Que tipo de espaço pessoas trans têm ocupado na pauta menstrual?

Por Za Chacon

O mapeamento da expressão pessoas/corpos que menstruam faz parte dos meus atuais interesses de trabalho, uma vez que i) no cenário brasileiro não existem protagonismos trans estabelecidos na discussão menstrual para que o levantamento parta de debates já estabelecidos; e ii) o próprio termo foi, em 2022, alvo de uma polêmica que fez despontar cenários mapeados aqui como importantes para cena menstrual transgênera. Para fins deste congresso, retomo apenas alguns episódios que, através da internet e das redes sociais, marcaram o desenvolvimento da temática.

Inicialmente, pessoas/corpos que menstruam circulava apenas entre a própria comunidade trans como uma forma de nomear dignamente nossas vivências, possibilidade advinda da ferramenta da linguagem não binária. A intencionalidade do uso se detém na possibilidade de referenciar experiências de pessoas transmasculinas, não binárias e de homens trans que, por terem útero, também têm a possibilidade de vivenciar a menstruação. A população intersexo também adotou o uso do termo uma vez que, além de poderem ter identidades trans, possuem em suas corporalidades configurações sexuais que não se enquadram na normativa médica feminina e masculina.

A expressão “corpos/pessoas com útero” despontou neste cenário por algum período, mas a armadilha contida em si mesma, por enfatizar uma estrutura biológica em detrimento da experiência, fez com que ela não perpetuasse por muito tempo. Nessas expressões, vejo os substantivos corpos e pessoas sendo usados como sinônimos, mas dou preferência ao segundo pelo motivo mesmo da humanização e não reducionismo biológico. Ter um útero não determina a experiência menstrual em nenhuma corporalidade ou identidade, seja ela cis, trans ou intersexo, por diferentes motivos. O que compartilhamos, e de maneira heterogênea, é a vivência da menstruação como uma dimensão ímpar no desenvolvimento da nossa sexualidade,

 Porém, é quando o seu uso sai da comunidade que a expressão ganha um holofote nacional de ódio. Em dezembro de 2022, Djamila Ribeiro, um dos nomes mais importantes do feminismo negro no país, publicou no jornal Folha de São Paulo um posicionamento extremamente transfóbico sobre o termo pessoas que menstruam e gestam (Ribeiro, 2022). Com a recente popularização dessa linguagem em movimentos sociais trans e, frente a esse importante cenário, Djamila fez questão de afirmar publicamente que não aceitava ser reduzida a um corpo que menstrua e que a “pretensa ideia de incluir homens trans no debate de saúde” seria responsável por “apagar a realidade concreta das mulheres”. Me sinto pessoalmente triste, mas não surpreendido, ao conceber que uma tão valiosa pensadora brasileira tenha se posicionado de uma forma repugnantemente transfóbica. Não é novidade que algumas mulheres cis ao longo da história do movimento feminista possuem um grave envolvimento em articulações transfóbicas

Do episódio transfóbico de Djamila derivaram acontecimentos importantes. O Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (IBRAT) publicou uma carta aberta como uma forma de repúdio e esclarecimento das intenções da comunidade com o uso do termo. “Muito nos admira você, Djamila, que escreveu sobre o lugar de fala, não reconhecer as transmasculinidades como teoria e prática no combate às desigualdades, no enfrentamento ao capitalismo patriarcal, desenvolvendo outras possibilidades de masculinidades que menstruam e de gravidez, mediante a descolonização do conhecimento a refutação de uma neutralidade epistemológica, pois seu discurso versa sobre um olhar colonizador sobre nossos corpos, saberes, práticas e experiências” (Ibrat, 2022, p. 6). O final do texto questiona o papel do feminismo negro junto a trasmasculinidades e não binariedades, sobretudo periféricas e indígenas, enfatizando a necessidade de trabalho em coalizão. A carta que nunca teve retratação, ou qualquer tipo de resposta, por parte da autora.

No âmbito das redes sociais, Jonas Maria se posicionou sobre o assunto a partir de seu vídeo “O APAGAMENTO das mulheres” #1#. Jonas é um homem trans, escritor, educador e produtor de conteúdo online sobre sexualidade e gênero bastante influente para a comunidade trans. Nele, comenta o fato de mulheres cis como J.K. Rowling e Djamila Ribeiro terem ridicularizado a expressão pessoas que menstruam alegando que ela causa o “apagamento de mulheres”. Jonas aponta para o fato de que o termo é mais restrito a comunidade trans e utilizado internamente nela mais do que em quaisquer outros espaços, perguntando aos espectadores quantas vezes o ouviram em ambientes de saúde ou educacionais. Assim, afirma que o ataque a um termo raro, restrito a uma minoria em direito que o usa sem pretensão de universalidade e que nunca é lembrada quando se trata do assunto, é mais uma tentativa de pânico moral contra pessoas trans. 

