Celebrando Alice Hamilton, a mulher que fundou a medicina industrial
Alice Hamilton por volta de 1935 na Hull House em Chicago. Foto de arquivo via Getty Images. Todos os direitos reservados.
Para dar continuidade ao nosso ciclo especial epidemias, eu escolhi trazer para vocês a história de Alice Hamilton, norte americana que trabalhou durante a epidemia de febre tifóide em Chicago, Illinois, nos EUA, e que ficou conhecida como pioneira da medicina industrial no início do século XX.
O núcleo familiar e a educação de Alice
Alice nasceu em 1869 em Nova Iorque, EUA, no berço de uma família conservadora tradicional e rica. Seu avô, imigrante escocês-irlandês, era dono do estado de Indiana, onde Alice cresceu. Embora dentro de uma camada social elitista, a família de Alice tinha claros conhecimentos do papel que poderia desenvolver na sociedade. Junto com seus irmãos, Alice foi educada para atingir objetivos profissionais a fim de não depender da herança familiar. Contudo, essa liberdade ainda era dentro dos limites que sua classe social impunha.
Sua educação ocorreu através de ensino domiciliar, já que a família Hamilton não era simpática ao ensino praticado na escola. Dessa forma, as cinco crianças (quatro meninas e um menino) foram educadas para os assuntos que mais interessavam aos pais, o que incluía, basicamente, literatura e línguas. Mesmo passando longe dos estudos das ciências e da matemática, Alice relata em sua biografia o desejo de se tornar médica já na adolescência.
Para isso, teve que cursar aulas particulares de física, química, biologia e anatomia antes de entrar para o curso de medicina na University of Michigan em 1892. Durante o curso de Medicina, Alice mostrou preferência pela pesquisa médica no lugar da prática clínica, o que viria a ditar o rumo de sua carreira nos próximos anos.
Alice ainda foi a primeira professora mulher em Harvard, numa época em que a instituição não tinha alunas. Mesmo com uma carga horária reduzida em comparação aos seus colegas do sexo masculino, Alice se aproveitou do cargo para morar no assentamento conhecido por Hull-House.
A epidemia de febre tifóide em Chicago
No início do século XX, os Estados Unidos da América passavam pelo período de ascensão política, militar e industrial. O país estava se restabelecendo após a Guerra Civil Americana e, no período de 1840 a 1920, recebeu cerca de 18 milhões de imigrantes que chegavam no porto de Nova Iorque e que se destinavam para a Hull-House.
Também no início do século XX, o país passava pela epidemia de febre tifóide e Chicago tinha o maior número de infectados e mortos. O pico da epidemia foi no mesmo momento em que Alice assumiu a posição de bacteriologista no recém inaugurado Memorial Institute for Infectious Diseases, que ficava em Chicago. Ela observou que as pessoas ao redor do assentamento apresentavam fraqueza, dor de cabeça, e diarreia – alguns dos sintomas da febre tifóide, causada pela bactéria Salmonella typhi.
Incomodada com o fato de que o número de infectados era maior na classe trabalhadora e, principalmente, entre os imigrantes, Alice saiu pelo bairro em busca do motivo dessa segregação social no padrão da infecção. Naquele tempo já se sabia que a febre tifóide acontecia onde o saneamento básico era precário ou inexistente. Contudo, ela encontrou muito mais esgoto a céu aberto nas ruas de Chicago.
Alice logo notou que os mosquitos estavam se alimentando de excremento contaminado pelo tifo e, em seguida, pousando em alimentos. Os testes realizados em mosquitos capturados perto de barris de água e nas cozinhas da população revelaram que os mosquitos estavam infectados pela bactéria causadora da febre tifóide. Esse estudo fez uma importante conexão entre os insetos, a água contaminada e o esgoto aberto, e os casos de infecção em Chicago. A publicação do estudo foi o que chamou a atenção da comunidade científica para sua pessoa.
Apesar do brilhante trabalho com os mosquitos, Alice logo percebeu que eles eram o menor dos problemas. Sua contínua investigação mostrou que o surto de febre tifóide em Chicago ocorreu devido a um cano quebrado no sistema de esgoto que soltava resíduos no sistema de água limpa. Perante a esse problema, ela pouco podia fazer.
