Você já teve dificuldade de escutar alguém usando máscara?

Estátua de Gertrude Stein portando uma máscara. Por Andy Atzert from New York, NY, United States, CC BY 2.0 , via Wikimedia Commons

Texto de:
Cauã Reis Gonçalves
Elisa Bellintani Falcão de Sousa 
Marina Pinheiro Tanaka 
Alunos do 3o ano de Fonoaudiologia na Unicamp


Provavelmente você se deparou com algum desses memes em suas redes sociais e se identificou com a dificuldade de escutar o que as pessoas, utilizando máscara, falavam com você. Mas será que essa dificuldade se restringe à audição exclusivamente?

As máscaras se tornaram instrumentos necessários para ajudar a minimizar a propagação do vírus durante a pandemia, e apesar de seu uso ser fundamental neste momento, fica evidente que existe um prejuízo acústico ao fazer o uso desses instrumentos de proteção. Segundo a revista The Hearing Review, as máscaras realmente atuam como um filtro acústico, reduzindo a intensidade da fala em até 12 dB*, a depender do modelo utilizado, além de distorcer a nossa voz. Contudo a dificuldade enfrentada não se resume a isso! A utilização da máscara limita as chamadas “pistas visuais”.

* dB = decibéis. A fala humana normal tem cerca de 60dB.

Mas como assim pista visual? Nós estamos falando da audição e não da visão, certo?

Sim e não! As pistas visuais também são importantes para a melhor compreensão daquilo que está sendo dito. Mas calma, antes de falarmos sobre a importância das pistas visuais, vamos ver um pouco sobre outros aspectos envolvidos na percepção da fala. A começar pela transformação dos sons em informações compreensíveis pelo nosso cérebro.

Como funciona a audição: processamento auditivo

Se você já brincou de jogar pedras e fazê-las ricochetear num lago, provavelmente já reparou que a cada toque que a pedra dá na água se formam várias ondinhas circulares. Se nunca fez isso, tente encher uma bacia ou panela de água e, depois, colocar e tirar o dedo. Repare que cada interação coma superfície da água forma ondas visíveis.

Ondas numa superfície de água. Dan Copsey, domínio público. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Shallow_water_waves.gif

O som funciona da mesma forma, mas são ondas invisíveis que acontecem no ar. Essas ondas viajam no ar e são percebidos após chegarem na nossa orelha.

Representação de um auto-falante emitindo ondas acústicas que se dispersam pelo ar. (CC0: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Horn_loudspeaker_animation.gif)

A vibração do ar que chega até o nosso corpo ainda não é suficiente para que possamos compreendê-lo. Por isso, o som precisa ser focado e amplificado. Para isso, ele entra pela nossa orelha externa, composta pelo pavilhão auditivo (a orelha) e pelo meato acústico externo (imagem abaixo), que amplificam e conduzem as ondas sonoras até a membrana timpânica (tímpano).

Perfeito, então é o tímpano que transforma o som em informação? Não, ainda tem um longo caminho.

A vibração do tímpano transmite as oscilações mecânicas para os três menores ossos do corpo humano (chamados de ossículos) localizados na parte média da orelha. Eles são o martelo, a bigorna e o estribo. Estes ossos funcionam como uma alavanca, amplificando ainda mais as ondas sonoras e conduzindo essa energia mecânica até uma estrutura que chamamos de janela oval.

Representação estrutural do aparelho auditivo humano – Mike.lifeguard, CC BY 2.5 https://creativecommons.org/licenses/by/2.5, via Wikimedia Commons

Agora estamos perto de nosso destino. A vibração dos ossículos na janela oval provoca o movimento de um líquido presente dentro da cóclea, chamada perilinfa. Esse líquido faz com que a membrana basilar (imagem abaixo) se movimente. Repare que essa membrana é semelhante a uma régua, mas uma ponta é mais fina e ela vai se alargando até a outra ponta.

Representação da membrana basilar. Kern A, Heid C, Steeb W-H, Stoop N, Stoop R, CC BY 2.5 https://creativecommons.org/licenses/by/2.5, via Wikimedia Commons

Quando essa membrana se mexe, ela transmite as ondas para outro líquido, agora dentro do ducto coclear (a endolinfa, na escala média), onde encontra-se o órgão de Corti. Esse órgão tem células ciliadas auditivas que se apoiam sobre a membrana basilar e se movimentam junto com a endolinfa. Esse movimento converte a energia mecânica no tipo de informação que o nosso cérebro é capaz de entender, ou seja, em energia bioelétrica. Esse estímulo bioelétrico agora será transmitida pelo nervo auditivo até o córtex auditivo primário que, finalmente, é responsável por processar/interpretar o som ouvido.

A interpretação do som

Agora, no sistema nervoso central, inicia-se o processo de decodificação da mensagem sonora. Isso quer dizer que a gente percebe se o som se trata de um som ambiente, de música, de algum alarme ou um som da fala.

