Energia para as mulheres e mulheres para a energia: as contribuições de Amulya Reddy e Srilatha Batliwala

Por Gabrielle Adabo

As aproximações entre os estudos de gênero, que tomam por base as construções sociais que dividem a sociedade em masculino e feminino, e as mais diversas áreas do conhecimento têm permitido a produção de análises sobre os papéis desempenhados e as dificuldades e desigualdades enfrentadas pelas mulheres. Com o uso da energia e com a escolha das tecnologias utilizadas não é diferente, embora pouco reconhecido por esses lados daqui. Você já chegou a pensar nessa conexão?

Pois bem, o acesso à energia e às tecnologias dela decorrentes é fundamental para alcançar a justiça e erradicar as desigualdades baseadas em gênero ou em outros marcadores como classe e etnia. É o que afirmam Srilatha Batliwala e Amulya Reddy em artigo publicado em 1996, década na qual ocorreram discussões importantes nos estudos de gênero.

Neste post, mostramos algumas das contribuições trazidas pela escritora, ativista social e advogada dos direitos das mulheres Srilatha Batliwala e por Amulya Reddy, um dos fundadores da ONG International Energy Initiative – IEI Brasil, ambos da Índia. No artigo chamado “Energy for Women & Women for Energy (Engendering Energy and Empowering Women)” – Energia para as mulheres e Mulheres para a Energia (Engendrando Energia e Empoderando Mulheres), em tradução livre – os autores consideram aspectos dos usos da energia a partir de uma perspectiva de gênero.

Batliwala e Reddy chamam a atenção para as características das análises tradicionais sobre energia, mais voltadas para os ciclos dos combustíveis do que para o consumo. Os autores apontam uma mudança nesse cenário a partir das décadas de 60/70. No entanto, ressaltam que até então (década de 90) poucas análises haviam sido tecidas sobre a distribuição de gênero no consumo de energia.

A partir de um estudo realizado na década de 70 no vilarejo de Pura, no sul da Índia, que analisou os padrões de consumo de energia da população nessa área rural, os autores fizeram algumas observações com base no gênero. As mulheres de Pura gastam mais energia humana do que os homens do vilarejo – 53% do total de horas de trabalho humano, sendo 42% para coleta de combustível, 80% para a busca de água, 15% para o pastoreio de gado e 44% para o trabalho agrícola. Segundo os autores, trata-se de um trabalho que é vital para a sobrevivência das famílias.

Além disso, há o que os autores chamam de uma “preferência de gênero” nas atividades agrícolas. Enquanto os homens aram e preparam a terra com o auxílio de animais, às mulheres cabem atividades como o plantio e a colheita, que implicam posturas de assento e curvatura e o trabalho manual. No entanto, quando é implementada a mecanização destas atividades, com o uso de colheitadeiras mecânicas, por exemplo, tal trabalho passa a ser apropriado pelos homens e as mulheres perdem os empregos.

Apesar de trabalharem mais do que os homens e executarem tarefas sem o auxílio de animais ou máquinas, as mulheres ingerem menos energia alimentar. Segundo os autores: “A universal, mas triste, verdade nos países em desenvolvimento é que as mulheres tradicionalmente comem por último e menos em uma família – isso é resultado do valor cultural dominante atribuído aos adultos do sexo masculino e aos meninos” (p. 4). O acesso aos alimentos dentro da família, portanto, também é marcado pelo viés de gênero. O excesso de trabalho e a nutrição deficiente causam efeitos negativos na saúde das mulheres.

Outros impactos à saúde das mulheres pobres, à nível mundial, foram associados ao uso da biomassa como forma de combustível, principalmente na cozinha. Combustíveis como a lenha e os bolos de estrume liberam altos níveis de componentes tóxicos nocivos em concentrações que podem ser centenas de vezes maiores do que os limites recomendados pela Organização Mundial da Saúde[1]. Em muitas partes do mundo, as mulheres são expostas desde cedo a tais poluentes no ambiente doméstico, o que pode causar desde infecções a cânceres. Os autores ressaltam que a inexistência de fontes alternativas de energia para o desempenho das atividades diárias domésticas impacta sobretudo as mulheres e as garotas pobres, pois tais tarefas são tradicionalmente desempenhadas por elas ao longo do que chamam de “linhas de gênero”.

As tecnologias que utilizam energia influem, inclusive, em processos como o acesso à educação e a redução da quantidade e a alteração das condições do trabalho doméstico desempenhado tradicionalmente pelas mulheres. Um exemplo de mudança proporcionado às mulheres por meio de intervenções energéticas é citado pelos autores ainda com base na realidade do vilarejo de Pura. A instalação de um sistema comunitário de plantas de biogás para o abastecimento de energia e água causou impactos como a melhoria da qualidade da água e a redução do tempo para obtê-la, pois as mulheres precisam andar longas distâncias para coletá-la e voltar, o que também serve para a lenha. O acesso à água de melhor qualidade, por sua vez, reduziu a quantidade de doenças. Outro efeito da implantação do sistema foi a melhoria da iluminação que permitiu ampliar o tempo para executar as tarefas domésticas e reduzir a pressão sobre as mulheres durante o dia.

As mulheres, portanto, desempenham um papel crucial na gestão dos recursos energéticos, tanto em termos de economia doméstica, como, no caso da biomassa, na coleta e no uso. Elas, portanto, estão em uma posição na qual dispõem de um conhecimento privilegiado desses mecanismos, embora não seja esta uma posição de poder tomar as decisões. Além disso, muitos implementadores de políticas públicas ou centros de pesquisa acadêmica desconhecem ou não reconhecem esses saberes. A sugestão dos autores, com base nesse fato, é que as mulheres assumam esse lugar de gestoras como empreendedoras, na produção de energia. São necessários, portanto, projetos que as capacitem e que promovam o acesso a esse lugar de gerência dentro das empresas de energia, para que elas possam assumir essa posição de poder e decidir sobre prioridades que as afetam (e à vida de suas famílias) de forma mais urgente. Dessa forma, nas palavras dos autores: “da energia para as mulheres, o processo levará ao empoderamento das mulheres”.

O artigo Energy for Women & Women for Energy (Engendering Energy and Empowering Women) pode ser lido (em inglês) em: http://amulya-reddy.org.in/Publication/1996_05_dtaft_WENERGY961.pdf.

Para saber mais sobre a vida e a obra de Amulya Reddy acesse o site criado em sua memória: http://amulya-reddy.org.in/Publ_421_E_EP.htm.

Para mais informações sobre a International Energy Initiative – IEI Brasil acesse: iei-brasil.org.

[1] http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs292/en/.

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Sarah Schmidt

Jornalista, mestre em Divulgação Científica e Cultural pelo Labjor/Unicamp

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