A ciência pelos olhos da doutoranda Dayane Machado

Publicado por Gabriela Mendes em

A doutoranda Dayane Machado. Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

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Nos últimos anos temos vivenciado uma onda de desinformação nas redes sociais que se acentuou ainda mais durante a pandemia de COVID-19. Diversos grupos de pesquisa no Brasil e no mundo têm estudado movimentos e pessoas que espalham notícias falsas sobre vacinas e COVID-19 nas redes sociais. Para trazer à luz a discussão sobre os desafios da comunicação científica perante a desinformação na área da saúde, hoje o Ciência Pelos Olhos Delas entrevista a doutoranda Dayane Machado, especialista no assunto. 

A Dayane é mestre em Divulgação Científica e Cultural pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, ela é doutoranda em Política Científica e Tecnológica, também na Unicamp, e o foco da sua pesquisa envolve desinformação sobre vacinas no contexto da pandemia de COVID-19. Confira abaixo a entrevista na íntegra, onde a Dayane nos conta sobre sua trajetória acadêmica, sua experiência como mulher na ciência e os desafios para combater os movimentos negacionistas e de desinformação nos meios de comunicação, com ênfase no YouTube.

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Cientista – era isso que você queria ser quando crescesse? 

Não, de jeito nenhum. Quando criança, eu nem sabia o que era um cientista ou que existiam cientistas no Brasil. Imagino que isso aconteceu principalmente por falta de referências. Foi só durante a graduação que eu tive contato com a prática da pesquisa e com o jornalismo científico e só a partir daí, eu comecei a me interessar pelo tema.  

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Como sua trajetória acadêmica a levou ao doutorado em Política Científica e Tecnológica na UNICAMP?

No mestrado, a minha proposta era analisar o imaginário de ciência e de cientista em materiais de divulgação científica. Eu resolvi trabalhar com canais do YouTube. Na época, o YouTube e os serviços de streaming em geral não eram muito estudados dentro da minha área. O ScienceVlogs Brasil era uma proposta recente, que criava uma comunidade de canais organizada em torno de alguns critérios. Esse modelo me chamou atenção e eu comecei a pesquisa com os canais que faziam parte da iniciativa. 

No meio do caminho, porém, eu comecei a ter contato com canais de fora dessa comunidade. Pra minha surpresa, muitos canais se identificavam como divulgadores de ciência naquela época, mas quando eu parava pra assistir o conteúdo, eu encontrava discurso antivacinação, negacionismo climático, terraplanismo. Muitos deles argumentavam que era ali que o público ia encontrar a ciência “de verdade”.

Depois de um tempo de análise, esses canais que alimentavam teorias da conspiração foram ganhando um espaço enorme no meu trabalho. Quando eu terminei o mestrado, então, a minha vontade era continuar pesquisando esse assunto.

No Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT) e principalmente no LABTTS, que é o meu laboratório, eu encontrei uma estrutura que me permitiu aprofundar a pesquisa nessa frente de desinformação. Eu resolvi focar especificamente nos movimentos antivacinação e depois de um ano mais ou menos veio a pandemia de COVID-19 e a gente viu esse tema explodir. Ficou praticamente impossível continuar pesquisando rejeição a vacinas sem considerar a pandemia. Então eu acabei adaptando o projeto e passei a analisar esses dois temas ao mesmo tempo.

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Algum(a) profissional ou ação a inspirou na escolha dessa carreira?

Eu comecei a considerar a ciência como carreira há relativamente pouco tempo. No começo do mestrado, eu via o trabalho gigantesco que cientistas como a Suzana Herculano-Houzel conseguiam realizar apesar do contexto de sucateamento pelo qual as instituições de pesquisa brasileiras já vinham passando. Eu lembro dos relatos dela sobre a falta de insumos, sobre a necessidade de improvisar tudo, sobre a dificuldade de fazer pesquisa competitiva com tantos fatores atrapalhando. E eu ficava fascinada com o que o grupo dela conseguia fazer. A pesquisa dela foi uma grande inspiração.

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Conte-nos mais sobre a pesquisa que está realizando sobre desinformação no contexto da pandemia da COVID-19.

