“Vivemos agora na ‘Idade da Bactéria’. Nosso planeta sempre esteve na ‘Idade da Bactéria’, desde que mesmo os primeiros fósseis – de bactérias, é lógico – ficaram enclausurados nas rochas há mais de três bilhões e meio de anos.”
Stephen Jay Gould (1996)
Lance de Dados (pág. 241). Editora Record
Mais de 10 anos se passaram desde que Gould escreveu esta frase em um dos seus marcantes livros de divulgação científica e parece que grande parte da população humana (incluindo biólogos) ainda não despertou para o tema. Nós somos apenas um mísero galho de uma grande e robusta árvore formada em grande parte pela vasta diversidade microbiana. E é sobre isso que este post irá tratar.
Todos nós aprendemos no colégio (até hoje em dia, inclusive) que a vida pode ser dividida (artificialmente, por nós humanos) em cinco reinos. Esta divisão clássica em Monera, Protista, Plantae, Fungi e Animalia vigorou por décadas, desde trabalhos publicados por Wittacker em 1969. Vemos nesta figura a clara visão do “paradigma de progresso”, expressão muito utilizada por Gould. Grande parte dos microorganismos se concentram na base e os animais se posicionam como os mais evoluídos, no topo.

Os clássicos cinco reinos
Em 1977, o microbiólogo americano Carl Richard Woese coloca pela primeira vez a divisão clássica dos cinco reinos em xeque. Através de análises de seqüências de RNA ribossomal, Woese mostra em um artigo na PNAS que há uma grande diferenciação dentro do grupo dos organismos chamados procariotos. Ele propõe uma divisão dentro deste domínio em eubactérias (bactérias verdadeiras) e archaebactérias (bactérias que normalmente vivem em ambientes extremos). Já em 1990, o mesmo autor refina sua divisão em outro artigo na mesma PNAS, propondo o que conhecemos hoje como os três domínios da vida (Eubacteria, Archea e Eucarya), sendo Archea o chamado “Terceiro domínio da vida”. Neste artigo, Woese ressalta que a diferença entre os domínios Eubacteria e Archea é maior que a diferença entre os clássicos reinos Animalia e Fungi. Desta forma, nós Seres humanos somos mais parecidos geneticamente com fungos do que microorganismos dos domínios eubacteria e Archea. Podemos perceber que o que Woese propôs em 1990 estáva muito a frente do “consenso científico”. Enquanto taxonomistas passam a vida toda tentando organizar ordens ou gêneros, Woese propôs um táxon acima de “Reino”, alterando de forma marcante nossa visão da vida em nosso planeta.

Figura original do artigo de 1990 de Woese na PNAS
É claro que um artigo deste porte não poderia passar despercebido pela comunidade científica, ainda mais sendo publicada em um dos periódicos científicos mais importantes do mundo. Como tudo na ciência, quebras de paradigmas são processores difícies e muitas vezes bem longos. A grande descoberta de Woese foi tradada como loucura, non-sense, besteira, dentre outros nomes. Cientistas renomados do mundo todo se recusaram a aceitar esta descoberta como relevante, fazendo pouco caso da mesma. Uma destas vozes foi o grande ecólogo Ernst Mayr, que defendeu a utilização de apenas duas grandes divisões (Procariotos-Eucariotos) em detrimento da divisão em três domínios de Woese. A resposta de Woese foi feita em um artigo de 1998 também na PNAS, em que ele termina com as seguintes conclusões (tradução livre):
“(…) A biologia do Dr. Mayr reflete os últimos bilhões de anos da evolução; a minha os primeiros três bilhões. Sua biologia é centrada em organismos multicelulares e suas evoluções; minha em um ancestral universal e seus descendentes imediatos. Sua é a biologia de experiência visual, de observação direta. Minha não pode ser vista diretamente ou tocada; é a biologia das moléculas, dos genes e suas histórias inferidas. Para mim, evolução é primariamente o processo evolutivo, não as suas conseqüências. A ciência da biologia é bem diferente nestas duas perspectivas, e seu futuro ainda mais.”
