Conheça Rigoberta Menchú Tum, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 1992
Rigoberta Menchú Tum em 2017. Foto de autoria de Joshua Nv. Todos os direitos reservados.
O texto de hoje traz a volta da categoria “Mulheres Nobeis” ao Ciência Pelos Olhos Delas! Nela, visamos destacar as vidas, as trajetórias e as contribuições das (por enquanto) 57 mulheres que já ganharam o Prêmio Nobel desde 1901 – lembrando que a brilhante Marie Curie recebeu a distinção duas vezes, uma em 1903 com o Nobel de Física e a outra em 1911 com o Nobel de Química.
Até o momento, a editoria de “Mulheres Nobeis” celebrou Ada Yonath, Nobel de Química em 2009, e Barbara McClintock, Nobel de Fisiologia ou Medicina em 1983 – ambas publicações de autoria da nossa colaboradora Giovana Veronezi (que também é uma artista incrível, como vocês poderão comprovar no post-arte sobre Barbara McClintock).
Para a retomada dessa categoria, eu, como “cria” das Ciências Humanas e Sociais e cada vez mais interessada em conhecer perspectivas para além daquelas advindas do eixo Europa Ocidental-Estados Unidos e do que é considerado o Norte Global¹, escolhi focar minha lupa na guatemalteca Rigoberta Menchú Tum, que recebeu o Prêmio Nobel da Paz no ano de 1992.
O começo, o contexto político e o caminho que levou ao ativismo
Nascida em janeiro de 1959 na aldeia de Chimel, localizada no município de Uspantán, Guatemala, em uma família campesina e indígena pertencente ao grupo étnico maia quiché, Rigoberta começou ainda criança a trabalhar com seus pais e irmãos em atividades rurais, como a colheita de café em grandes plantações.
De acordo com a biografia oficial da ativista no site do Prêmio Nobel², desde muito jovem ela começou a se envolver em iniciativas da Igreja Católica em prol de reformas sociais e dos direitos das mulheres na Guatemala.
Nesse ponto, é válido traçar um breve contexto histórico-político do país: em 1954, o então presidente guatemalteco Jacobo Arbenz Guzmán sofreu um golpe cívico-militar que foi apoiado pela CIA a mando do presidente dos Estados Unidos Dwight Eisenhower. Guzmán foi destituído e o que seguiu foi um período de intensa turbulência, culminando na guerra civil que durou de 1962 a 1996.
Assim, Rigoberta passou a infância e a adolescência nessa conjuntura marcada por conflitos e pela violência de agentes do Estado, sobretudo contra os povos indígenas. Essa violência, inclusive, marcou sua família: o pai, a mãe e dois irmãos da ativista foram perseguidos e assassinados com base em acusações de que apoiavam a resistência armada contra o regime vigente.
Em 1979, aos meros 20 anos, Rigoberta juntou-se ao Comité de Unidad Campesina – CUC (“Comitê de União Campesina”) seguindo os passos de seu pai Vicente, e tornou-se cada vez mais ativa na organização. Além disso, ela aprendeu o castelhano e outros idiomas maias em adição ao quiché, seu idioma nativo. Voltarei mais adiante no texto à questão da importância do domínio de outras línguas para a trajetória de Rigoberta.
O ativismo, o exílio e a publicação da biografia
Com a filiação ao CUC, Rigoberta Menchú passou a se envolver cada vez mais em demonstrações e protestos denunciando as condições precárias às quais trabalhadores indígenas campesinos eram submetidos. No início dos anos 1980, ela juntou-se à Frente Popular 31 de Janeiro, um órgão com atuação mais radical que a CUC. Na Frente, ela passou a ensinar táticas de resistência à população indígena.
Pelo seu ativismo, Menchú tornou-se mira do governo. Como uma das táticas estatais de repressão de dissidentes era o “desaparecimento” – sequestro seguido de assassinato – Rigoberta exilou-se no México. Foi lá que começou a organizar-se internacionalmente e a chamar a atenção de outros países para a situação da Guatemala.
