Ciência & Bem-estar animal

Comentário do Dr. Gilson Luiz Volpato, especialista em Metodologia e Redação Científica e presidente do Instituto GilsonVolpato de Educação Científica (IGVEC). O prof. Gilson é docente aposentado do departamento de fisiologia da UNESP – campus de Botucatu (SP), onde trabalhava com comportamento e bem-estar de peixes.  

 

“O estudo do bem-estar animal tem um pressuposto básico muito interessante. Ao admitirmos que os animais não-humanos merecem ser bem tratados pelos seres humanos, estamos assumindo que eles, ou alguns deles, são seres sencientes, i.e., têm consciência do sofrimento (ou desconforto). A partir desse ponto, o restante é desdobramento bem mais simples. Porém, o primeiro pressuposto não é tão simples.

Atribuir senciência a animais não-humanos é uma tarefa desafiante. Uns a aceitam porque acham tais animais bonitinhos e com carinha do dó. Partem de uma base fraca, mas para a pessoa pode significar muito, pois vale para o nível individual. Quando vamos para o nível interindividual, a questão muda completamente. A Ciência entra aí, uma vez que vontades individuais estão fora da argumentação científica. Afinal, cada um tem o direito de pensar o que quer, mas não de querer convencer os demais em nome da Ciência usando impressões pessoais.

A questão de “provar” a senciência nos animais é, como disse, muito desafiante e nos leva a boas reflexões sobre a Ciência. Senciência inclui consciência de sofrimento ou desconforto. Como mostrar, com evidências, a existência de tal consciência? É tão difícil, ou impossível nos dias atuais, que os opositores sempre atacaram os amantes do bem-estar animal exigindo-lhes tais provas. Simples expressões motoras não são suficientes, embora sirvam de evidências indiretas. Vários defensores do bem-estar animal buscam acumular evidências indiretas de diferentes tipos. Embora existam, são eternamente indiretas. Isso faz parte da natureza do problema e das ferramentas científicas disponíveis. Não se pode registrar diretamente a variável “consciência”. Por essa razão, a questão fica difícil quando conversamos com pessoas que não estão predispostas a aceitar tais evidências. Mas é aí que alguns defensores do bem-estar respondem devolvendo o problema para os contrários: provem que os animais não têm tal consciência. E voltamos à fase inicial.

Afinal, quem tem que provar? Devemos provar que os animais não-humanos são seres sencientes ou aceitar essa condição enquanto não chegam as provas de que não são sencientes? Decisão difícil! Provem que não existe E.T., ou terão que aceita-lo; idem para gnomos, deuses, espíritos e tantas outras entidades que não conseguimos constatar claramente. Mesmo que os aceitemos no nível individual, no debate interindividual os argumentos ficam sempre na base do “eu acho”, “eu acredito”. E no caso da senciência?

É neste ponto que a Ciência pode ajudar. Afinal, ninguém tira o mérito de toda compreensão do mundo que sua ferramenta metodológica e epistemológica já nos trouxe. Se duvida, tire de sua vida tudo o que veio, direta ou indiretamente, dessa ferramenta. Melhor não tirar.

Afinal, o que se deve provar: que são seres sencientes ou que não são? No primeiro caso, aceitamos os animais não-humanos (ao menos alguns deles, como os vertebrados) como seres sencientes, até que se prove o contrário; no segundo, aceitamos que não possuem essa característica, até que se prove o contrário. Na prática da Ciência, tal dilema é resolvido de forma simples. Quais das duas possibilidades encontra maior respaldo com o que se conhece hoje na Ciência sobre a natureza dos animais não-humanos? Ou seja, o referencial é a conexão lógica da suposição com o que se aceita na atualidade dentro da ciência.

Com esse referencial, percebemos que os dados existentes são mais direcionados para se aceitar a senciência do que mantê-la apenas nos seres humanos. Podem me perguntar: em cães, gatos, cavalos e alguns outros mamíferos, isso parece mais razoável, mas em morcegos, peixes, formigas, minhocas… pouco provável. Percebam que o primeiro passo é resolver a questão entre o ser humano e os demais animais. Por que? Simples… porque por sermos da espécie humana, ninguém duvida que temos consciência de estados de sofrimento, nem que seja ao quebrarmos um braço. Conversamos entre os seres humanos e isso alicerça nossa aceitação, mesmo em crianças recém-nascidas. Esse conhecimento é aceito e ninguém duvida. Portanto, a dúvida no momento é sobre os outros animais. Apenas após superarmos essa questão, poderemos querer saber quais dos outros animais são ou não sencientes, admitindo-se que alguns sejam.

Numa visita aos conhecimentos científicos sobre a vida dos animais, incluindo os não humanos, percebemos uma gama imensa de informações que são mais indicativas de haver a percepção senciente neles do que a favor de sua ausência. Ou seja, o contexto é favorável à aceitação da senciência nos animais não-humanos. Me limitarei a não citar os exemplos aqui, mas em meus artigos mencionados logo após este texto e que estão citados aqui neste blog, poderão encontrar bons exemplos.

Esse contexto favorável à aceitação da senciência não é mais do que um contexto favorável! Porém, é exatamente isso que nos guia na decisão de quem deve mostrar as evidências, como apontei uns parágrafos acima. Afinal, a teoria mais básica e fundamental da área biológica, a teoria da seleção natural como mecanismo da evolução biológica, aponta também para a plausibilidade da senciência nos animais não-humanos. Isso, pelo critério do contexto, joga o ônus da prova para os que duvidam de tal existência. Essa é uma estratégia de ação.

