Jeffrey Sconce, podemos encarar essa lenda do terror pelo rádio como um lembrete simbólico do quão poderosa a mídia pode ser. Ao mesmo tempo, o caso escancara a necessidade de uma educação midiática para a população, afinal, nós também temos o poder de escolher qual história ou notícia iremos espalhar e potencializar. 

Em um mundo digital, fortemente mediado pela internet, precisamos ser mais críticos diante do oceano de informações a que temos acesso e mais capazes de diferenciar fontes confiáveis das não confiáveis e de checar a veracidade de uma notícia. 

E nada disso vai adiantar se não formos capazes de abandonar nosso viés de confirmação, nossa busca incessante por provas que validem nossas crenças, nossas verdades absolutas. Precisamos ter ouvidos sensíveis ao contraditório e nos permitir pensar sobre aquilo em que não acreditamos ou discordamos, porque a verdade pode, muitas vezes, estar justamente nesses difíceis lugares.


Lucas Miranda

Físico e mestre em Divulgação Científica pela Unicamp. É professor no Sistema Anglo de Ensino, Colunista da Revista Ciência Hoje, Coordenador do projeto Ciência ao Bar e Cinegrafista, Editor e Tradutor na TV NUPES (Fac. de Medicina - UFJF)

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