Exilada, ela contou a história de sua vida até aquele momento para a antropóloga venezuelana Elisabeth Burgos-Debray. Publicado em 1983, o livro tem como título original “Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia” (“Me chamo Rigoberta Menchú e assim me nasceu a consciência”, em tradução livre).
Parece-me interessante destacar que a tradução do título da obra para o inglês é simplesmente “I, Rigoberta Menchú: An Indian Woman in Guatemala” (“Eu, Rigoberta Menchú: Uma Mulher Indígena na Guatemala”), opção linguística que considero que diminui, de certa forma, a dimensão política da chamada original.
A biografia, escrita por Burgos-Debray a partir de inúmeras horas de conversa com Rigoberta ao longo de uma semana, rapidamente ganhou notoriedade internacional e foi considerada como um relevante esforço de documentar a realidade das populações indígenas no território guatemalteca em plena guerra civil; aqui é importante ressaltar que o país abriga uma diversidade étnica com povos indígenas distintos e tem como idioma oficial o espanhol/castelhano.
Aprender castelhano como estratégia de resistência
No livro, é destacada a importância de dominar o idioma oficial – o castelhano – para usufruir de direitos básicos. A vida e a atuação de Rigoberta geraram diversas produções científicas na grande área das Ciências Humanas e Sociais, e o artigo “Me llamo Rigoberta Menchú y a mí me necesitó el castellano – a língua espanhola como dispositivo de exclusão social” (2016), de autoria de Sandra Leite dos Santos e Fernando Zolin-Vesz, chamou a minha atenção justamente por explicitar, a partir de trechos da biografia de Rigoberta, como aprender castelhano foi uma verdadeira estratégia de resistência para a ativista.
Numa das passagens selecionadas por Santos e Zolin-Vesz, Rigoberta narra um episódio ocorrido aos 13 anos, quando trabalhava como empregada doméstica. Por não conhecer as regras de formalidade dos pronomes “tú” (informal) e “usted” (formal), ela acabou se referindo à patroa da casa pelo pronome “tú”, o que a fez ser reprimida pela mulher.
Além de escancarar as diferenças de classe econômica, o conhecimento do idioma espanhol também servia para reforçar ainda mais a dimensão repressiva do governo. Quando o pai de Rigoberta foi preso, um intérprete foi acionado pela família para traduzir as declarações da mãe da ativista em defesa do marido. Contudo, o intérprete foi subornado por proprietários de terra e não traduziu as declarações de maneira correta.
Assim, tornou-se urgente para Rigoberta dominar o castelhano como forma de acessar instituições de poder e, assim, defender-se e defender seu povo. De acordo com Elizabeth Burgos, “[Rigoberta] aprendeu a língua do colonizador não para integrar-se a uma história que nunca a incluiu, mas para afirmar, por meio da palavra, uma cultura que é parte dessa história”.
Rigoberta Menchú, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz
No exílio no México e tendo fluência no espanhol e em outras línguas faladas na Guatemala além do quiché, Rigoberta teve um destacado papel como mediadora visando interações pacíficas entre o governo do país e as organizações que representavam minorias indígenas e rurais.
Ao longo dos anos 1980, ela passou a favorecer políticas de reconciliação com as autoridades da Guatemala, sempre com o objetivo de garantir a integridade física e cultural das comunidades em situação de vulnerabilidade.
Simbolicamente, em 1992, 500 anos após a chegada de Cristóvão Colombo às Américas, Rigoberta Menchú Tum foi agraciada com o Prêmio Nobel da Paz “pela sua luta por justiça social e reconciliação étnico-cultural baseada no respeito pelos direitos dos povos indígenas” (FUNDAÇÃO NOBEL, 1992).
