“Mantenha fora do alcance das crianças”: medicamentos antipsicóticos, infâncias e uma pesquisa em andamento

Texto de Luís Philipe Nagem Lopes.
Este texto faz parte da sessão “seguindo o fio” do blog do Labirinto, em que fui convidado por uma amiga muito querida, Fernanda Mariath, a apresentar minha pesquisa de doutorado em andamento. Sou farmacêutico e os medicamentos estão no meu campo de visão desde 2016, quando iniciei a graduação. Porém, essa não é uma especificidade de profissionais de saúde: todas as pessoas lidam, direta ou indiretamente, com os medicamentos diariamente. No Brasil, tal fato está materializado na estimativa de que 9 a cada 10 pessoas se automedicam.

Nas infâncias, porém, os medicamentos são objetos de cautela. As bulas são explícitas na recomendação de que “todo medicamento deve ser mantido fora do alcance de crianças”. Todavia, a depender do contexto, outras farmaco-lógicas podem operar. Este é o caso dos antipsicóticos para crianças no espectro autista, que têm como principal representante a risperidona. Esses medicamentos, desde os anos 1990, têm sido constantemente estudados, seja em pesquisas com modelos animais em laboratório, ou em ensaios clínicos com crianças e adolescentes no espectro autista. O uso desses medicamentos além de indicado, é incitado por certas moralidades e discursos adultocentrados que conformam a imagem da criança a uma certa expectativa social de obediência e submissão.

Quando comecei a olhar historicamente para os antipsicóticos, fiquei surpreso ao perceber que tais medicamentos presentes diariamente na vida dessas crianças foram primariamente desenvolvidos para docilizar pacientes psiquiátricos nos anos 1950. Como um dos meus interlocutores me ensinou: “antipsicótico é o manicômio em pílulas”. Diante disso, durante o doutorado no Instituto de Medicina Social (IMS-UERJ), sob orientação da professora Rosana Castro, tenho acompanhado esses medicamentos em diferentes circuitos relacionais: regulamentação sanitária, incorporação e recomendações de uso no Sistema Único de Saúde e em rotinas de cuidado. Meu esforço etnográfico é acompanhar os fluxos e processos que mobilizaram os antipsicóticos como uma possibilidade farmacoterapêutica e de cuidado para crianças no espectro autista.

Nesse momento, estou passando tempo com uma família muito querida que abriu as portas de sua casa para me receber durante o pré-campo. Nesses encontros, passamos algumas tardes conversando, tomando café juntos e falando sobre os medicamentos. No primeiro encontro, pude perceber na própria organização da casa que esses medicamentos são parte intrínseca da rotina da família, sobretudo pelo local onde estavam armazenados: no armário da cozinha, ao lado de insumos alimentares fundamentais para a sobrevivência. Nas conversas informais com essa família, tenho percebido que os antipsicóticos fazem parte de uma rotina de cuidado que entrelaça de maneira intensiva relações familiares difíceis, precarizações, instabilidade financeira, rotina escolar e a vida de uma criança. Me parece que para além de uma eficácia terapêutica ou da expectativa de “tratar a irritabilidade” (é para isso que esses medicamentos costumam ser indicados), existem dinâmicas relacionais mais profundas mediadas por esses medicamentos.

Posso dizer que ao longo dos próximos três anos terei uma história, não necessariamente linear, acerca de uma rede espessa de agentes humanos, não humanos e mais que humanos que fizeram os antipsicóticos funcionarem para crianças no espectro autista. Quero mostrar como os aparatos biomédicos, como medicamentos, se misturam à vida ordinária das pessoas e como essas hibridizações formam tessituras (ou composições) relacionais imprevisíveis. Passando tempo com essa família, também tenho aprendido sobre a artesania de construir uma pesquisa sobre o cuidado medicamentoso apoiada em uma ético-política do conhecimento feminista. Isso significa que muito diferente da lógica massificante e hegemônica das pesquisas nas ciências farmacêuticas que aprendi, a jornada no doutorado tem me ensinado a cultivar o toque como parte inseparável da produção do conhecimento científico. Inspirado em Maria Puig de la Bellacasa, considero a relacionalidade como uma reivindicação da produção de um conhecimento situado e longe das abstrações e distanciamentos de certas epistemologias dominantes. Pesquisar enquanto toca; tocar enquanto pesquisa evidencia as proximidades imanentes e o afeto como parte indispensável na lida com pessoas, medicamentos e cuidado.

Legenda da imagem: Medicamento sendo retirado da embalagem.

Fonte da imagem: https://site.cff.org.br/noticia/Noticias-gerais/23/04/2024/pesquisa-revela-que-9-entre-10-brasileiros-se-automedicam

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