Celebrando Jane Richardson – a mulher que revolucionou a representação de moléculas em 3D

Publicado por Giovana Maria Breda Veronezi em

Jane Richardson em foto de 2002. Imagem: By original photograph on film by Thomas Photography, Bishop CA; scanned, cropped & retouched by Dcrjsr – Own work, CC BY 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=12146262

Além da paixão pela Biologia, área em que atuo profissionalmente, sempre tive um carinho mais do que especial pelo campo das artes e ilustrações. Aqui no Ciência pelos Olhos Delas, eu já me aventurei nesse campo ao dar forma às histórias das cientistas Barbara McClintock e Flossie Wong-Staal.

No ano passado, durante um curso sobre Biologia Estrutural, fiquei eufórica ao descobrir que as representações em 3D que estava vendo ali e em diversos artigos científicos tinham primeiro sido feitas à mão por uma cientista. Quis muito conhecer e poder contar essa história melhor, e é com muito prazer que trago hoje a trajetória da pesquisadora Jane Richardson.

Mas, o que é Biologia Estrutural?

Como o próprio nome sugere, a Biologia Estrutural tem como objetivo desvendar a estrutura das macromoléculas, como o DNA, o RNA e as proteínas; em outras palavras, entender como é o formato destas moléculas em 3D. Dentre as áreas das Ciências Biológicas, admito que esta foi por muito tempo a mais abstrata para mim, então gostaria de começar por detalhar um pouco mais seu funcionamento e importância. 

Um conceito principal para entender a Biologia Estrutural é o de que a forma está intimamente associada à função. O formato 3D de uma proteína, por exemplo, determina como e com quais outras moléculas ela irá interagir. Mutações que impedem o formato correto de uma macromolécula podem causar doenças. O conhecimento de uma estrutura permite, então, um melhor entendimento de como processos biológicos acontecem a nível molecular e também abre portas para o desenvolvimento de novos fármacos e tratamentos. 

Um dos mais famosos trabalhos dentro da Biologia Estrutural, e laureado com o prêmio Nobel, foi a descoberta da estrutura da molécula de DNA por Watson e Crick, com a contribuição fundamental de Rosalind Franklin. O trabalho da pesquisadora Ada Yonath sobre a estrutura dos ribossomos, também ganhador do prêmio Nobel, trouxe avanços cruciais no entendimento de como os antibióticos funcionam.

Desvendar uma estrutura não é, no entanto, um processo trivial e requer técnicas que combinam física, química e biologia. Trata-se de uma área de grande colaboração entre pesquisadores e de dados complexos tanto de se obter quanto de se interpretar. É fundamental, então, a existência de um modelo simplificado e universal de se comunicar esses dados, e nisso o trabalho de Jane Richardson foi pioneiro e revolucionário.

Comparação da estrutura atômica (esq.) e representação pelo diagrama de fitas feito à mão por Jane Richardson (dir.) da proteína Cobre Zinco Superóxido Dismutase (SOD).
Imagens: Esq: Arquivo PDB 2SOD – Tainer, J.A., Getzoff, E.D., Richardson, J.S., Richardson, D.C., 1980. https://www.rcsb.org/structure/2sod; Dir: By Dcrjsr – Own work, CC BY 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=21695880

Da infância ao começo da carreira

Nascida em 25 de Janeiro de 1941 em Teaneck, New Jersey, EUA, Jane é a segunda filha do engenheiro elétrico Robert Shelby e da professora de inglês Marian Shelby. Sua irmã mais velha, Barbara Shelby Merello, trabalhou a serviço do governo dos Estados Unidos no Brasil e em outros países da América Latina e Europa, tendo feito também traduções de livros do português para o inglês1.

Já os interesses de Jane sempre se mostraram voltados para a ciência. Desde criança até o começo da faculdade, ela era uma astrônoma amadora, fazendo observações de meteoros, eclipses e do satélite artificial Sputnik. Ela participava de clubes de astronomia e de atividades no planetário de Nova York, onde conseguiu uma lente para construir seu próprio telescópio.

Ao ingressar na universidade de Swarthmore, na Pensilvânia, Jane começou a cursar matemática, física e astronomia. Foi no primeiro ano de faculdade que ela conheceu o também calouro David (Dave) Richardson, aluno de química, que mais tarde viria a se tornar seu marido. Ao longo do caminho, Jane mudou de planos em relação à sua graduação e redirecionou seus estudos para a filosofia, área na qual obteve então o Bacharelado.

