Cognição e personalidade de equídeos: diferenças de grau e não de tipo – parte 2

Segunda parte de um texto desenvolvido exclusivamente para o Blog pelo Dr. José Nicolau Próspero Puoli Filho, especialista em comportamento e bem-estar de equídeos, em colaboração com Marina Pagliai Ferreira da Luz. O prof. Nicolau é médico veterinário, docente pela FMVZ da UNESP – campus de Botucatu (SP), enquanto Marina é graduada e atual mestranda em Zootecnia pela mesma instituição. Ela tem trabalhado há anos com o prof. Nicolau.

 

Equinos são animais sociais que mantém a ordem e a coesão do grupo pela interação entre seus membros. Tal fator basicamente determina sua sobrevivência no ambiente (Ramson e Cade, 2009). Tal como animais predados, são altamente sensíveis aos padrões de movimento (Birke, 2011) e possuem capacidade apurada de leitura das expressões corporais de outros seres vivos. Tal vantagem relaciona-se com a necessidade de modularem suas reações ao perceber antecipadamente a aproximação de predadores ou competidores (Proops e McComb, 2009). Assim, equídeos possuem uma memória de longo prazo, sendo capazes de lembrar, reconhecer e associar situações de seu ambiente social, biológico e físico (Linklater, 2007), o que lhes permite realizar modificações em seu comportamento, ajustando-se assim aos novos estímulos agregados. Além de determinar o sucesso da sobrevivência da espécie em ambientes naturais, a memória dos equídeos domésticos é cotidianamente testada por meio de condições de manejo, trabalho e métodos de treinamento (Hanggi, 2009). Uma série de experimentos científicos (Hanggi, 2009; Sappington e Goldman, 1994; Baragli et al, 2011) demonstrou que equídeos possuem memória de curto e longo prazo e capacidade de identificação e categorização de objetos e formas geométricas. Além disso, existe o fator de aprendizado individual, que determina diferenças significativas entre os animais, dependentes não apenas de características como idade e sexo, mas também de variações de personalidade e temperamento (Lansade e Simon, 2010).

Segundo LeDoux (1996, p.14), “as diversas formas de emoção são mediadas por sistemas neurais distintos, cuja evolução obedeceu a diferentes reações”. Assim, os animais, incluindo os seres humanos, possuem sistemas neurais específicos responsáveis por cumprir uma série de escopos comportamentais importantes associados a sobrevivência e manutenção das espécies. Um equino, por exemplo, quando se depara com a aproximação de um possível predador, responde emocionalmente com medo, e sua primeira reação comportamental deve ser a fuga. Esse é um exemplo da habilidade emocional em discernir e reagir rapidamente, dentro do que o aprendizado evolutivo da espécie determinou como perigoso, tal como defendido por Freud – reações emocionais conscientes são apenas a ponta do iceberg, muitos outros fatores mais profundos estão a ele associados. Ainda, a regulação das respostas emocionais – sua intensidade e sensibilidade, sejam inconscientes ou conscientes, depende do temperamento herdado desse animal, e parte presente de sua personalidade (Lansade e Simon, 2010; LeDoux, 1996).

Uma recorrente linha de pesquisa em equídeos atua na categorização da função lateralizada de seus hemisférios cerebrais, sendo que ambos coordenam movimentos e reações através do processamento de informações e emoções (Leblanc, 2013). Nesse sentido, a especialização cruzada por lateralidade do hemisfério cerebral direito e esquerdo ressaltam a preferência pelo uso de determinado lado do corpo de um grupo de animais ou indivíduo na realização de tarefas, e ainda, na capacidade de discernir estímulos bons ou ruins. Assim, o hemisfério cerebral direito controla o lado esquerdo do corpo e relaciona-se com emoções “negativas”, tais como medo, agressão, fuga e evitamento – basicamente direcionado a reações intensas com respostas rápidas. Já o hemisfério esquerdo controla o lado direito do corpo, sendo relacionado com emoções “positivas”, tais como escolha, decisões, recompensas e reconhecimento – e associado a reações que despendem de mais tempo e reflexão para a decisão. Experimento realizado por Smith et al (2016) demonstrou que equinos são capazes de reconhecer a expressão facial humana e reagir de acordo. Expressões humanas de raiva e fúria culminaram no aumento momentâneo da frequência cardíaca dos animais, além da movimentação da orelha e olho esquerdo – demonstrando a ativação do lado direito do hemisfério cerebral (relacionado a memórias negativas).

