Os principais desafios para o bem-estar de jumentos no estabelecimento do comércio de pele

Este texto é de autoria de Patricia Tatemoto, que é bióloga e mestre em Aquicultura pela UNESP, doutora em Medicina Veterinária pela USP. Atualmente, ela representa na América do Sul a ONG de proteção animal “The Donkey Sanctuary”.

 

Afinal, trabalhar em ONG significa não ser remunerado? Se resume apenas a trabalhos voluntários? A resposta é não. Atualmente, represento na América do Sul a maior instituição de proteção de equídeos do mundo, e sou remunerada. Outras ONGs também remuneram alguns cargos, fazem processo seletivo e contratação. Vou contar um pouquinho da minha experiência para você.

Entrei para a The Donkey Sanctuary como pós-doutoranda, e depois me contrataram. Essa organização não-governamental foi fundada em 1969. A instituição trabalha em parceria com mais de 35 países, incluindo governos, universidades, comunidades locais e ONGs. O objetivo é ajudar os estimados 50 milhões de jumentos e mulas em todo o mundo, promovendo colaborações duradouras e construtivas. 

A campanha em que atuo é para banir o comércio de pele de jumentos, que tem acontecido em diversos países, incluindo o Brasil. A medicina tradicional chinesa utiliza o colágeno extraído da pele do jumento como um elixir, e comercializa isso por preços altíssimos. No entanto, os comerciantes no Brasil chegam a pagar 1 real por jumento. Eles embarcam os jumentos em caminhões impróprios, sendo que esses animais acabam sendo acumulados em fazendas temporárias sem registro nas agências sanitárias, e depois são embarcados novamente e enviados aos abatedouros.

Nas fazendas temporárias, os animais geralmente não recebem água, nem comida, e muito menos assistência veterinária. Como você pode antecipar, muitos animais morrem, e as carcaças são descartadas de forma imprópria, causando também impacto ambiental e risco sanitário. A situação é anacrônica, e, sobretudo, indefensável! Estamos enfrentando uma crise, na qual temos que exigir que os animais tenham água e comida, uma discussão que parecia ter sido resolvida em 1965, com o Comitê Brambell, que foi formado em decorrência do livro-denúncia “Animal Machines” da Ruth Harrison, já discutido neste Blog aqui, e que se você não leu, vale a pena!

Em 2019 participei de uma apreensão junto aos promotores de justiça de Euclides da Cunha, no sertão da Bahia.  Também participaram da apreensão órgãos de fiscalização ambiental do Estado da Bahia e a instituição de competência federal, o IBAMA. Presenciei animais submetidos à situação de maus-tratos e com altíssimo risco de biossegurança. Os jumentos morriam diariamente, sem acesso ao básico preconizado internacionalmente para manter os animais sob nossa responsabilidade. “O cenário era de guerra”, confessou um dos mais experientes agentes da defesa sanitária. Sinto-me responsável por defender esses animais e acabei criando um laço vitalício com essa espécie, que sofre em nome da falta de discernimento que temos em relação ao respeito e à empatia. 

Meu parecer técnico influenciou diretamente na tomada de decisão das autoridades e apreendemos os animais, que foram tutelados pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, que bravamente se encarregou de cuidar de 694 jumentos (estimativa inicial era de 800). Muitos morreram, e as consequências dos maus-tratos foram lentamente contornadas com muito empenho de professores, ONGs e veterinários. Nesse caso, o suposto fim dos animais foi feliz. Eles estão sendo encaminhados para adoção. Evidenciamos, junto ao órgão de defesa sanitária da Bahia, casos positivos de mormo e anemia infecciosa equina. O mormo é uma zoonose com alta letalidade para humanos. Assim, no maior caso da história da Bahia, a fazenda ficou interditada por meses.

O jegue, como é conhecido aqui, é o símbolo do Nordeste. “A nação nordestina foi moldada no lombo de um jumento”, disse Kátia Lopez, veterinária de Mossoró-RN. Basta conversar com nordestinos no interior dos estados que você escuta relatos de como o jumento foi importante. Ouvi histórias incríveis, de jumentos que sabiam o caminho de casa e levavam as compras em segurança, enquanto seu tutor tomava todas no bar. Histórias sobre como as pessoas “brincavam de jegue”, e como o nordestino se identifica com a resiliência desse animal, que mascara suas dores e resiste ao clima inóspito do sertão. 

No entanto, em apenas um mês, o símbolo de resistência do Nordeste teve o número de 12 mil indivíduos abatidos. E isso se repetiu por meses. Isso, doze mil, em um mês! Essa atividade viola nossa constituição federal, nossas leis e nossas instruções normativas. Essas transgressões incluem risco de extinção da espécie, maus-tratos, risco sanitário, falta de rastreabilidade, e biossegurança frágil. O arcabouço científico respalda esses animais como seres detentores de uma consciência parecida com a nossa, o que não deveria permitir que negociemos sua dignidade…