RASTREANDO O ESTANHO: transição energética e caminhos possíveis para uma exploração responsável da cassiterita no Brasil
“RASTREANDO O ESTANHO: transição energética e caminhos possíveis para uma exploração responsável da cassiterita no Brasil” é uma série de duas reportagens feitas a partir do núcleo de pesquisa do projeto “CRAFTing Responsible Tin: A Path to Ethical and Sustainable Mining Practices in the Brazilian Amazon”. O projeto é financiado pela European Partnership For Responsible Minerals (EPRM) e é uma parceria entre a Unicamp, a ONG Association for Responsible Mining (ARM) e a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB). A primeira reportagem, dividida em dois posts, abordará a cadeia produtiva do estanho e como o Brasil está inserido nela.
Parte 1: A importância industrial do estanho
Por Yama Chiodi
Um elemento relativamente inesperado ganha importância diante dos processos de descarbonização. Utilizado em ligas metálicas desde a antiguidade, o estanho é componente essencial na fabricação de placas solares e baterias, razão pela qual sua produção se tornou importante no debate sobre transição energética. Estudar sua cadeia produtiva se tornou necessário para compreender melhor como o Brasil se insere nas transformações econômicas para a sustentabilidade. O estanho é a principal commodity produzida a partir da exploração de cassiterita, que no Brasil é majoritariamente feita na região amazônica, com o uso de Mineração Artesanal e de Pequena Escala (MAPE). Ainda que diversos atores apontem que o uso de MAPE apresente menos riscos associados que outras formas de mineração, é fundamental que essas práticas sejam transformadas por protocolos internacionais e recursos de rastreabilidade para mitigar seus impactos socioambientais. É nesse contexto que o projeto Crafting Responsible Tin se projeta como uma possibilidade de unir pesquisadores, cooperativas da cadeia de produção do estanho e organizações internacionais para produzir práticas mais sustentáveis de exploração da cassiterita e levantar estratégias para mitigar danos e coibir a exploração ilegal de cassiterita na Amazônia.
O estanho não é um mineral cujo uso foi descoberto recentemente. O arqueólogo R. F. Tylecote atribui à cultura Ubaide (3500-3200 AC), na cidade-estado de Ur, atual Iraque, o primeiro uso verificado do bronze. A forma mais comum de bronze é composta de cobre e estanho e foi uma das primeiras ligas metálicas utilizadas de modo massivo pelos seres humanos. O estanho conferiu resistência às ferramentas de cobre e seu surgimento em diferentes culturas, por vezes separados por milhares de anos, em processos relativamente isolados, demonstra a particularidade de suas propriedades1. O bronze é ainda hoje muito utilizado, mas a versatilidade do estanho em criar ligas metálicas com propriedades particulares ao ser unido com outros metais é atualmente melhor conhecida.
Por muito tempo foi a solda com chumbo (Sn-Pb) que teve maior importância industrial, em especial na indústria de eletrônicos. A International Tin Association (ITA), representante das empresas que produzem e comercializam estanho, é responsável por boa parte dos dados disponíveis em torno dos usos econômicos do metal. Segundo a associação, na indústria de eletrônicos esse número se reduziu ao longo dos anos e já era de apenas 8% em 20232. À medida que o impacto ambiental e a toxicidade do chumbo se tornaram conhecidos, a maioria dos países criaram legislações para coibir seu uso. Desde 1974 os Estados Unidos começaram a regular o uso das soldas de estanho e chumbo em seu sistema de encanamento de água potável e agora se encaminham para a exclusão total3. A União Europeia baniu o uso de chumbo em todos eletrônicos em 2006 e algo semelhante foi feito no Japão e em outros países. O Brasil estabelece limites máximos de chumbo na fabricação de diversos produtos como tintas e pilhas, porém a proibição por lei da solda Sn-Pb só abrange as embalagens de alimentos4 – razão pela qual ela ainda é bastante utilizada aqui.
De toda forma, diante deste cenário, ganharam protagonismo outras ligas de estanho que hoje se tornaram as melhores opções na produção de soldas. A Comissão Europeia, por exemplo, justifica a proibição do chumbo citando que em eletrônicos elas já são facilmente substituídas por outras soldas de estanho5. Hoje as ligas com a prata, com o cobre e com o antimônio em diferentes combinações são as mais comuns, mas estudos recentes apontam usos potenciais em soldas com índio, bismuto e zinco no futuro6. Na verdade, são justamente as soldas sem chumbo (lead-free) que primeiro deram ao uso do estanho uma justificativa ambiental.

