A ciência pelos olhos da Profa. Dra. Flávia Cristina Nery

Publicado por Priscila Ferreira Slepicka em

Inicio este ano de 2017 com a grande honra de dividir com vocês a entrevista que tive oportunidade de realizar com a Profa. Dra. Flávia Cristina Nery, Senior Scientist and Clinical Project Manager na Harvard Medical School e Massachusetts General Hospital, uma das cientistas que me inspiram no meu  trabalho todos os dias.

Com uma bela trajetória, a Dra. Flávia Nery iniciou sua carreira na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) onde cursou graduação em Genética e Licenciatura em Biologia com Mestrado também em Genética na mesma universidade. Em seguida, mudou-se para Campinas onde cursou seu Doutorado na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) pela Pós-graduação em Genética e Biologia Molecular realizando projeto no atual Laboratório Nacional de Biociências (LNBio/ CNPEM). Neste período, seu trabalho investigava o papel funcional e estrutural da proteína Ki-1/67 com outras proteínas como RACK1, proteína interactora, p53, conhecido oncogene, e outras proteínas. Nesse momento de sua carreira, Dra. Flávia focava no melhor entendimento de proteínas relacionadas com o Linfoma de Hodgkin, um dos cânceres mais comuns do sistema linfático originado através da transformação de células do tipo linfócito em uma célula com capacidade tumoral. No laboratório do Prof. Dr. Jörg Kobarg, Dra. Flávia publicou 5 artigos de excelente impacto, sendo 3 artigos como primeira autora, os quais a consagraram no Prêmio CAPES de Melhor Tese em Ciências Biológicas de 2006.

Profa. Dra. Flavia Nery apresentando pôster com os resultados sobre SMA do seu grupo no Center for Human Genetic Research (CHGR) Retreat em Setembro de 2016. Arquivo pessoal.

Após o reconhecimento do seu trabalho de doutorado através do Prêmio CAPES, Dra. Flávia iniciou seu pós-doutorado em uma das universidades mais reconhecidas mundialmente, Harvard Medical School. Dessa vez, a genética direcionou os olhos de Flávia para um novo foco: a Neurociência, a qual se tornou sua nova paixão a partir de então. Nesse período, seus estudos buscavam o entendimento do papel da proteína torsinA na biologia células da síndrome neuromuscular Distonia, a qual pode ter causas hereditárias ou por outros fatores como traumas físicos. Essa síndrome tem como sintomas repetitivas contrações musculares resultando em torção, movimentos repetitivos e/ou posturas corporais anormais. Seus trabalhos publicados em revistas como a Nature Communication evidenciaram que em células de pacientes, essa proteína pode causar alterações no papel de outras proteínas na membrana externa nuclear, citoesqueleto comprometendo o movimento célula e no retículo endoplasmático causando stress nessa organela.

Seu trabalho em Distonia continuou durante seu período como Assistant in Neurology no mesmo laboratório, enquanto também era Instrutora em Neurociência, ministrando cursos e orientando outros membros do seu grupo de pesquisa. Quando a liberação de recursos para seus projetos de pesquisa se tornaram escassos, Dra. Flávia mudou seu ambiente de trabalho para pesquisa em empresa a qual, como ela se refere, como uma experiência muito peculiar enriquecedora em “drug development & clinical trials”. No entanto, pouco tempo depois ela retornou à Harvard Medical School e ao Massachusetts General Hospital onde está até hoje como Senior Scientist and Clinical Project Manager no Laboratório da Profa. Dra. Kathryn Swoboda. Atualmente, seu trabalho inclui pesquisa de disordem neuromusculares com abordagens pré-clínicas e clínicas, incluindo Atrofia Muscular Espinhal (SMA, siglas em inglês) que recentemente teve uma terapia genética aprovada pelo FDA. Dra. Flavia está muito orgulhosa de ter participado dos estudos que levaram a aprovação da droga SPINRAZA™ (nusinersen) pela indústria farmacêutica Biogen.

Dra. Flávia Nery com uma de suas alunas em seu laboratório no Massachusetts General Hospital. Arquivo pessoal.

