Dor

Primeiramente, é importante esclarecer que sofrimento doloroso é diferente de nocicepção. Esta última se refere a detecção de injúria ou ferimento, de forma que o estímulo chega até a medula espinhal e desencadeia uma resposta reflexa, mas não envolve processamento cognitivo do estímulo doloroso aversivo. Quando falamos em sofrimento, estamos nos referindo a detecção consciente da dor, de forma a reconhecer que algo está ferindo ou machucando o organismo bem como a intensidade de tal injúria. Assim, quando há sofrimento é porque há consciência da dor, ou seja, processamento cognitivo cerebral envolvido no processo. Dessa forma, é importante manter em mente que a nocicepção envolve apenas uma resposta reflexiva a um estímulo nocivo, enquanto que o sofrimento em si é um processo que envolve consciência do estímulo doloroso.

Segundo o Dr. David McFarland, a dor pode ser compreendida como um aspecto da emoção e o problema de acessar a dor nos animais é que isso pode ser feito apenas em analogia conosco. Dessa forma, tal abordagem está implicada na objeção que ela envolve: o antropomorfismo. Entretanto, segundo esse autor, como a dor não pode ser definida de uma maneira científica objetiva, não há muitas opções além de considerar a dor nos animais como sendo similar a dor nos seres humanos. E mesmo a dor em humanos pode ser considerada como sendo filosoficamente controversa, pois se alguém diz que “está com dor”, mesmo que não sejamos capazes de detectar sintomas fisiológicos de dor, isso não quer dizer que a pessoa realmente não esteja com alguma sensação dolorosa. Tal abordagem ainda se torna mais complexa pois é baseada puramente em analogias como reações fisiológicas e comportamentais a estímulos dolorosos similares as nossas, o que nem sempre é válido, já que animais não mamíferos, com sistemas nervosos muito diferentes dos nossos, podem expressar reações e sintomas fisiológicos também diferentes dos nossos.

Além disso, a questão da dor nos animais envolve sentimentos e paradigmas estabelecidos pelas pessoas. Tal fato normalmente envolve aceitar mais facilmente que os animais que se expressam de forma mais semelhante a nós sejam capazes de sentir dor enquanto os outros não devem  ser capazes de sofrer de forma consciente como nós. Entretanto, devemos nos lembrar que o processo evolutivo é gradual e, assim, é muito improvável que o processamento cognitivo de sentir dor, da forma complexa como vemos nos mamíferos em geral, tenha surgido apenas nesses animais. Pelo contrário, é mais parcimonioso e, portanto, mais provável que a consciência da dor tenha surgido bem antes na escala evolutiva, mesmo que de forma bem mais simplificada.

Além disso, com base nas idéias propostas pela Dra. Victoria Braithwaite, se os animais possuem o aparato anatômico fisiológico básico necessário para percepção do estímulo nocivo e se um sinal nociceptivo é gerado para diferentes tipos específicos de estímulos sendo que a informação é enviada a estruturas cerebrais de alta ordem cognitiva, podemos considerar a possibilidade provável de que o animal sinta dor de forma consciente. Além disso, com base nas idéias propostas por essa autora, se for possível detectar alterações comportamentais complexas em função de exposição a estímulo nocivo que retornam ao comportamento tido como normal daquele indivíduo quando de sua exposição a algum analgésico, esta deve ser uma demonstação de que ele sente dor de forma consciente. E tal experiência já foi observada inclusive em peixes. Se isso não pode ser considerado como uma resposta mais complexa que expressa processamento consciente do estímulo nocivo, o que mais poderia ser?

Assim, vemos que é muito provável que os animais sintam a dor conscientemente, de forma que temos a obrigação ética e moral de levar isso em consideração quando tratamos de questões relacionadas ao bem-estar animal.