Jane e Dave se formaram em 1962 e partiram para Boston, EUA, para fazer o Doutorado. Eles se casaram pouco tempo depois, em 1963. Dave estudava química inorgânica no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e Jane, filosofia na Universidade de Harvard. Após um ano de estudos, no entanto, Jane percebeu que não gostaria de seguir carreira na área e finalizou o curso mais cedo, com a obtenção de um Mestrado.

Desvendando as primeiras estruturas de proteínas

Após a conclusão do Mestrado, Jane se aventurou por outras opções de carreira até ir trabalhar como técnica no mesmo laboratório em que seu marido cursava o Doutorado. Dave havia se interessado pela Biologia Estrutural e estava investigando a estrutura de uma proteína capaz de degradar DNA e RNA vinda da bactéria Staphylococcus quando Jane se uniu a ele.

Até então, apenas as estruturas de duas proteínas – mioglobina e hemoglobina – haviam sido desvendadas. Jane, Dave e colegas trabalharam por 7 anos na estrutura da proteína de Staphylococcus. Quando terminaram, em 1969, eles empataram com outro laboratório no décimo lugar no total de estruturas de proteínas já desvendadas, entre milhares de proteínas existentes.

Ainda em 1969, Dave foi contratado como professor do Departamento de Bioquímica da Universidade de Duke, na Carolina do Norte, EUA. Jane o acompanhou, mas por diretrizes da universidade contra nepotismo, ela não poderia se juntar ao laboratório dele e obteve uma posição no departamento de Anatomia. Ainda assim, eles continuaram a colaborar. 

Certo dia, a partir de um encontro acidental de Jane e Dave com outro pesquisador da área em uma conferência, eles perceberam que entre as estruturas de diferentes proteínas era possível notar a existência de certos padrões nos seus formatos 3D. Com essa descoberta e o aumento no número de estruturas sendo desvendadas, uma maneira efetiva de se fazer comparações era fundamental.

Os diagramas de fitas

As estruturas que já haviam sido descobertas eram representadas por desenhos feitos à mão ou por modelos em 3D feitos de arame, mas não havia um padrão entre eles. Em 1979, surgiu um convite para Jane produzir um artigo científico revisando e comparando todas as 75 estruturas de proteínas desvendadas até então. E foi a partir daí que as coisas mudaram.

Jane passou a trabalhar em uma maneira consistente de se representar algo 3D em um papel, e que ainda pudesse ser observado de diferentes ângulos e sem perder as informações físico-químicas e biológicas. A solução encontrada por ela foi considerar cada estrutura comum entre as proteínas como uma fita, ilustrada de maneira única a representar as dobras e torções que compõem seu formato 3D final. 

As formas mais comuns observadas eram a da estrutura denominada alfa-hélice, que Jane representou como uma espiral, e a estrutura chamada folha-beta, transformada por ela em setas curvas e paralelas, apontando para a mesma direção ou direções opostas. Já outras estruturas de formas menos definidas, como curvas e loops, apareceram como linhas conectando as demais estruturas. O conjunto dessas representações recebeu o nome de diagrama de fitas.

Tal empreitada levou dois anos para ser concluída, período em que Jane dedicou-se integralmente a esse projeto, com todas as ilustrações feitas à mão. Jane, no entanto, não fez cursos de desenho ou artes. Ela chegou a consultar sua sogra, que era artista plástica, mas no final as ilustrações vieram de suas próprias observações de diferentes dobras e curvaturas utilizando um cinto e das suas aulas de filosofia sobre como criar ilusões para gerar um efeito 3D. 

Os diagramas de Jane rapidamente passaram a ser utilizados na comunidade científica, e são até hoje a principal forma de representação da estrutura de proteínas. Tal sucesso pode ser atribuído não só por se ter, finalmente, um conjunto de convenções, mas pela proeza com que transforma dados extremamente complexos em uma forma de visualização mais simples e intuitiva.

À esquerda, representações criadas por Jane dos padrões mais comuns observados nas estruturas de proteínas: alfa-hélice (superior), folha-beta (meio) e loops (inferior). À direita, os mesmos elementos aparecem combinados em ilustração à mão de Jane da estrutura completa da proteína Triose Fosfato Isomerase (TIM).
Imagens: Esq: By Dcrjsr – Own work, CC BY 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=52353866; Dir: By Jane Richardson – Own work, CC BY 3.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=5809003

Reconhecimento e trabalho atual

Em 1985, Jane foi premiada pela fundação americana MacArthur, honraria popularmente conhecida como o “prêmio para gênios”. Em 1991, foi eleita membro da Academia Nacional de Ciências dos EUA e em 2006, da Academia Nacional de Medicina. Em 2012, entrou para a Associação Americana de Cristalografia e foi presidente da Sociedade de Biofísica de 2012 a 2013. Mais recentemente, em 2019, ela recebeu o prêmio Alexander Hollaender em Biofísica, da Academia Nacional de Ciências.