O grande desafio está em propor métodos que se adequem eficientemente na pesquisa e inferência cognitiva dos animais, levando em consideração o indivíduo testado. Se esse, por exemplo, não realiza a tarefa como o esperado, não significa necessariamente que não tenha capacidades facultativas de associação, aprendizado, memória e consciência envolvidas. Pode ser apenas que o animal esteja reagindo de uma forma diferente daquela que nós, seres humanos, esperamos que ele use (Baragli et al, 2011).  Esses pesquisadores conduziram um experimento com o objetivo de determinar se cavalos possuem a capacidade de associação. O pesquisador escondia uma cenoura sobre um de três baldes enquanto o animal o observava. Após a saída do pesquisador, o equino podia procurar o alimento. Nos primeiros dias de teste, os animais tiveram alto índice de acerto, porém despenderam mais tempo na realização da tarefa. Com o tempo, passaram a demorar menos, porém também diminuíram o índice de acerto. Os pesquisadores concluíram que isso ocorreu porque à medida que os animais aprenderam que receberiam o alimento de qualquer forma – observando o pesquisador ou por tentativa e erro, a acurácia da resposta deixou de ser significativa, enquanto que a velocidade de aquisição da recompensa passou a ser mais relevante para os animais. Isso demonstra a capacidade de associação e memorização a curto prazo dos animais, além da capacidade de tomar decisões baseadas no contexto e de modulação de sua resposta com base em suas experiências prévias e personalidade individual.

 

Em nossa próxima postagem, não perca a terceira e última parte deste texto, que foca mais na questão da personalidade em equídeos e, ao final, encerra a argumentação.

 

Referências:

BARAGLI, P. et al. Looking in the correct location for a hidden object: brief note about the memory of donkeys (Equus asinus). Ethology Ecology & Evolution, [s.l.], v. 23, n. 2, p.187-192, 13 abr. 2011. Informa UK Limited.

BIRKE, L. et al. Horses’ responses to variation in human approach. Applied Animal Behaviour Science, [s.l.], v. 134, n. 1-2, p.56-63, out. 2011.

HANGGI, E.B.; INGERSOLL, J.F. Long-term memory for categories and concepts in horses (Equus caballus). Animal Cognition, [s.l.], v. 12, n. 3, p.451-462, 16 jan. 2009. Springer Nature.

LANSADE, L.; SIMON, F. Horses’ learning performances are under the influence of several temperamental dimensions. Applied Animal Behaviour Science, [s.l.], v. 125, n. 1-2, p.30-37, jun. 2010.

LEBLANC, M. The Mind of the Horse: An introduction to equine cognition. Londres: Harvard University Press, 2013. 439 p.

LEDOUX, J.E. O Cérebro emocional. Rio de Janeiro: Objetiva Ltda, 1996. 297 p.

LINKLATER W.L. Equine learning in a wider context—opportunities for integrative pluralism. Behavioral Processes, 76:53–56, 2007.

PROOPS, L.; MCCOMB, K. Attributing attention: the use of human-given cues by domestic horses (Equus caballus). Animal Cognition, [s.l.], v. 13, n. 2, p.197-205, 9 jul. 2009.

RANSOM, J.I. AND CADE, B.S. Quantifying equid behavior: A research ethogram for free-roaming feral horses. Virginia: U.S. Geological Survey Techniques and Method, 2009. 23 p.

SAPPINGTON, B.F., GOLDMAN, L. Discrimination learning and concept formation in the Arabian horse. Journal of Animal Science, [s.l.] v.72, n.12, p.26-49, 1994.

SMITH, A.V et al. Functionally relevant responses to human facial expressions of emotion in the domestic horse (Equus caballus). Biology Letters, [s.l.], v. 12, n. 2, p.1-4, fev. 2016.