Relação entre animais humanos e não humanos

Recentemente falei para vocês no blog sobre transmissão cultural (aqui), o uso de ferramentas (aqui) e a solução de problemas (aqui) nos animais, respectivamente. A partir disso, gostaria de compartilhar hoje com vocês uma experiência que tive junto com uma amiga minha, Danielle Silva, durante um curso que fizemos na faculdade de medicina da UNESP de Botucatu (SP) para introduzir meu ponto de vista sobre a diferenciação/aproximação homem-animal. 

Embora o curso não fosse específico da área médica, a grande maioria (para não dizer provavelmente todos os demais participantes) era composta por médicos ou estudantes de medicina humana. O curso foi muito produtivo, com várias palestras e discussões interessantes. Entretanto, em um dado momento do bate papo final entre um palestrante e os alunos, o médico palestrante sugeriu que nós, seres humanos, seríamos diferentes dos demais animais por termos algumas características peculiares e encontradas apenas em humanos. Nesse ponto, minha amiga e eu – provavelmente as únicas biólogas ali presentes – começamos a questioná-lo sobre quais seriam essas características. Lembro, no caso (a Danielle Silva pode me ajudar muito aqui!), que ele falou sobre as peculiaridades da linguagem e da cultura humana, e não é incomum que as pessoas, nesse tipo de discussão, ainda incluíam aí a capacidade dos humanos de resolver problemas e criar e usar ferramentas. Lembro-me de ter argumentado, juntamente com a Danielle, que outros animais comunicavam-se por linguagem (às vezes muito complexas, como os cantos de vários pássaros) e que a transmissão cultural em animais não-humanos é conhecida ao menos em algumas outras espécies. O mesmo pode ser dito sobre o uso de ferramentas (inclusive nos peixes!) e a capacidade de solução de problemas.

Numa outra ocasião, conversando com um professor da área da saúde, lembro-me que ele separava os humanos dos demais animais num grupo à parte, como se fôssemos criaturas com algo especial, sendo assim diferentes das demais espécies e merecendo, inclusive, sermos classificados de forma diferenciada… Imagino que a principal característica que pode levar as pessoas a tal conclusão é o que consideram como a complexidade do ser humano… Muitas vezes as pessoas classificam os humanos como seres diferenciados por considerá-los mais complexos e, portanto, capazes de ações mais complexas do que os outros animais. Mas será que a complexidade representa tal diferencial? Na realidade, do ponto de vista da natureza, ser mais ou menos complexo não implica necessariamente em estar em vantagem, ou seja, melhor adaptado às condições ambientais. Quando ocorre uma pressão seletiva do ambiente, não é necessariamente um organismo mais complexo que será capaz de sobreviver, mas sim aquele que possuir uma característica vantajosa frente aos novos desafios ambientais.

Pensando por esse lado, creio que o que mais me impressiona mesmo são aqueles organismos capazes de sobreviver frente a fortes e diversas pressões ambientais ao longo das eras geológicas. Nós humanos podemos ter uma linguagem bem complexa, construir e usar ferramentas incríveis, expressar os mais diversos padrões culturais, solucionar problemas super complexos e até mesmo desenvolver problemas para testar a capacidade das outras espécies de solucioná-los, entre diversas outras características, mas toda essa complexidade não nos torna diferentes dos outros animais. Animais mais complexos não são melhores ou piores que animais menos complexos. Além disso, complexidade no reino animal ocorre num gradiente de resposta entre as espécies e não de forma extrema entre humanos e os demais animais.  

Ainda nesse aspecto, não somos capazes de saber exatamente nem o que se passa pela cabeça de outros seres humanos ou mesmo podemos nem acreditar no que se passa na nossa própria mente, imagine saber tudo o que se passa na mente de um animal não humano! Como saber o que um peixe pensa exatamente quando inserimos um objeto novo em seu aquário, por exemplo? Como saber exatamente o que um cão pensa quando jogamos uma bolinha para ele ir buscar? Isso torna-se especialmente difícil quando observamos animais não-mamíferos como os peixes, que estão naturalmente mais distantes de nós e assim, são naturalmente mais difíceis de interpretar… Obviamente fazemos inferências sobre isso, e, de um ponto de vista mais científico, testamos hipóteses a fim de melhor compreender as ações resultantes nessas situações, mas a complexidade da mente dos animais está ainda longe de ser compreendida. Outro dia fiquei contemplando minha gata no jardim de casa enquanto refletia exatamente sobre esta questão: o que exatamente será que ela está pensando ao olhar para o céu neste momento?

Eis aí o desafio do estudo do comportamento animal. Além do que podemos objetivamente testar e inferir a partir de uma resposta comportamental de um animal, o que podemos interpretar do que realmente está passando pela mente dele num determinado momento? Mas talvez, o real desafio para várias pessoas seja antes de mais nada encarar o ser humano como sendo uma espécie como as outras, o que também ajuda a evitar o antropomorfismo e a subjetividade egocêntrica de sempre considerar mais, mesmo que inconscientemente, aqueles animais que tem reações e expressões mais próximas das nossas.