A Nobel Elizabeth Blackburn e a descoberta da composição dos telômeros

Publicado por Giovana Maria Breda Veronezi em

Elizabeth Blackburn em foto não datada. Foto de autoria de Boris Zharkov. Todos os direitos reservados.

No texto de hoje para a categoria Mulheres Nobeis aqui no Ciência Pelos Olhos Delas, trago a trajetória e pesquisa de Elizabeth H. Blackburn, ganhadora do Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2009.

Minha escolha de falar sobre Elizabeth veio não só da importância de suas descobertas, mas também por se tratar de um assunto muito “querido”, que me desperta muito interesse e que tive o prazer de poder já ter trabalhado nesta mesma área.

Elizabeth divide o Nobel juntamente com os pesquisadores Jack W. Szostak e Carol W. Greider, tendo Carol sido aluna de doutorado de Elizabeth. A motivação do prêmio foi “pela descoberta de como cromossomos são protegidos por telômeros e da enzima telomerase” (em tradução livre). 

Caso essas palavras façam pouco ou nenhum sentido, não se assuste. Ao longo deste texto explicarei o que esses termos significam e qual sua importância. Uma peculiaridade do texto de hoje é que dividirei seu conteúdo em duas partes. Aqui, contarei sobre os esforços de Elizabeth em desvendar a composição dos telômeros, e posteriormente contarei mais sobre a telomerase no texto dedicado a Carol Greider, nesta mesma categoria aqui no blog.

Infância e o interesse pela ciência

Elizabeth nasceu na cidade de Hobart, na Tasmânia, em 1948. Filha de pais médicos, ela é a segunda mais velha entre suas 4 irmãs e 2 irmãos. Durante sua infância, ela morou em diferentes cidades na Tasmânia, até sua família se mudar para Melbourne, Austrália, onde Elizabeth cursou o último ano do ensino médio.

Em sua autobiografia escrita para o site do Prêmio Nobel, Elizabeth recorda criar girinos em potes de vidro nos fundos da sua casa e ter tido muitos animais de estimação ao longo dos anos, entre canários, galinhas, peixes, coelhos, porquinhos da índia, gatos e cachorros. De sua paixão pelos animais surgiu o primeiro interesse pela Biologia, fortalecido pela leitura da biografia de Marie Curie escrita por sua filha, Ève Curie.

Elizabeth (atrás, segunda da esquerda para direita) entre suas irmãs e irmãos, cerca de 1965. Foto de arquivo da Fundação Nobel. Todos os direitos reservados.

Dividida entre a paixão pela ciência e pela música, vinda das aulas de piano ao longo dos anos escolares, Elizabeth decidiu-se pela carreira na ciência. Ela ingressou na Universidade de Melbourne e graduou-se em Bioquímica. Em seguida, ingressou no Mestrado, também na Universidade de Melbourne, como preparação para prestar o doutorado no exterior, incentivada por seus professores da faculdade.

Elizabeth mudou-se então para Cambridge, na Inglaterra, para fazer seu doutorado. Mesmo sem saber, ali ela já estava dando os primeiros passos em direção à descoberta que lhe renderia o Prêmio Nobel. Mas antes de me aprofundar em sua pesquisa, começarei com a descrição de alguns conceitos que terão grande importância ao longo deste texto.

Entendendo DNA, cromossomos e telômeros

Muito se fala sobre a informação genética residir no DNA, mas não tanto sobre como esse sistema funciona “na prática”. Podemos pensar no DNA como uma linha. Toda a informação genética necessária para “construir” um ser humano está contida em um conjunto de 23 moléculas de DNA – ou 23 pedaços de linha – de tamanhos e conteúdos diferentes.

Imagine agora que cada uma das linhas seja entrelaçada entre si mesma, formando um cadarço. A esse estado compacto da linha/DNA chamamos cromossomo. Cada uma de nossas células carrega duas cópias de cada uma das 23 linhas. Podemos então dizer que possuímos 23 pares de cadarços/cromossomos, cada um composto por uma única linha/molécula de DNA.

De modo simplificado, os telômeros nada mais são do que as extremidades ou pontas do cadarço/cromossomo. Essa analogia é usada pela própria Elizabeth ao falar sobre sua pesquisa, inclusive em sua palestra durante o recebimento do prêmio Nobel. Assim como a ponta dos cadarços possui uma proteção para que não desfiem, também as extremidades dos cromossomos são protegidas pela presença dos telômeros.

Esquerda: representação da analogia entre um cadarço representando um cromossomo e a proteção nas suas pontas representando os telômeros. Direita: Esquema ilustrativo dos 23 pares de cromossomos humanos. Imagem autoral criada em canva.com, todos os direitos reservados.