No doutorado, eu analiso especialmente conteúdos do YouTube. Mais uma vez, os vídeos (e os áudios) acabam não recebendo muita atenção nessa área de pesquisa. Analisar áudio e vídeo dá muito trabalho porque ainda não existem boas ferramentas que permitam análises mais automatizadas como acontece no caso de textos escritos, então a gente tem que fazer o processo manualmente.

Ano passado, nós publicamos os primeiros resultados da pesquisa. A gente identificou canais em português que lucram com as desinformações sobre vacinas. Além de aproveitarem o sistema de monetização do YouTube — exibição de anúncios ao longo dos vídeos, venda de produtos na prateleira da plataforma, recursos para receber doações durante as lives etc. —, esses produtores de conteúdo colaboram e criam táticas para aumentar a audiência e garantir os lucros, mesmo que a plataforma identifique o conteúdo como perigoso e desmonetize algum vídeo.

Recentemente, nós expandimos a amostra. Estamos analisando os vídeos produzidos por 50 canais ao longo dos 6 primeiros meses de pandemia no Brasil, uma amostra de mais de 3 mil vídeos. A minha sorte é que eu tenho uma parceira de pesquisa incrível, a Natiely Rallo Shimizu, que também é mestre em Divulgação Científica e pesquisa movimentos antivacinação há um bom tempo. Nós começamos a primeira etapa de análise em outubro do ano passado e vamos terminar a última etapa nos próximos meses.  

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Quais são os principais desafios que as iniciativas de divulgação científica enfrentam no combate a essa “onda” de desinformação?

Acho que hoje o principal desafio é ser ouvido no meio de tanto ruído. Essa é uma característica, aliás, do momento que a gente está vivendo. Tem informação demais circulando ao mesmo tempo e fica muito complicado para o público distinguir o que é confiável do que não é. 

Hoje, os falsos especialistas conseguem seduzir a audiência e atrair a atenção da mídia com muito mais facilidade. Fora isso, a gente tem que lembrar que conteúdo apelativo, sensacionalista e desinformativo pode gerar mais engajamento, então as plataformas acabam beneficiando esse tipo de material. Competir com esse cenário fica cada vez mais difícil para quem divulga ciência. 

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Dayane com parte da equipe do Projeto Matemática no Ar e alguns entrevistados durante a Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (2017). Arquivo pessoal. Todos os direitos reservados.

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Ao longo da sua carreira, você já enfrentou alguma dificuldade enquanto cientista por ser mulher?

Depende do que a gente estiver considerando como dificuldade. Conheço pessoas que já passaram por situações muito mais sérias, como assédio sexual, perseguição e coisas do tipo. Eu nunca passei por isso, mas me sinto muito menos respeitada do que os meus colegas. 

Um fator que acho que faz bastante diferença no meu caso é a minha área de pesquisa. Vejo que as ciências sociais e humanas ainda são tratadas por muita gente como se fossem questão de opinião. Já ouvi muita piadinha questionando a seriedade e a relevância de pesquisas qualitativas, além das piadinhas rotineiras sobre a presença de cientistas mulheres só servir pra “embelezar” o ambiente. É desagradável e, infelizmente, esse tipo de coisa não acontece só dentro da universidade. 

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Descreva a ciência pelos olhos da doutoranda Dayane Machado.

O processo científico é algo que me fascina. Nunca dá pra ter certeza do que vamos encontrar ao longo da pesquisa e o trabalho costuma ser lento, cheio de complicações, a gente leva muita paulada na cabeça e, com o passar do tempo, se acostuma com essa sensação constante de estupidez, mas existe um momento que nos faz esquecer esses problemas: é aquele instante em que a gente descobre algo que ninguém percebeu ainda. E o mais fascinante é que esse processo não acaba, a gente sempre vai ter coisas incríveis pra descobrir.

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Nós, do Ciência Pelos Olhos Delas, agradecemos a generosidade e a disponibilidade da Dayane em responder nossas perguntas e contar um pouco mais sobre a pesquisa essencial que ela desenvolve no combate à desinformação. Sigam a Dayane no Twitter para saber mais sobre o trabalho dela: @DayftMachado!




Gabriela Mendes

É formada em Biomedicina e Mestre em Biologia Celular pela UFU, atualmente é doutoranda em Genética na Texas A&M University, College Station, EUA. Acredita que a educação transforma o mundo e que o conhecimento é libertador, principalmente para as mulheres.

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