Considere que entendemos que o som percebido é de fala. Agora se inicia um outro processo para interpretar se essa fala é produzida na nossa língua ou não. Sendo da nossa língua, precisamos interpretar os sons, se formos alfabetizados acontece um pareamento do som com a/s letra/s correspondentes a esse som em nossa língua. E tendo compreendido todos os sons produzidos, nosso cérebro será capaz de recuperar o significado das palavras usadas.

Se uma pessoa quiser comunicar o sentido de gato, normalmente irá pronunciar a palavra gato. A boca fará o ar vibrar gerando a representação acústica à esquerda. Esse sinal passará por todo o caminho no aparelho auditivo de outra pessoa que precisa compreender a língua e os sons pronunciados para, então, recuperar o sentido de “gato”, a palavra escutada.

Mas o que acontece se alguma informação é perdida?

Você já deve ter tentado conversar em meio ao trânsito, ou durante um show de rock, num estádio de futebol ou mesmo em um telefone com sinal muito ruim. Você deve, então, ter passado por situações em que nem todas as informações sonoras eram devidamente compreensíveis mas, provavelmente vocês conseguiram se entender. Nosso cérebro é incrível e tem sistemas de redundância que nos peou recuperar ou estimar os pedacinhos de informação perdida, fenômeno que chamamos de restauração fonêmica. Nesses casos, o receptor da mensagem conseguiria recuperar ou estimar a informação faltante por outras vias.

Uma possibilidade é uma recuperação inconsciente das características acústicas dos sons vizinhos, dado que nunca falamos os sons da exata mesma forma. Repare que o som K é produzido com a língua tocando lá no fundo do céu da boca, quase na garganta. Já o som T é produzido com a ponta da língua atrás dos dentes. Para produzir K e depois um T, a língua precisa percorrer a boca inteira e isso interfere acusticamente no som produzido.

Outra possibilidade é tentarmos recuperar mentalmente as possíveis palavras que correspondem aos sons escutados. Lembrando que a palavra também precisa estar adequada ao contexto, o que aumenta a probabilidade de sabermos se compreendemos a palavra certa ou não. O efeito de Priming, que foi discutido nesse post, também auxilia nessa estimativa de palavras candidatas.

Eventualmente, podemos ainda assim não compreender ou, pior, compreender a palavra errada, resultando nos “desvios de ouvido”, muito comuns em letras de música, como discutimos nesse outro post.

Outro fenômeno que pode auxiliar nesta recuperação é o Efeito McGurk, que pode explicar como as informações visuais influenciam diretamente na compreensão da fala.

Efeito McGurk: quando a audição vem pelos olhos

Em 1970, os psicólogos cognitivos Harry McGurk e John MacDonald iniciaram um trabalho de pesquisa acerca de um fenômeno que após 6 anos, ficaria conhecido como Efeito McGurk. O experimento buscou verificar um fato já comprovado há décadas, porém nunca nomeado. Antes de explicarmos qual efeito seria esse, assista os dois vídeos abaixo com atenção:

E aí, deu para ter uma ideia de como esse efeito funciona?

No primeiro vídeo, você ouviu o homem falar “boto, foto e doto”, respectivamente? E no segundo? O falante começou dizendo “BA” e depois mudou para “FA”?

Se você disse sim às perguntas acima, sinto muito, mas o Efeito McGurk te enganou dessa vez.

O Efeito McGurk é caracterizado como uma ilusão sonora, a qual “dubla” um som e induz o ouvinte a interpretar os sons da fala de outra forma, quando na verdade o que ele ouve é diferente. Então o que aconteceu nos vídeos acima, era de que no primeiro, o homem estava falando “boto” o tempo todo, mas ao mudarem a imagem e pela configuração da boca se assemelhar às consoantes “F e D”, a sua visão enganou seu cérebro, afirmando que o som também havia mudado, quando na verdade não mudou. O mesmo acontece com o vídeo dois, em que o som é sempre “ba”, porém o sentido da visão lhe pregou uma peça novamente, mudando o que se ouve para “fa”.

Se não acredita no que foi escrito, reveja os vídeos, mas agora de olhos fechados.

Desta forma, esse efeito comprova que a percepção da fala não depende apenas do som ouvido, mas também da visão e da cooperação entre as pessoas envolvidas.

Neurologicamente falando, é na região do sulco temporal superior que esse fenômeno é processado, quando decodifica as modalidades auditivas e visuais, e por conta disso, às vezes pode ocorrer alguns equívocos no processamento de ambos, ou seja, às vezes o que os olhos leem não equivale ao que o ouvido percebe, tal como o Departamento de Neurocirurgia do Houston Medical College (Texas) aponta, que ao termos uma conversa cara a cara, o cérebro recebe os impulsos nervosos captados pelas orelhas e decifra as palavras com os olhos, observando a movimentação dos lábios de quem fala. Isso é feito por nós de modo inconsciente, a fim de reforçar a comunicação, auxiliando, por exemplo, a entender a linguagem falada em ambientes ruidosos.

Além disso, o fenômeno de McGurk serve para comprovar a sobreposição do apelo visual ao auditivo, visto que não importa o que se ouça, os olhos ditam o que o cérebro deverá processar, quer sejam compatíveis ao som ou não, e esse é o ponto chave da nossa discussão, acerca de como o uso de máscaras torna-se prejudicial à inteligibilidade da fala.