Os primeiros indícios de algo diferente

Por volta dos anos 30, os cromossomos já eram conhecidos pela comunidade científica, apesar de não se saber ainda que essa era a molécula responsável por conter o código genético. 

O geneticista Hermann Muller, que posteriormente veio a ganhar o Nobel, foi o primeiro a cunhar o termo “telômero” para se referir às pontas dos cromossomos. Ele percebeu, em seus experimentos com moscas-das-frutas (Drosophila melanogaster), que essas extremidades eram resistentes à mutações induzidas por raios X.

Na década de 40, a grande geneticista e também ganhadora do Nobel Barbara McClintock, cuja história tive o prazer de ilustrar aqui para o blog, adicionou mais uma peça a esse quebra-cabeça. Trabalhando com milho, Barbara percebeu que quebras nos cromossomos fazem com que estes tentem imediatamente se re-associar com qualquer outro pedaço de cromossomo que pudessem encontrar.

Barbara identificou, no entanto, que em um tipo específico de células, os cromossomos quando quebrados eram estáveis, não se fundindo mais com outros pedaços. Hoje sabe-se que essa estabilidade é devido à adição de novos telômeros no local das quebras, protegendo os cromossomos.

Desvendando a composição dos telômeros

Mas o que confere essa propriedade especial às pontas dos cromossomos? Não foi até meados dos anos 70 que mais progressos foram feitos nessa área, e o trabalho de Elizabeth Blackburn foi pioneiro e essencial para isso.

A nível molecular, o DNA é formado por inúmeras combinações de um conjunto de 4 letras, A, T, C e G,  que codificam a informação genética. Para o seu pós-doutorado no laboratório de Joe Gall, em Yale, EUA, Elizabeth se propôs a identificar as letras exatas – ou sequência de DNA – que formam os telômeros. 

Para isso, ela passou a trabalhar com um protozoário microscópico facilmente encontrado em lagos, chamado Tetrahymena thermophila. Por conter características biológicas peculiares e ser de fácil manuseio, esse microorganismo é até hoje um grande modelo animal usado por cientistas em suas pesquisas.

Para Elizabeth era vantajoso trabalhar com Tetrahymena pelo fato deste micro-organismo possuir de centenas a milhares de mini-cromossomos, o que significava uma abundância de pontas destes cromossomos – ou telômeros – à sua disposição.

Atualmente, é possível obter sequências inteiras de DNA com facilidade, mas não na época em que Elizabeth conduzia seu pós-doutorado. No entanto, Elizabeth havia feito seu doutorado no laboratório de Fred Sanger, pesquisador também ganhador do Nobel e pioneiro no desenvolvimento de tecnologias para o sequenciamento de DNA. 

Elizabeth possuía, então, excelente conhecimento nessa área, e no final dos anos 70 ela resolveu o mistério: o DNA que forma os telômeros não codifica nenhuma informação genética específica. Em vez disso, os telômeros são formados por um conjunto de apenas 6 letras, CCCCAA, que se repetem várias e várias vezes (CCCCAACCCCAACCCCAA…).

Esquerda: O protozoário Tetrahymena thermophila. Foto por Robinson R (2006), CC BY 2.5, https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tetrahymena_thermophila.png. Direita: Página do caderno de laboratório de Elizabeth Blackburn. No topo da página é possível ver suas anotações sobre as possíveis sequência de letras que formam o telômero. Foto de arquivo da Fundação Nobel. Todos os direitos reservados.

Sucessos e obstáculos ao longo do caminho

Elizabeth continuou suas pesquisas com telômeros ao mesmo tempo em que solidificava sua carreira como cientista.  Após finalizar seu pós-doutorado em 1977, ela se mudou para São Francisco, na Califórnia, onde seu marido, também cientista, havia assumido o cargo de Professor Assistente na Universidade da Califórnia São Francisco (UCSF).

Elizabeth relata ter sido rejeitada por várias universidades em que aplicou para cargos de Professora Assistente e inicialmente aceitou uma posição temporária como pesquisadora também na UCSF. Ela então foi chamada para o cargo de Professora Assistente na Universidade da Califórnia Berkeley onde pode começar seu próprio laboratório.