Jane e Dave são professores pesquisadores da Universidade de Duke, onde coordenam o Laboratório Richardson em conjunto. Ainda atuantes na área de Biologia Estrutural, seus interesses de pesquisa atuais estão focados em estruturas de RNA e proteínas, análises computacionais e desenvolvimento de softwares, além de melhoria da resolução de estruturas.

Jane é também grande defensora do acesso à informação científica por todos. Além de procurar sempre que possível publicar seus trabalhos em revistas científicas de acesso aberto (ou seja, que não precisam de assinatura ou pagamento para ter acesso ao conteúdo), ela mantém uma página da WikiMedia Commons sob o nome de usuário Dcrjsr com desenhos e fotografias de sua autoria, livres de direitos autorais, que inclusive ilustram o post de hoje.

Jane e Dave em viagem à China, foto não datada.
Imagem reproduzida de: https://www.biophysics.org/blog/jane-richardson

A ciência e caminhos não convencionais

Após tantos conceitos de física, química e biologia, pode causar estranheza lembrar que a formação de Jane foi em filosofia. Na autobiografia do casal, Dave ressalta que a formação de Jane em filosofia fez com que ela desenvolvesse um pensamento crítico aguçado, de crucial importância na hora de fazer as perguntas e interpretar os resultados. E esta é uma das bases fundamentais, muitas vezes esquecida, de todas as áreas da ciência.

Para quem é mais familiarizado com a estrutura do meio acadêmico, o espanto pode vir também do fato de que Jane nunca obteve um título de doutorado e por ter passado dois anos de sua carreira sem produção científica, digamos, quantificável (artigos, financiamentos, etc), enquanto se dedicava aos diagramas de fita. 

Em entrevista para a Universidade de Duke, Jane relata ter sofrido pressão para que buscasse o título, e que por certo tempo considerou entrar no Doutorado em Ecologia. Mas com seu ritmo de trabalho e crescente reconhecimento após a publicação dos diagramas, foi algo que ficou mesmo apenas na ideia.

Independente de ter títulos ou não, é inegável a contribuição de Jane para o campo da Biologia Estrutural. Que sua trajetória, pesquisa e ilustrações impecáveis possam continuar alcançando e inspirando cada vez mais pessoas.


Notas

1A irmã de Jane, Barbara, traduziu 12 livros de autores brasileiros para o inglês, de autores como Jorge Amado, Gilberto Freire e João Guimarães Rosa. Abaixo, uma foto de Barbara com Jorge Amado:

Imagem reproduzida de: http://kinemage.biochem.duke.edu/barbara/

Referências

Entrevista em detalhes de Jane para o projeto Mulheres na Duke Medicine: http://digitaldukemed.mc.duke.edu/med_women/women/richardson_interview.html

Autobiografia de Jane e Dave escrita pelo casal: https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-biophys-083012-130353

Reportagem celebrando 50 anos de Jane Richardson na Universidade de Duke: https://stories.duke.edu/sciences-mother-of-ribbon-diagrams-celebrates-50-years-at-duke

Recursos

O Laboratório Richardson: http://kinemage.biochem.duke.edu/index.php

Artigo de revisão de Jane que apresentou o diagrama de fitas: “The Anatomy and Taxonomy of Protein Structures”

Artigo por Jane sobre as primeiras representações de proteínas: https://www.nature.com/articles/nsb0800_624

Página de Jane na WikiMedia Commons, nome de usuário Dcrjsr: https://commons.wikimedia.org/wiki/User:Dcrjsr

Vídeo do discurso de Jane ao receber o prêmio Alexander Hollaender em Biofísica, da Academia Nacional de Ciências em 2019: https://www.youtube.com/watch?v=P6zDJN-pU4A


Giovana Maria Breda Veronezi

Graduada em Ciências Biológicas pela Unicamp em 2014 e Mestra em Biologia Celular e Estrutural pela mesma universidade. Com o sonho de criança em ser Bióloga realizado, almeja na vida adulta ver a ciência (e o mundo) cada vez mais pelos olhos delas.

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