Apesar de ser utilizado em quantidades muito pequenas, ele é essencial para a produção industrial de uma grande diversidade de produtos. Segundo a ITA, das 357 mil toneladas de estanho usadas no ano de 2023, 51% foram utilizadas para soldas. A associação classifica o estanho como uma espécie de cola, essencial para que outros metais funcionem adequadamente. O uso em processos industriais químicos e em baterias também são bastante relevantes com, respectivamente, 16% e 8% do total. As ligas com cobre utilizadas há milênios ainda representam 6% do seu uso total.
Em outras palavras, o estanho é parte essencial de praticamente todos os objetos que utilizam soldas, incluindo carros, eletrodomésticos, celulares, computadores, latas, baterias, equipamentos industriais, objetos de decoração e muitas outras coisas – o que se deve principalmente à facilidade e versatilidade na liga com outros metais. Na indústria alimentícia, por exemplo, sua alta resistência à corrosão e não toxicidade o tornam uma escolha popular para latas e embalagens metálicas. Na forma de bronze, a resistência à fadiga e as propriedades antifricção facilitam o trabalho ideal de máquinas e motores industriais. Na fabricação de soldas, como já dito antes, o estanho se tornou central para a produção das soldas sem chumbo (soldas lead-free), hoje responsáveis por praticamente todas as soldas usadas em eletrônicos. Além disso, as empresas produtoras de estanho afirmam que seu baixo ponto de fusão e alta reciclabilidade tornam seu uso relativamente menos danoso ao meio-ambiente.
Um recurso escasso para a transição energética?
Não são propriamente as ligas sem-chumbo e a alta reciclabilidade, contudo, que colocaram o estanho com importância digna de nota no debate sobre transição energética. Ainda com dados da International Tin Association, das soldas que representam mais da metade do uso de estanho atualmente, cerca de 20% já são utilizadas exclusivamente em fitas de cobre para placas solares7 – ou seja, cerca de 10% de todo o estanho usado no mundo. E ainda há outras soldas de estanho nos painéis, para além das fitas. Ademais, seu uso fundamental na produção de baterias já corresponde a 8% todo o estranho utilizado, tanto em baterias de íon de lítio como nas de chumbo-ácido usadas em veículos elétricos, por exemplo. Na prática, isso significa que mesmo desconsiderado seu papel na diminuição do uso de chumbo e em tecnologias que prometem mais eficiência no uso de combustíveis fósseis, baterias e placas solares isoladas já correspondem a praticamente ⅕ de todo estanho utilizado no mundo.

Por todas essas coisas, o metal começa a ganhar tração nos debates sobre mudanças climáticas. É preciso, contudo, avaliar os dados disponíveis de modo crítico. As empresas que compõem a International Tin Association (ITA) estão diretamente interessadas no aumento da exploração de cassiterita e da rentabilidade e sustentabilidade da produção de sua principal commodity. O otimismo ambiental em torno de sua produção deve, então, ser observado com olhar atento aos interesses em jogo. Considerado o potencial viés no discurso ambiental da ITA, podemos aprofundar o debate sobre a importância do estanho nos processos de descarbonização. Em primeiro lugar porque se trata de um recurso natural que é, obviamente, limitado. A previsão atual da própria ITA é que com as reservas já conhecidas atualmente a produção está garantida por apenas cinquenta anos8. Então, ao passo que o metal aparece como solução ambiental em diversos contextos, pesquisas e mercados já estudam alternativas para o que o substituirá quando se tornar escasso.
Em outros termos, uma contradição fica imposta no debate: por um lado, o estanho torna possível que sejam consolidadas políticas de transição energética, como na produção de fontes de energia renováveis e na diminuição do uso de combustíveis fósseis. Por outro lado, seguindo as infraestruturas de produção do estanho conseguiremos enxergar de modo mais concreto que as medidas de descarbonização e sustentabilidade também têm grande impacto ambiental. E não apenas o impacto de agora, mas o impacto futuro, quando as antigas minas e garimpos a céu aberto dão lugar a barragens e outras formas mais e menos visíveis de destruição socioambiental. E convém assinalar os impactos sociais para além do ambiental, porque entra em questão o que acontece com as cidades e com os trabalhadores que vivem da mineração depois que o recurso se esgota.
Uma vista área do garimpo de Bom Futuro, em Rondônia, de onde parte considerável da cassiterita brasileira é retirada, pode assustar aos desavisados que o que está representado na foto é uma região amazônica. Pode uma atividade minerária ser compatível com o desenvolvimento sustentável? Considerando que a mineração vai acontecer, parte considerável do esforço passa a ser minimizar os impactos na produção e mitigar as consequências socioambientais da exploração de cassiterita. Esse é o assunto da segunda parte desta reportagem, que você pode ler clicando na próxima página (2) abaixo.

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