Em seu discurso de aceitação do Prêmio, em 10 de dezembro de 1992, a ativista destacou a contribuição dos povos indígenas latinoamericanos – dos saberes tradicionais, das cosmovisões e das práticas organizacionais destes povos – para toda a humanidade:
“Eu considero esse Prêmio não como uma recompensa pessoal, mas sim como uma das grandes conquistas na luta pela paz, pelos Direitos Humanos e pelos direitos dos povos indígenas, que, por 500 anos, foram separados e fragmentados, bem como vítimas de genocídios, repressão e discriminação.” (Tradução livre)
Ressaltou, também, a privação a qual os povos originários foram submetidos ao longo dos processos de colonização:
“Não esqueçamos que quando os europeus chegaram à América, havia lá civilizações florescentes e fortes. Não se pode falar em “descoberta da América”, porque se descobre aquilo que não se sabe, ou aquilo que estava escondido. Mas a América e suas civilizações nativas se descobriram muito antes da queda do Império Romano e da Europa Medieval. O significado de suas culturas forma parte do patrimônio, da herança da humanidade e continua a surpreender os eruditos.” (Tradução livre)
Ainda salientou a conjuntura da Guatemala àquele momento e a importância das mulheres indígenas na construção de uma cultura voltada para a paz:
“O desenvolvimento histórico na Guatemala reflete agora a necessidade e a irreversibilidade da contribuição ativa das mulheres para a configuração da nova ordem social guatemalteca, da qual, eu humildemente acredito, as mulheres indígenas são testemunho claro. Esse Prêmio Nobel da Paz é um reconhecimento àquelas que foram – e ainda são na maior parte do mundo – as mais exploradas dentre os explorados, as mais discriminadas dentre os discriminados, as mais marginalizadas dentre os marginalizados, mas que, mesmo assim, são as que produzem a vida e riquezas.” (Tradução livre)
A vida depois do Nobel
Rigoberta foi nomeada Embaixadora da Boa Vontade da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em junho de 1996, menos de 4 anos após receber o Nobel. Em sua capacidade como embaixadora da UNESCO, ela prestou contribuições importantes para a promoção da Primeira Década Internacional dos Povos Indígenas do Mundo (1995-2004).
Atuou como presidenta da Iniciativa Indígena pela Paz, defendendo “a proteção dos direitos políticos, sociais e culturais dos povos indígenas e das minorias étnicas” (UNESCO). Em 1996, um tratado de paz foi assinado na Guatemala, dando fim à guerra civil que teve início em 1962 – e os esforços conciliatórios de Rigoberta no campo internacional para a obtenção desse marco não podem ser esquecidos.
Já em 1999, uma polêmica surgiu com a publicação do livro “Menchú and the Story of All Poor Guatemalans” (“Menchú e a história de todos os pobres da Guatemala”), do antropólogo estadunidense David Stoll. Na obra, Stoll argumenta que há algumas imprecisões e incoerências históricas na biografia de Rigoberta a partir de entrevistas que ele conduziu com moradores locais e fontes documentais.
Mesmo assim, o antropólogo ressalta que não questiona o mérito do Nobel da ativista, e no site do Prêmio Nobel há uma consideração a respeito da controvérsia³: “questionado sobre as alegações de Stoll, o professor Geir Lundestad, secretário do Comitê Norueguês do Nobel, declarou que a decisão de conceder o prêmio a Menchú ‘não foi baseada exclusiva ou principalmente na autobiografia’, e rejeitou qualquer sugestão de que o Comitê deveria considerar revogar o prêmio”.
Toda a atuação política de Rigoberta, principalmente as articulações internacionais que ela teceu durante seu exílio no México, corroboram com a declaração do professor Lundestad.
Quase 30 anos após ser a primeira mulher indígena latinoamericana a receber um Prêmio Nobel, Rigoberta Menchú Tum voltou para a Guatemala, onde vive atualmente, e segue na ativa⁴ – principalmente por meio da fundação que leva seu nome e que tem como objetivo semear a cultura da paz.