Relação do Efeito McGurk ao uso da máscara

É comprovadamente científico que nós compreendemos melhor os sons da fala quando estamos diante da pessoa que está falando, por termos acesso aos movimentos da boca dessa pessoa, pois nosso cérebro tem uma memória visual sobre quais sons da fala equivalem a quais movimentos labiais e, por isso, às vezes conseguimos entender o que alguém diz mesmo sem ouvi-la direito, como fazem os especialistas em leitura labial, e nós mesmos quando vamos contar um segredo à um amigo, além de falarmos sussurrando, também inconscientemente cobrimos a boca para que não “leiam” o que estamos dizendo, mesmo sem que nos ouçam.

Assim, embora essa experiência possa nos levar a vivenciar um efeito McGurk, ou seja, a cometermos equívocos na interpretação do que ouvimos, ela também se destaca como uma estratégia muito eficiente do cérebro. Isso porque não utilizamos apenas um dos sentidos separadamente, mas é através da interação que permeia entre os diferentes sentidos, que temos uma maior compreensão de mundo, elas trabalham juntas a fim de nos fornecer as melhores experiências.

Desta forma, o uso de máscaras se torna um empecilho, visto que inutilizamos um dos sentidos, o da visão, dificultando a interpretação conjunta dos fonemas e isso, resulta em um pior entendimento do que se fala e de como recebemos a informação e a interpretamos. Por isso que o prejuízo na compreensão de fala retratado no início da publicação não se restringe apenas a diminuição de decibéis, pelo abafamento da emissão sonora durante o uso da máscara, mas também, pela ausência do uso da visão para se fazer a leitura labial do que está sendo transmitido pela fala, que é uma ação facilitadora que sempre foi utilizada por nós.

4 Dicas práticas que facilitam a inteligibilidade da fala com máscara

Assim, para melhorar a compreensão do que se diz e do que se ouve, separamos 4 dicas práticas que vão ajudar a diminuir significativamente os desentendimentos comunicativos. São eles:

1. Fale pausadamente quando estiver usando a máscara: o ritmo lento nos garante tempo para uma melhor interpretação;

2. Pronuncie cada palavra com boa articulação, não se intimide em fazer os movimentos labiais mais exagerados, afinal, ninguém está vendo por baixo de sua máscara;

3. Aumente a intensidade de sua voz, ou seja, fale mais alto, pois como há uma perda de som de aproximadamente 12 dB por conta da máscara, é válido compensarmos esse déficit;

4. Se posicione em frente a emissão sonora, pois como não será possível utilizar a visão para fazer a leitura labial do que está sendo dito, ao menos podemos facilitar a chegada do som ao nosso sistema auditivo.

Saiba Mais:

CARVALHO, Ulisses Wehby. McGurk: como o efeito McGurk melhora listening e pronúncia?. Teclasap. Disponível em: <https://www.teclasap.com.br/mcgurk/>. Acesso em 14 de julho de 2022.

Eberts S. Masks are the latest obstacle for people with hearing loss. Living with hearing loss. Maio de 2020. Disponível em: <https://livingwithhearingloss.com/2020/05/12/masks-are-the-latest-obstacle-for-people-with-hearing-loss/#more-16122>

Goldin A, Weinstein BE, Shiman N. Como as máscaras médicas degradam a percepção da fala? Revisão de Audiência . 2020;27(5):8-9. Disponível em: <https://hearingreview.com/hearing-loss/health-wellness/how-do-medical-masks-degrade-speech-reception>

Mega curioso. Efeito McGurk: quando o que você enxerga afeta aquilo que você escuta. Publicado em 7 de janeiro de 2016. Disponível em: <http://www.megacurioso.com.br/neurociencia/89345-efeito-mcgurk-quando-o-que-voce-enxerga-afeta-aquilo-que-voce-escuta.htm>. Acesso em 13 de julho de 2022

O uso de máscaras e sua interferência na vida de quem possui perda auditiva. Ouve bem. Junho de 2020. Disponível em: <https://ouvebem.com.br/blog/o-uso-de-mascaras-e-sua-interferencia-na-vida-de-quem-possui-perda-auditiva#:~:text=A%20m%C3%A1scara%20bloqueia%20fisicamente%20o,dependendo%20do%20tipo%20de%20m%C3%A1scara>

SABATER, Valeria. O efeito McGurk: quando ouvimos com os nossos olhos. A mente é maravilhosa. Publicado em 15 novembro de 2021. Disponível em: <https://amenteemaravilhosa.com.br/efeito-mcgurk/>. Acesso em 14 de julho de 2022.

Sobre Thiago Oliveira da Motta Sampaio 11 Artigos
Professor de Psicolinguística e Ciências Cognitivas na UNICAMP; Divulgador da Ciência, Scicaster e "Spiner" (Spin de Notícias) no Portal Deviante (www.deviante.com.br); e Embaixador da Olimpíada Brasileira de Linguística (www.obling.org).

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