Por que nos incomodamos com filmes (mal) dublados?

Texto de: Maria Teresa Sampaio e Thiago Motta Sampaio


Ir ao cinema é uma das diversões mais corriqueiras hoje em dia. Diversos filmes são lançados toda semana e diversos títulos e franquias têm levado milhões às telonas. Muitas das redes de cinema também têm optado por mais exibições de filmes dublados do que legendados. Existem diversas razões para isso que não serão tema desse post. Mas é notável que essa ação também fez aumentar as críticas aos filmes dublados. Mas por que nos incomodamos com filmes (mal)dublados?

Sobre a atuação de um dublador:

A dublagem tem uma tarefa bastante complicada. A dublagem não se resume a uma tradução das falas do filme original. Existe toda uma adaptação das expressões, dos contextos, das piadas e também conta bastante com a atuação dos atores (sim, dubladores são atores). Mais do que isso, existem questões mais complicadas que fazem necessária uma adaptação. Por exemplo, como adaptar o tempo de um ator americano falando “cop” para a palavra “policial” no português, que é bem mais longa? Uma solução usada especialmente nos filmes antigos é a utilização da palavra “tira”. Mas…

Por que isso importa?

Os filmes mudos eram gravados com uma variação entre 14 e 26 quadros por segundo. Mas essa taxa precisou ser reajustada para evitar a percepção de saltos na imagem (skipping), como se você estivesse assistindo a uma série no computador e a imagem trava por um tempo. Ao sair da fase do cinema mudo, essa taxa passou a ser de 24 quadros por segundo por ser a taxa mínima e mais barata de sincronização entre o som e a imagem, de forma a dar a melhor experiência possível aos expectadores. Hoje o problema passou a ser a sincronização da fala dos atores originais com o audio dos atores dubladores, de forma que o tempo de fala na imagem e no audio sejam semelhantes, do contrário o expectador terá a incômoda sensação de que audio e imagem estão dessincronizadas.

Repare que é bastante desconfortável assistir qualquer filme ou série em que as informações auditivas e visuais estejam dessincronizadas. Embora nossa mente consiga se adaptar a um certo nível de dessincronização, muitas vezes a diferença entre os movimentos da boca e das expectativa quanto às palavras escutadas são tão grandes que resulta num enorme desconforto, como no vídeo abaixo, de um quadro do Casseta & Planeta em 1992 que brincava com a dublagem de filmes americanos.

OBS.: A qualidade da imagem diminui [ou aumenta] o incômodo)

E a (psico)linguística com isso?

Nossa compreensão do mundo não pode se basear somente em um sentido. Mesmo que inconscientemente, usamos mais de uma fonte de informação para ter certeza do que estamos observando. O mesmo acontece durante a fala. Não é estranho pensar que a leitura labial, ou a visualização da articulação dos sons do interlocutor, influencia em uma percepção eficiente – ou até “confortável” – daquilo que se escuta.

Antes de continuar, veja esse vídeo do Manual do Mundo (Youtube)

Este fenômeno foi testado em um experimento de McGurk e McDonald (1976), cujo resultado foi uma ilusão “batizada” de Efeito McGurk. No experimento, três grupos (crianças em idade pré-escolar, crianças nos primeiros anos da escola, e adultos) foram testados quanto à percepção do som em 4 vídeos, com os sons e articulações das sílabas “ba”, “pa”, “ga” e “ka”. Porém, a imagem da articulação da sílaba era trocada, apresentando o som de outra sílaba, obtendo-se os vídeos: (1) voz – “ba”, imagem – “ga”; (2) voz – “pa”, imagem “ka”; (3) voz – “ga”, imagem “ba”, e (4) voz – “ka”- imagem “pa”.

Repare que, para (1) e (2), a percepção mais recorrente foi de uma terceira sílaba, “da” ou “ta”, chamada de resposta mista (em tradução livre do original ‘fused response’). O grupo que mais “errou” na percepção correta do som foi o grupo de adultos, e o que menos errou foi o de crianças em idade escolar; ou seja, o elemento visual influenciaria mais a percepção de um estímulo em adultos do que em crianças.

Efeito McGurk (Sampaio, 2016)

Uma possível explicação para essa diferença é que crianças em idade escolar têm mais contato com filmes dublados do que adultos, ao mesmo tempo que uma percepção mais refinada do que a de crianças em idade pré-escolar. De todo modo, tais explicações não passam de especulação no momento.

Mas o que de fato possibilitaria a ocorrência da ilusão?

O Efeito McGurk acontece pois percebemos tanto o estímulo visual quanto o auditivo como um evento único, logo, suas informações não podem ser ambíguas. Porém, a manipulação dos estímulos criam essa ambiguidade e nós temos pouco tempo para decidir o que devemos retirar de conteúdo. Se as duas informações concordam, temos uma redundância que aumenta a nossa certeza sobre o que ouvimos. Quando as informações são discordantes, precisamos decidir no que acreditar. Como vimos nos resultados anteriores, algumas pessoas podem confiar mais na visão, outras mais na audição. A depender do caso escolhemos ainda uma terceira interpretação, buscando conciliar as informações discordantes. Repare que nada disso é feito de forma consciente, todo o processo é feito automática e inconscientemente pela nossa mente.

Deslizes do Ouvido (Slips of the ear)

Todo esse processo também nos ajuda a entender os chamados slips of the ear (literalmente e em tradução livre: “deslizes do ouvido”), quando entendemos errado alguma parte da fala de alguém.

Os maiores exemplos de deslizes do ouvido são as mishearded lyrics (literalmente “letras mal escutadas”). Esse fenômeno acontece, por exemplo, quando decoramos uma letra de música em língua estrangeira e  descobrimos, ao ler a versão oficial, que compreendemos alguma parte de forma equivocada. Alguns exemplos clássicos são Rivaldo sai desse Lago e O cara tossiu, embora seja fácil encontrar músicas inteiras ou mesmo exemplos fora do contexto musical, como no caso da chinesa no aeroporto que quer aquele carro lá.

Também existem centenas de memes na internet com músicas em outras línguas, com sotaques do inglês menos frequentemente vistos na mídia, ou mesmo com letras na nossa própria língua, que, digamos, especulam ou lançam uma segunda interpretação sobre o que é dito. A legenda deste tipo de paródia serve como um “guia” para nossa interpretação sobre o que é escutado, e influencia na própria percepção da fala.

Seja em paródias legendadas, filmes dublados ou naquela frase escutada que não soou certa: são várias as maneiras de verificarmos interferências na interpretação daquilo que escutamos, e que são, potencialmente, demonstrações de processos mais complexos do que imaginamos.

Referências:

FERNÁNDEZ, Eva. The Hearer: Speech Perception and Lexical Access. In: FERNÁNDEZ & CAIRNS (Org.). Fundamentals of Psycholinguistics. Wiley-Blackwell: 2010.
MCGURK & MACDONALD. Hearing lips and seeing voices. Nature Vol 264. 1976.

MCGURK, Harry; MACDONALD, John. Hearing lips and seeing voices. Nature, v. 264, n. 5588, p. 746-748, 1976.

SAMPAIO, T.O.M, Percepção do tempo: da psicologia para a psicolinguística, Letras de Hoje, v.51, n.3, p.374-383, 2016.

Para saber mais, confiram o podcast Spin de Notícias #390.

Atualização: Um papo sobre dublagem do canal Tokudoc com Wendell Bezerra

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