Além de todas essas conquistas, Dra. Flávia também possui 2 patentes e diversas publicações científicas em revistas de excelente impacto que colaboram com as pesquisas na melhora da qualidade de vida e de tratamento de pacientes com síndromes e doenças relacionadas ao sistema muscular e neurológico. Em 2011, Dra. Flávia retornou à UNICAMP para ministrar o minicurso de dois dias  “O Futuro da Neurociência” no X CAEB (Décimo Congresso Aberto aos Estudantes de Biologia). Nele, ela abordou diversas técnicas de grande tecnologia na área de neurociência e discutiu abertamente sobre sua perspectiva sobre pesquisa no exterior e as universidades com melhores programas em neurociência. Aplaudida de pé, Dra. Flávia ainda lembrou saudosamente do seu doutorado realizado na UNICAMP e dos passos que seguiu até a sua atual linha de pesquisa. Recentemente, uma aluna do seu curso do X CAEB fez um curso de verão no seu laboratório. Mais uma evidência de que a trajetória dela tem inspirado mais pessoas e seguir a carreira em neurociência.

A Dra. Flávia Nery é uma grande inspiração porque seu trabalho e seus estudos tem enriquecido bastante a comunidade cientifica e, hoje, com muita humildade ela continua conquistando e ajudando pacientes com sua incrível pesquisa. Quem pode conversar com a Dra Flávia, assistir suas palestras ou trabalhar com ela, sabe o quanto ela é uma pessoa simples, contagiante e como ela sempre nos mostra que é possível nos adaptar a diversos ambientes e conhecimentos. Diante de toda essa descrição, fica evidente o seu anseio por navegar nos mares da genética e por onde as ondas da ciência a levaram pelo estudo do Câncer e, em seguida, da Neurociência. Agora ela apresentará para nós um pouco mais sobre como essa motivação foi despertada.

  1. Cientista – era isso que você queria ser quando crescesse?

Flávia:  Inicialmente eu queria ser médica, mas sempre achei que só atendendo os pacientes não seria suficiente para ajudar a tratar de doenças. Na minha época não existia o que hoje existe nos EUA que é o MD/PhD ou seja médico e cientista.

  1. Algum cientista ou descoberta científica a inspirou na escolha dessa carreira?

Flávia: Na oitava série, eu aprendi pela primeira vez sobre genética e Gregor Mendel. Eu fiquei deslumbrada com as pesquisas de Mendel e comecei a ler tudo sobre genética, então, descobri naquele momento que eu queria ser geneticista.

  1. Você já enfrentou alguma dificuldade enquanto cientista por ser mulher

Certificado de aprovação de projeto de pesquisa com financiamento da Harvard Medical School. Arquivo pessoal.

Flávia: Muitas e muitas vezes!!! Ainda hoje, e mesmo aqui no EUA, cientista é um assunto para homens. Essa mentalidade é global.  Um estudo em 2012 mostrou que quando dois candidatos mandam uma aplicação um para posição de professor, contendo o mesmo resume (currículo profissional) mas sendo uma mulher e um homem, a posição foi oferecida para homem. Se eles contratassem a mulher, o salário dela seria pelo menos $4,000 dólares mais baixo do que o do homem para a mesma posição. E porque isso? Muitas vezes apliquei para empregos que nenhuma mulher for chamada para a entrevista, ou então, fui contratada mas fiquei sabendo depois que uma mulher responsável pela contratação preferia que fosse contratado um homem. Nós mulheres temos preconceitos de contratar mulheres. Outra dificuldade em se tornar líder de pesquisa em academia é o financiamento. Mulheres cientistas no mundo recebem menos suporte para suas pesquisas quando comparadas com homens cientistas. Uma pesquisa realizada em 130 países mostraram que mulheres cientistas recebem menos financiamento para pesquisa, menos espaço para seu laboratório e menos recursos para equipamentos e viagens. Durante minha carreira, eu recebi muitos NÃOS para meus projetos e para posições. A forma que eu encontrei de superar essa dificuldade é contribuindo para educar jovens mulheres cientistas, contar para elas sobre os meus desafios, passar para elas que é sim possível vencer os desafios encontrados para mulheres cientistas.

  1. Descreva, em poucas palavras, a ciência pelos olhos da Profa. Dra. Flavia Nery.

 Flávia: A palavra ciência para meus olhos é conhecimento. Esse conhecimento pode ser alcançado através de observações, experimentos ou estudando. Observação e experimentação trabalham juntos ao descobrir um novo fenômeno. Para mim, a ciência existe porque pessoas são capazes de fazer perguntas pertinentes e usar métodos científicos para responder estas perguntas.