Carl Woese
Em 2003 Woese ganhou o prêmio Crafoord, entregue pela mesma acedemia sueca responsável pelo prêmio nobel. O prêmio Crafoord é entregue a cientistas que tiveram trabalhos relevantes em outras áreas que não são contempladas pelo Nobel. Mais de 30 anos depois do primeiro artigo de Woese, a divisão da vida em três domínios passa a ser representativa em livros didáticos. Talvez daqui a algumas décadas com a adoção em larga escala deste conceito em livros básicos, nós Seres humanos poderemos realmente entender o que Gould quis dizer com a expressão “Idade das bactérias”. E que nós somos apenas um galho recém nascido na grande árvore da vida.
Mais sobre a vida de Carl Woese
Carl Woese: from scientific dissident to textbook orthodoxy
Outros artigos interessantes deste c
ientista:
Interpreting the universal phylogenetic tree
Microbiology in transition
On the nature of global classification
Este post faz parte da ótima iniciativa do Lablogatórios, o I Carnaval Científico.
Referências:
C R Woese, & G E Fox (1977). Phylogenetic structure of the prokaryotic domain: the primary kingdoms PNAS, 74 (11), 5088-5090
C R Woese, O Kandler, & M L Wheelis (1990). Towards a natural system of organisms: proposal for the domains Archaea, Bacteria, and Eucarya PNAS, 87 (12), 4576-4579
C R Woese (1998). Default taxonomy: Ernst Mayr’s view of the microbial world PNAS, 95 (19), 11043-11046
C R Woese (1998). The universal ancestor PNAS, 95 (12), 6854-6859
Goldenfeld, N., & Woese, C. (2007). Biology’s next revolution Nature, 445 (7126), 369-369 DOI: 10.1038/445369a
Vetsigian, K. (2006). Collective evolution and the genetic code Proceedings of the National Academy of Sciences, 103 (28), 10696-10701 DOI: 10.1073/pnas.0603780103
Olá Lílian
Obrigado pelos elogios. Sem dúvidas a importância das bactérias e archea para o nosso planeta é muito grande. Outro importante papel é feito pelos vírus, que será tema de um post no futuro.
Eu simplesmente fiquei encantada com a riqueza destas informações, sou graduanda em ciências biológicas e apaixonada por microbiologia e em uma de minhas pesquisas achei o blog de vocês. Inclusive fiquei ainda mais tranquila, pois dei aula referente ao reino monera neste fim de semana e percebo ainda mais, que não errei ao infatizar a importância destes microorganismos em nosso "mundinho", obrigada por enriquecer ainda mais meus conhecimentos.
Mais um post inspiradíssimo! Nada como um pouco de filogenia para mostrar o nosso verdadeiro lugar no planeta...A propósito, saiu o resultado do sorteio do livrohttp://www.ediouro.com.br/as100maioresdescobertas/Veja em:http://lablogatorios.com.br/raiox/2008/10/18/e-os-ganhadores-dos-livros-foram/Valeu pela participação!
Fala Igor,Acho que o problema não é que não há ninguém ouvindo. Os artigos do Woese foram publicados em periódicos de grande prestígio, como PNAS e Nature. A quebra de paradigma faz sim barulho, mas quando somos surdos, isso não faz a menor diferença. Acho isso ainda mais grave entre cientistas, que teoricamente deveriam ser abertos a novos argumentos.Abraços e obrigado pela visita!
Eu ia dizer algo parecido com o que a Isis disse, mas cheguei tarde demais. As bactérias são as reais donas do mundo onde vivemos.Eu gosto delas...Se um paradigma quebra e não há ninguém ouvindo, ele faz barulho?
Caro Ronaldo,Muito obrigado pelos elogios. O bafana já faz parte da lista de blog recomendados do Discutindo Ecologia (na nossa barra lateral) e também do meu leitor de RSS. Obrigado pela indicação.Abraços.
Gostaria de cumprimentá-los pelo excelente conteúdo deste blog. Este artigo, em especial, está um primor. Vamos colocar um link do seu blog no nosso, ok?Ronaldo Angelini (Bafana Ciência)
As bactérias são tão relevantes que astrônomos buscam encontrá-las universo afora.