A ativista, que recebeu vários títulos de doutora honoris causa por suas contribuições ao avanço de pautas relacionadas aos Direitos Humanos, é um exemplo não só de luta e resistência como também de mobilização contínua em prol da garantia dos direitos das mulheres, dos povos indígenas e da população campesina, destacando a relevância da intersecção dessas três identidades – as mulheres indígenas do campo – nos processos sociais e políticos não só na Guatemala como em toda América Latina.
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O Meninas e Mulheres nas Ciências – UFPR, que é uma incrível iniciativa de divulgação científica, publicou um texto super completo sobre Rigoberta Menchú. No post, as autoras Gabriela Ferreira, Amanda Ribeiro da Rocha e Glaucia Pantano inclusive indicam um documentário feito sobre a ativista guatemalteca! Confira o conteúdo na íntegra: Rigoberta Menchú Tum, Nobel da Paz, 1992
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Notas
¹ No artigo “Más allá de la imaginación política y de la teoría crítica eurocéntricas” (2017), Boaventura de Sousa Santos fala sobre a importância de levar em conta a diversidade da experiência humana e, assim, valorizar o conhecimento produzido nos países periféricos: https://journals.openedition.org/rccs/6784
² O site da Prêmio Nobel possui uma seção inteiramente dedicada à Rigoberta, com fatos, biografia da ativista e o discurso feito por ela ao aceitar a premiação em 1992: https://www.nobelprize.org/prizes/peace/1992/tum
³ Acredito ser válido apontar que, durante minhas pesquisas para a elaboração deste post, encontrei um texto de 2017 sobre Rigoberta na Revista Con La A que termina da seguinte maneira: “Rigoberta Menchú Tum segue hoje desenvolvendo sua carreira política, tendo que enfrentar injúrias e difamações que supostos ‘antropólogos e jornalistas’ conservadores fizeram sobre sua pessoa… como quase sempre acontece com mulheres que se destacam por sua oposição ao patriarcado, qualquer que seja o ‘traje’ que ele use” (tradução livre). O texto pode ser acessado a seguir: https://conlaa.com/rigoberta-menchu-tum/
⁴ É possível acompanhar Rigoberta nas redes sociais Twitter e Facebook.
Referências
CON LA A. Rigoberta Menchú Tum, 2017. Disponível em: <https://conlaa.com/rigoberta-menchu-tum/>. Acesso em: 30 mar. 21.
ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA. Rigoberta Menchú – Guatemalan activist, 2021. Disponível em: <https://www.britannica.com/biography/Rigoberta-Menchu>. Acesso em: 27 mar. 21.
SANTOS, S. L., e ZOLIN-VESZ, F. Me llamo Rigoberta Menchú y a mí me necesitó el castellano: a língua espanhola como dispositivo de exclusão social. In: SOUZA, F. M., e ARANHA, S. D. G., orgs. Interculturalidade, linguagens e formação de professores [online]. Campina Grande: EDUEPB, 2016, pp. 35-47. Disponível em: <http://books.scielo.org/id/qbsd6/pdf/souza-9788578793470-04.pdf>. Acesso em: 27 mar. 21.
THE NOBEL PRIZE. Rigoberta Menchú Tum, c2020. Disponível em: <https://www.nobelprize.org/prizes/peace/1992/tum/>. Acesso em: 27 mar. 21.
UNESCO. Rigoberta Menchú Tum. Disponível em: <http://www.unesco.org/new/en/goodwill-ambassadors/former-goodwill-ambassadors/rigoberta-menchu-tum/>. Acesso em: 27 mar. 21.
2 comentários
Iolanda Ponzetta Araújo · 2 de abril de 2021 às 19:11
Mulher inspiradora! Parabéns pelo texto!
Juliana Aguilera Lobo · 24 de junho de 2021 às 21:24
A Rigoberta é realmente uma grande inspiração, Iolanda! Fico feliz que você tenha gostado do texto e aproveito para parabenizar o trabalho feito pela equipe do projeto Meninas e Mulheres nas Ciências - UFPR!