Alice ainda estudou as conexões dos casos de tuberculose com as más condições sanitárias e com o cansaço apresentado pela classe trabalhadora. A medicina de Alice sempre levou em conta os problemas de saúde coletiva, e suas descobertas relacionadas à febre tifóide e à tuberculose guiaram seus interesses para o estudo das doenças causadas pelo processo industrial.
A origem da Medicina Industrial
Com o crescimento das indústrias e a falta de mão de obra qualificada, a chegada dos imigrantes nos EUA sacudiu a camada conservadora do país. Ainda que Alice tivesse nascido em “berço de ouro” e crescido reclusa, seus estudos a guiaram para perto da população carente presente na Hull-House e nas proximidades do local.
Naquele momento de explosão industrial, nada se sabia sobre os resíduos tóxicos gerados pelo processo industrial e, tão pouco, sobre as doenças que começaram a surgir. O que os estados tinham era um número significante de trabalhadores industriais acamados.
Foi nesse cenário que Alice foi contratada pelo Governador de Illinois para gerenciar uma pesquisa sobre doenças relacionadas à indústria no estado. Em paralelo, ela estudou a toxicologia do chumbo, envenenamento industrial mais comum na época.
Alice e seu grupo visitaram das fábricas às drogarias em busca da fonte do envenenamento de cobre e descobriram mais de setenta processos industriais onde os trabalhadores eram expostos diretamente ao metal, e assim, se contaminaram. Com o resultado da pesquisa de Alice nas mãos, o estado de Illinois aprovou em 1911 a lei das doenças ocupacionais, que requeria que os empregadores adotassem medidas de proteção aos funcionários.
Ela cita em sua biografia que não recebeu um salário durante o processo da pesquisa e que o valor do pagamento seria discutido após a emissão do relatório.
Em 1915, Alice tinha se tornado a maior autoridade nos EUA sobre o envenenamento de cobre e uma especialista em doenças industriais.
Alice nas causas sociais
Alice fazia parte da alta sociedade quando decidiu-se mudar para a Hull-House. O que no início era um plano de ação social, para o qual ela pretendia trabalhar com educação dos pobres e imigrantes, e clínica médica dos bebês, tornou-se sua especialização em medicina da saúde coletiva.
Logo no início da sua estadia no assentamento, iniciou-se a Primeira Guerra Mundial e foi quando Alice se juntou com outras mulheres para os protestos de guerra. Ela fez parte do grupo liderado por Jane Addams que participou do International Congress of Women at The Hague que ocorreu em 1915 na região então conhecida como Países Baixos.
Foi desta conferência, onde as mulheres presentes mal tinham direito a voto e cujas nações as ameaçavam de traição, que saiu a idéia da criação de uma entidade mundial que servisse para mediar as intenções de lados opostos. As ideias ali levantadas endossaram a criação de importantes órgãos de controle de relações internacionais, o que inclui a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Já em uma segunda conferência de mulheres, Alice esteve dentre as que condenavam o Tratado de Versalhes e que reivindicavam a distribuição de comida aos esfomeados europeus. É interessante situar que Alice se manifestava politicamente com certo entusiasmo e frequência, e não se importava de rever uma opinião e trocar de lado.
Até o final de sua vida ela se fazia presente nos protestos ou enviava cartas para governadores e presidentes dando sua opinião. Já na idade avançada, por volta dos seus 80-90 anos, ela foi ativa na campanha contra o macarthismo, e contra o que ela considerava um excesso no anticomunismo americano. Ela chegou a escrever para o presidente Kennedy, em 1963, pedindo para que ele retirasse as tropas americanas do Vietnã.
O Reconhecimento
A médica e pesquisadora, que não se casou e nem teve filhos, viveu muito próxima de suas três irmãs. Em seu centésimo aniversário, Alice recebeu do presidente Nixon um telegrama parabenizando-a por seu sucesso na medicina industrial. Ela faleceu em setembro de 1970, aos 101 anos, após um derrame em sua casa no estado de Connecticut. Logo após sua morte, o congresso dos EUA aprovou o Occupational Safety and Health Act; ou seja, do trabalho de Alice resultaram as políticas de segurança do trabalho que conhecemos hoje.
Convidamos a todos vocês a celebrar a Alice Hamilton e a conhecer aqui outras mulheres incríveis que fizeram ciência e aqui as que hoje estão construindo a história.
Referências
https://www.sciencehistory.org/historical-profile/alice-hamilton
http://www.acs.org/content/acs/en/education/whatischemistry/landmarks/alicehamilton.html (accessed May 10, 2020).
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