  1. Daqui a 20 anos, como você acredita que estará o papel da mulher na ciência e de que forma isso será alcançado.

Flávia: Eu acredito que daqui a 20 anos a mulher cientista estará em uma melhor posição na sociedade se nós mulheres cientistas trabalharmos juntas para melhorar isso. Para mudar a nossa sociedade é preciso que nós mulheres passemos a acreditar mais em nossos potenciais.

  1. Qual conselho você daria ou normalmente dá para uma aluna que esteja começando na carreira científica?

Dra. Flávia com colegas de trabalho do grupo de pesquisa da Profa. Dra. Kathryn Swoboda. Arquivo pessoal.

Flávia: Nunca aceite não como resposta sem um por quê. Por exemplo, quando eu recebo um não para uma aplicação de emprego, eu escrevo para aquela pessoa responsável pela contratação e pergunto “porque você acha que eu não fui um candidato forte ou como posso melhorar minha aplicação da próxima vez”. Aprender com os meus erros é uma vantagem e nem todas as pessoas estão abertas a ouvir críticas. Quando estava me mudando para o EUA, eu precisava passar no TOEFL. Então, eu perguntei meu professor de inglês se ele poderia me dar aulas particulares porque eu estava aplicando para o teste do TOEFL. O professor disse que não pegaria meu dinheiro porque eu nunca iria passar no teste afinal meu inglês era muito ruim. Eu disse a ele que ele não conhecia o meu potencial. Eu procurei outra escola de inglês, contratei um professor particular, e estudei MUITO. Adivinhe o que aconteceu? Eu passei no teste. Quando eu recebi a carta com o meu score (pontuação), eu fiz uma cópia e fui até a escola de inglês que eu frequentava. Então, eu dei a cópia para aquele professor que disse que eu não iria passar no TOEFL. Ele ficou sem palavras. Em resumo, quando eu vejo uma aluna começando a carreira cientifica, eu sempre digo “você é responsável pelo seu destino, não acredite nas pessoas que falam que você não é capaz. Você faz o seu próprio destino, se você se esforçar suficiente você vai vencer. Dê sempre o melhor de você para tudo que você faz seja falar um “oi” para um colega de trabalho ou escrever um projeto.” Vivemos num mundo onde tudo é urgente, então, agimos sem pensar e sem dedicar.

Finalizo este post agradecendo a Dra. Flávia Nery por essa enriquecedora entrevista e que, assim como tantas pesquisadoras, ela continue inspirando novas gerações de mulheres cientistas.


Priscila Ferreira Slepicka

Bióloga e Doutora em Genética e Biologia Molecular pela UNICAMP com Pós-Doutorado pelo CSHL. Desde a adolescência, sou fascinada pela ciência e pela função das moléculas no sentido e beleza da vida. Agora, tenho a ambição de transmitir sob minha perspectiva a ciência pelo olhos delas. Apesar de eu nunca ter sofrido (ou ao menos sentido) preconceito direta ou indiretamente por ser mulher, as estatísticas permanecem alarmantes com relação ao elevado número de cientistas que sofrem por ainda serem a minoria em diversos aspectos profissionais. Neste 1 ano de contribuição para o blog aprendi que muitas pesquisadoras permanecem no nosso esquecimento e esse negligenciamento torna a história da ciência incompleta. Todos nós escritores ainda temos uma longa caminhada para mostrar a contribuição da mulher para o descobrimento da pesquisa e que, apesar de vivermos em um período de grande liberdade de expressão, cientistas ainda são silenciadas O blog Ciência pelos Olhos Delas permitiu que eu abrisse meus horizontes para escrever publicações sobre mulheres incríveis e tenho a convicção que o Blog ainda informará muitos fatos ocultos na história da contribuição da mulher para a ciência.

2 comentários

Silvana Quirino · 25 de março de 2017 às 12:49

Flavia Parabens pelo trabalho. Pela persistencia e determinacao. Eh maravilhoso e inspirador ver historias como essa. Orgulho de Ser mulher e Ser Brasileira. Sou psicologa moro em Boston e estou na tentativa de passar no TOEFL tbm. Obrigada por compartilhar sua historia.

    Marina Barreto Felisbino · 14 de julho de 2017 às 21:36

    Agradecemos seu comentário! A pesquisadora Dra. Flávia é realmente uma fonte de inspiração

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