Ela passou a buscar proteínas associadas aos telômeros que contribuíssem para sua estrutura e função, mas sem sucesso. Não foi até Carol Greider ingressar em seu laboratório como sua aluna de doutorado que elas fariam outra grande descoberta: a enzima responsável pela adição dos telômeros, a telomerase. Voltarei para contar mais sobre essa parte da história, no entanto, em um texto futuro dedicado à trajetória de Carol.
Elizabeth se tornou Professora Contratada na UC Berkeley no mesmo ano em que deu à luz  seu filho Benjamin, em 1986. Para melhor conciliar sua vida pessoal com a profissional, no início dos anos 90 ela retornou à UCSF, onde atua até hoje.

Elizabeth Blackburn e membros do seu laboratório em 2007. Foto de arquivo da Fundação Nobel. Todos os direitos reservados.

Os desdobramentos e aplicações do seu trabalho

A descoberta da sequência dos telômeros em Tetrahymena por Elizabeth abriu caminhos para a investigação desta informação também em outros organismos. Apesar de existirem variações na sequência, é um consenso que os telômeros são sempre formados pela repetição de 6 a 8 letras. Em humanos, a sequência que se repete é TTAGGG.

Muitos avanços foram feitos também sobre o significado biológico de tal repetição. Hoje sabe-se que essa sequência repetida de letras que forma os telômeros recruta proteínas específicas para a ponta dos cromossomos que irão estabilizá-lo e conferir proteção.

Uma das aplicações mais empolgantes para muitos pesquisadores é a relação entre telômeros, envelhecimento e câncer. Devido à importância da telomerase para se entender tal relação, deixarei para trazer mais detalhes sobre isso também no texto sobre Carol Greider.

Considerações finais

Contar a história de Elizabeth Blackburn me fez refletir sobre algumas questões tão comuns no funcionamento da ciência mas que muitas vezes ficam obscuras para o meio não-científico.

A principal delas que gostaria de ressaltar é o fato de Elizabeth ter feito suas descobertas trabalhando com um organismo que para muitos pode ser visto como incomum e tão distante do ser humano que não “valeria a pena” ser estudado.

Esta, no entanto, é uma das coisas mais fascinantes para mim na ciência. Muitas das descobertas que posteriormente trazem avanços tecnológicos e melhor entendimento de doenças, por exemplo, são inicialmente feitas assim, estudando o funcionamento de organismos com biologia tão diferente da nossa.

A isso chamamos ciência básica, não pelo fato de ser simples, mas por ter como objetivo gerar conhecimento mesmo que sem uma aplicação imediata. E é importante reconhecermos e exaltarmos cada vez mais sua importância, tanto quanto a ciência aplicada.

Gostaria de finalizar reproduzindo um trecho da autobiografia de Elizabeth para o site do prêmio Nobel que muito me tocou. Ao descrever pessoas que tiveram grande influência ao longo de sua carreira como cientista, Elizabeth lista Barbara McClintock, mas não apenas pelas grandes descobertas científicas dela:

“(…) Barbara McClintock também me ensinou uma lição memorável: em uma conversa que tive com ela em 1977, durante a qual eu contei a ela sobre minhas descobertas inesperadas com as sequências terminais de rDNA, ela me incentivou a confiar em minha intuição sobre os resultados da minha pesquisa científica. Este conselho me surpreendeu na época, porque o pensamento intuitivo não era algo que eu me permitisse admitir ser um aspecto válido de ser uma pesquisadora em biologia.” (em tradução livre)

Que a trajetória e descobertas de Elizabeth Blackburn continuem inspirando muitas aspirantes a cientista, assim como muito me inspira.


Assim como nossa colaboradora Juliana Lobo cita em seu texto sobre a ganhadora do Nobel da Paz Rigoberta Menchú Tum, a iniciativa Meninas e Mulheres nas Ciências – UFPR possui um excelente conteúdo sobre as mulheres ganhadoras do Nobel. Lá, você pode ler mais sobre Elizabeth Blackburn e também se distrair com um divertido quebra-cabeças!


Referências

Autobiografia de Elizabeth Blackburn para sua página no site do Prêmio Nobel: https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2009/blackburn/biographical/

Artigo de autoria de Claire O’ Connor, PhD, para a Nature Education sobre telômeros: https://www.nature.com/scitable/topicpage/telomeres-of-human-chromosomes-21041/

Palestra dada por Elizabeth Blackburn sobre sua pesquisa durante recebimento do Prêmio Nobel: https://www.nobelprize.org/prizes/medicine/2009/blackburn/lecture/


Giovana Maria Breda Veronezi

Graduada em Ciências Biológicas pela Unicamp em 2014 e Mestra em Biologia Celular e Estrutural pela mesma universidade. Com o sonho de criança em ser Bióloga realizado, almeja na vida adulta ver a ciência (e o mundo) cada vez mais pelos olhos delas.

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