Cognição e personalidade de equídeos: diferenças de grau e não de tipo – parte 1

Primeira parte de um texto desenvolvido exclusivamente para o Blog pelo Dr. José Nicolau Próspero Puoli Filho, especialista em comportamento e bem-estar de equídeos, em colaboração com Marina Pagliai Ferreira da Luz. O prof. Nicolau é médico veterinário, docente pela FMVZ da UNESP – campus de Botucatu (SP), enquanto Marina é graduada e atual mestranda em Zootecnia pela mesma instituição. Ela tem trabalhado há anos com o prof. Nicolau.

 

Introduzindo o tema…

 

Ser ou não ser, eis a questão! A dimensão existencial presente na famosa frase de Shakespeare na tragédia de Hamlet (1609) exemplifica muito sobre a discussão da inteligência e da personalidade como fontes moduladoras dos comportamentos e consciência nos animais não humanos. “Ser” denota característica de propriedade intrínseca (Dicionário) e, por sua vez, individual e única. Tal concepção sempre foi alvo de discussões no tratante animais não humanos. O “não ser” ou o “não consciente” atribuídos aos animais e exaltados por Descartes (1596-1650) em sua teoria Mecanicista, confere o conceito de que esses são autômatos – máquinas, sem a capacidade de pensar e/ou sentir. Tal ponto de vista influenciou fortemente a interpretação e acepção dos animais ao longo de gerações; porém, como veremos à seguir, tal julgamento é cientificamente contrastante à realidade e, portanto, obsoleto.

Em contrapartida, David Hume (1711-1776) confere relação entre o pensar e o sentir. Segundo o filósofo, ambos são meios para um fim, sendo que o ato de pensar, imaginar, julgar e recordar são resultados dependentes que não podem ser separados das experiências sensitivas e instintivas. Reações emocionais, sejam de âmbito positivo ou negativo, desencadeiam uma série de reações cerebrais mais complexas, tais como o acesso à experiências prévias através da memória (Hanggi, 2009). Concordantemente, sabemos que o conteúdo emocional presente nas experiências e, consequentemente, nas memórias, é um fator essencial que determina mudanças estruturais e funcionais no cérebro dos animais, sendo capaz de modular futuras respostas comportamentais (Squire e Kandel, 2003). Equinos, cães e roedores, quando subjugados a condições constantes de aversão e estresse psicológico e/ou físico, sem condições de evitamento ou defesa, desencadeiam elevado nível de frustração e apatia, comprometendo suas capacidades cognitivas, motivacionais, emocionais e de aprendizado no futuro (Hall et al., 2008; Overmier e Seligman, 1967).

 Mas afinal, o que são as faculdades cognitivas. O que é ser Inteligente? Segundo Roth e Dicke (2005) a inteligência define-se pela capacidade do animal se ajustar, reagindo conscientemente (flexibilidade comportamental) de forma a apresentar soluções quando deparados a novos desafios. Segundo Gardner (1985), existem diversas formas de ser inteligente: ratos, por exemplo, possuem elevada cognição espacial, enquanto pássaros possuem aguçada cognição musical, e assim, cada espécie apresenta um perfil diferente associado a suas experiências e características intrínsecas. Nesse contexto, existe uma variação à nível individual que influencia as faculdades psico-cognitivas e reações comportamentais – a Personalidade. Cada animal é um indivíduo e, portanto, possui características únicas, sejam elas físicas e/ou mentais (Lansade e Simon, 2010). Tais características são formadas a partir de uma série de fatores, descritos por Tinbergen (1963) como quatro principais pilares: (1) fatores extrínsecos e intrínsecos; (2) fatores genéticos e funcionais da espécie; (3) experiências do indivíduo ao longo de sua vida (ontogênese); (4) evolução da espécie (filogênese).

A cognição e a psicologia comparativa dos equinos são assuntos há muito questionados e inferidos empiricamente. Apenas recentemente a questão tem se tornado alvo de argumentos e pesquisas científicas que visam entender os estados mentais desses animais e suas representações comportamentais como forma de melhorar a relação homem-cavalo. No início do século XX, uma série de averiguações sobre a cognição e a inteligência dos equinos foi desencadeada a partir do caso de Hans, o Esperto – o cavalo que sabia aritmética, notas musicais e letras. Após uma série de experimentos, o psicólogo Oskar Pfungs, determinou que o cavalo respondia as questões a partir da leitura das mínimas alterações de postura corporal de seu treinador e proprietário – o matemático aposentado Von Osten. Pouco depois, os cavalos de Elberfeld (um deles, inclusive, cego) foram intensamente investigados, visto que realizavam tarefas, tais como soletrar e calcular, sem a presença visual do treinador (Leblanc, 2013).

 

Na próxima postagem, não perca a continuação deste texto preparado com exclusividade para o Blog!

 

Referências:

HANGGI, E.B.; INGERSOLL, J.F. Long-term memory for categories and concepts in horses (Equus caballus). Animal Cognition, [s.l.], v. 12, n. 3, p.451-462, 16 jan. 2009. Springer Nature.

SQUIRE, L. R. E KANDEL, E.R. Memória: da mente às moléculas. Porto Alegre, ArtMed Editora S.A. 2003.

HALL, C. et al. Is There Evidence of Learned Helplessness in Horses? Journal Of Applied Animal Welfare Science, [s.l.], v. 11, n. 3, p.249-266, 20 jun. 2008. Informa UK Limited.

OVERMIER, J. B., & SELIGMAN, M. E. P. Effects of inescapable shock upon subsequent escape and avoidance learning. Journal of Comparative Physiological Psychology, 63, 28–33, 1967.

ROTH, G; DICKE, U. Evolution of the brain and intelligence. Trends In Cognitive Sciences, [s.l.], v. 9, n. 5, p.250-257, maio 2005. Elsevier BV.

GARDNER, H 1985. Frames of Mind: The theory of multiple intelligences. New York: Basic Books.

LANSADE, L.; SIMON, F. Horses’ learning performances are under the influence of several temperamental dimensions. Applied Animal Behaviour Science, [s.l.], v. 125, n. 1-2, p.30-37, jun. 2010.

LEBLANC, M. The Mind of the Horse: An introduction to equine cognition. Londres: Harvard University Press, 2013. 439 p.