Uma hipótese científica, para ser proposta, requer ao menos indícios de sua plausibilidade. Veja como fazemos nos projetos de pesquisa: na Introdução buscamos mostrar essa plausibilidade e na Metodologia sugerimos meios de testá-la; com a execução do projeto teremos condições de concluir sobre essa plausibilidade, corroborando-a ou não. É assim o ambiente.

Faz parte da ferramenta Ciência requerer bases lógicas e, principalmente, empíricas (factuais; nossas evidências) para sustentar o discurso conclusivo de cada pesquisa, seja ele para corroborar ou negar a hipótese. O problema aqui é que, no caso da senciência, tais evidências factuais não são simples e talvez nem possíveis da forma como a maioria dos casos na ciência são resolvidos. Porém, esta questão não precisa ficar apenas no âmbito da Filosofia; tem sido tratada de forma apropriada também na Ciência. E como fazemos isso?

Aproveitando as contribuições da Filosofia, somadas às evidências científicas indiretas (pois não se registra diretamente a senciência), criamos um contexto explicativo. Com o tempo esse contexto vai se tornando mais forte, mais substanciado, até mesmo mais complexo, mas suplantando uma visão sobre outra. No quadro atual, essa complexa rede de conhecimentos é muito mais favorável à aceitação da senciência nos animais não humanos. Mais ainda, ela adentra praticamente todos os vertebrados e com muita tranquilidade. Esta análise não pode partir de um ou outro artigo, mas de um conjunto imenso deles e numa perspectiva histórica dessas contribuições. Essa é também uma forma da ferramenta Ciência atuar.

Mas isso não significa que a Ciência é mais fraca do que muitos pensam? Sobre o que muitos pensam, talvez signifique fraqueza. Mas sobre sua força propriamente dita, não. É aí que vemos a força da Ciência. Quando nosso conhecimento sobre determinado sistema é adequado, podemos agir de forma prática sobre ele, com poucos erros. Se hoje enviamos sondas para Marte, foguetes para o espaço, curamos doenças inimagináveis no passado, criamos clones, construímos edifícios belíssimos, temos a internet, alegramos e ensinamos alunos, e muito mais coisas… tudo isso é porque estamos com conhecimento mais apropriado sobre esse sistema chamado mundo. Do contrário, a maioria das coisas não funcionaria. É apenas uma forma de ver o papel da Ciência, mas considero que faz muito sentido. Sei que, algumas vezes, podemos fazer algo funcionar por meio de explicações erradas. Mas a própria história da Ciência nos mostra que é uma instituição susceptível a correções. Porém, ela é lenta, requer tempo, temos que respirar dentro dela. O que ocorre hoje em que tudo é para ontem e a velocidade é o grande paradigma; mas isso não é um problema da Ciência, mas do ser humano. Quando necessário, ela estará aí para nos ajudar, mas do jeito dela.

Assim, para que lado fica o ônus da prova é uma questão resolvida na Ciência, por meio da avaliação dos contextos. Afinal, conhecemos o mundo para nos posicionarmos nele. E posicionar-se requer atitude. Para cada atitude, nos basearemos em nossas crenças do momento e não tem como ser diferente. Do contrário, ficamos estáticos e não agimos. Um médico pode saber que determinados tratamentos requerem ainda mais estudos, mas numa situação momentânea, entre agir ou não agir, penderá para o lado do menor prejuízo do paciente, que pode ser o agir.

Esse é o ambiente que nos ajuda na questão da senciência em animais não humanos. E não é uma questão de “eu acho”; é uma decisão baseada em estratégia corriqueira na vida do cientista. Historicamente, sabemos que a ideia que quer contrapor o staus quo deve lutar para se mostrar válida, e não o contrário. Infelizmente, nas questões sobre o bem-estar, interesses outros atrapalham muito o debate. De um lado, as pessoas que sentem “dó”, que querem que seus sentimentos sejam aceitos pelos outros. De outro, aquelas que se valem da exploração animal e, portanto, assumi-los como seres sencientes seria entrave para a forma como tais produções veem sendo praticadas. É nesse ambiente que precisamos de mais Ciência e menos especulação. Infelizmente, isso fica mais frágil numa população de Educação pobre e Ciência paupérrima. Também por isso temos que estudar, cada vez mais, para melhorarmos o perfil da população educacional brasileira, que inclui cada um de nós, sem exceção.”

O prof. Gilson publicou grande parte desta discussão sobre a senciência há cerca de 10 anos, em três artigos a convite das respectivas revistas. As referências desses artigos estão abaixo e podem ser encontradas aqui no blog no post “Artigos científicos e livros” (tópico “Artigos/capítulos” e subtópico “Bem-estar animal”).

– Volpato GL et al. Insights into the concept of animal welfare. Diseases of Aquatic Organisms 75: 165-71, 2007.

– Volpato GL et al. Animal Welfare: from concepts to reality. Oecologia Brasiliensis 13(1): 5-15, 2009.

– Volpato GL. Challenges in assessing animal welfare. ILAR journal 50(4): 329-37, 2009.