Dor em peixes?

Um tema que tem gerado muita discussão e polêmica na área de comportamento e bem-estar animal é sobre a dor em peixes. Será que os peixes sentem, conscientemente, a dor?  A resposta a essa pergunta deve nortear nossas atitudes em relação aos peixes, pois se eles sofrem em condições dolorosas, frustrantes ou desconfortáveis, nós temos o dever de minimizar tai condições. Há cientistas que defendem que os peixes são capazes de sentir dor, como a Dra. Braithwaite e a Dra. Huntingford. Por outro lado, também existem cientistas como o Dr. Rose e o Dr. Arlinghaus que defendem que na verdade tudo não passa de respostas reflexivas que não envolvem processamento cognitivo. 

Há diversos artigos científicos que defendem cada uma dessas visões, e que vou, aos poucos, postar aqui no blog. A discussão é longa, mas o que temos que ter em mente é que, como proposto pelo Dr. Gilson Volpato, na dúvida se o animal é um ser senciente ou não (ou seja, se ele é ou não capaz de sentir as emoções básicas como calor, frio e dor), é melhor assumirmos tal animal como sendo um ser senciente. Assim, estaremos evitando sofrimento a um ser que pode ser capaz de sentir essa condição dolorosa/frustrante, conscientemente.

A Dra. Braithwaite afirma em alguns de seus artigos, bem como em seu livro (vejam o post sobre artigos científicos e livros) que os peixes são capazes de sentir dor. Os argumentos dessa autora se baseiam nos fatos de que os peixes apresentam vários receptores ativos de estímulos nocivos/dolorosos (nociceptores), além de fibras condutoras ativas dos estímulos dolorosos (fibras C e A-delta) e são capazes de processar a informação do estímulo no cérebro. Assim, os peixes teriam todo o aparato anatômico-fisiológico para captar estímulos dolorosos. Além disso, essa autora argumenta que os peixes, quando em situações dolorosas como quando são inoculados com veneno de abelha, expressam alterações comportamentais mais complexas, como o comportamento aversivo alterado. Nesse caso, os peixes que como muitos outros animais tem uma aversão inicial natural por objetos novos ineridos no ambiente, perdem essa resposta aversiva quando estão sentindo dor. Isso deve ocorrer porque o estímulo doloroso desvia a atenção, afetando o comportamento natural do animal. Mais ainda, já foi demonstrado que tais respostas de alteração comportamental são revertidas quando os peixes recebem analgésico após serem expostos a estímulos dolorosos, de forma que voltam a exibir o padrão comportamental aversivo frente a novos objetos. Além disso, também já foi demonstrado que ao menos algumas espécies de peixes são capazes de expressar respostas que demonstram que eles apresentam os 3 níveis de consciência propostos por Ned Block, um filósofo da psicologia e ciência cognitiva, incluindo consciência primária ou de acesso (combinar informações para guiar o comportamento), consciência fenomenal (senciência) e monitoramento e auto-consciência (capacidade de refletir sobre o ambiente e suas próprias ações). Tais evidências tem demonstrado a capacidade, ao menos de algumas espécies de peixes, de sentir dor. Por que duvidar que as outras espécies de peixes também sintam? 

Por outro lado, o Dr. Rose argumenta que faltam regiões corticais especializadas no cérebro dos peixes que são normalmente associadas ao processamento do estímulo doloroso em mamíferos. Além disso, tal autor tem afirmado que os resultados dos estudos que demonstram a dor em peixes a nível consciente tem sido mal interpretados e não replicáveis, além de falar que as fibras nervosas mais associadas a dor em mamíferos (fibras C) são raras em peixes. Entretanto, sabemos que não é porque não detectamos as regiões cerebrais especializadas exatamente como ocorrem em mamíferos, que podemos falar que tais regiões não existem e que, portanto, o peixe não é capaz de sentir dor. Por exemplo, já foi demonstrado que os peixes são capazes de lateralizar (usar diferentes lados do cérebro para diferentes atividades/processamento de estímulos) informações distintas , embora a região do neocórtex cerebral esteja ausente nesses animais, e seja a região cerebral que em nós está fortemente associada a lateralização… Além disso, só porque as fibras mais associadas a dor em mamíferos (fibras C) são mais raras em peixes, não significa que eles não são capazes de sentir dor, pois outras fibras que ainda são associadas a dor nos próprios mamíferos (fibras A-delta) são frequentes em peixes. Assim, mesmo que os peixes não sejam capazes de sentir a dor de forma tão intensa e complexa como nos mamíferos pela raridade ou ausência das fibras C, não implica que eles não sejam capazes de sentir nada, conscientemente, em relação a estímulos nocivos. Por fim, as argumentações de Rose que baseiam a suposta mal interpretação dos dados em estudos demonstrando a provável consciência da dor em peixes parecem falhas…

A discussão continua, mas com base nessas informações fica difícil não acreditar que os peixes sejam realmente capazes de sentir dor. De qualquer forma, se tivermos alguma dúvida, é melhor considerarmos que é ao menos provável que os peixes sintam dor, pois do ponto de vista evolutivo seria muito adaptativo para os animais, em geral, ter consciência, mesmo que nos níveis mais basais, dos estímulos nocivos. Isso ocorre porque dessa forma os animais, incluindo os peixes, conscientemente evitariam estímulos nocivos que poderiam ser muito prejudiciais ao organismo. Além disso, não podemos nos esquecer que a evolução normalmente ocorre a passos bem graduais ao longo do tempo, o que torna improvável a ideia de que a consciência da dor tenha surgido, da forma complexa como é nos seres humanos, apenas em mamíferos. Mesmo assim, se você ainda tiver dúvidas sobre a consciência do sofrimento em peixes, pense que é melhor considerar a possibilidade de que eles sintam dor e tratá-los de acordo, do que acreditar que eles não sentem e causar sofrimento desnecessário a esses animais.