Jonas e o pronunciamento do IBRAT são exemplos de articulações trans em defesa da comunidade. Fora desse contexto, Djamila contribuiu para a proliferação na internet de ataques antitrans, articulações que tem ganhado força na última década do cenário político brasileiro a partir da retórica conservadorista da ideologia de gênero e da instalação do pânico moral (Barbosa, 2024; Leite, 2019; Rodrigues; Brevilheri; Nalli, 2022). Até aqui, podemos afirmar que a tentativa da população trans em habitar minimamente a linguagem em uma pauta que somos extremamente negligenciades e esquecides, como a menstruação, foi recebida com ódio e desprezo no “debate público”. E que, até os dias de hoje, pouco avanço tem emergido do cenário e a expressão pessoas que menstruam continua majoritariamente restrita à nossa comunidade. Contudo, é exatamente sobre esse “avanço” que gostaria de pontuar algumas questões.

Dos últimos anos pra cá, por estar envolvido acadêmica e culturalmente na criação de referências menstruais trans, vi dois espaços se aproveitando do momento menstrual “descontruíde” com ações que, ao meu ver, mais contribuem para o apagamento trans na pauta menstrual do que trazem proposições aliadas. Um desses espaços é o mercado de produtos de higiene menstrual, ou as empresas de absorventes, que evidentemente aproveitou o momento para investir no pink money. Devido a isso, hoje existem opções de cuecas menstruais que seriam inimagináveis a pouco tempo atrás. Luca Scarpelli #2#, homem trans e criador de conteúdo digital, participou recentemente de uma publicidade para a marca Sempre Livre. Que, aliás, sem mencionar nenhuma pauta trans ou até mesmo sua identidade de gênero, a propaganda divulgada no perfil da marca foi rechaçada e os comentários acabaram sendo bloqueados da publicação. Simplesmente por Luca ser um homem trans e habitar um espaço voltado para discussão menstrual. A estratégia da Sempre Livre, poucos meses depois, foi fazer com que a publicidade fosse publicada, mas desta vez para o público de Luca, em seu próprio perfil do Tiktok e Instagram.

 A minha crítica em nenhum momento se dirige à existência de cuecas menstruais e muito menos para representatividade trans em vendas de absorventes – muito pelo contrário, é de extrema relevância que nossos rostos, corpos e necessidades estejam em todos os espaços.  O que eu quero elucidar ao explicitar esse movimento é que muito antes da própria comunidade trans ocupar qualquer protagonismo na pauta menstrual; antes que a gente pudesse ocupar o termo pessoas que menstruam com reivindicações, saberes e representatividade; o mercado cooptou este termo que nos foi (e ainda é!) tão caro e está lucrando com o selo da diversidade. Pessoas trans continuam não tendo representação efetiva na discussão menstrual. Enquanto isso acontece, enquanto esses postos não são habitados por nós, a história se repete e nossos corpos seguem como recursos de fetiche e comercialização. 

O outro espaço em que, por habitar, vejo a dinâmica do apagamento trans acontecer rotineiramente, é o espaço acadêmico. Nos últimos anos, e talvez por consequência do “debate público” supracitado, pesquisas que se utilizam do termo corpos que menstruam começaram a proliferar. Se em um primeiro momento isso aparenta ser motivo de comemoração, faço um convite para leitura de estudos acadêmicos sobre menstruação publicados até o ano de 2025. A porcentagem mínima de estudos da área que se utilizam da expressão são feitas por pessoas cisgêneras, que mais aparentam empregar o termo como uma forma de garantir o selo de diversidade para a própria produção, uma vez que o sentido de seu uso não comunica nada e/ou não está interessado de fato no que a população trans tem a dizer. Isso se dá das seguintes maneiras:

  1. Pesquisas que se utilizam de “pessoas que menstruam” não definem, referenciam ou comunicam minimamente sobre as realidades dissidentes que podem menstruar. Quem são as pessoas que menstruam? Onde vivem, o que comem? De fato, quando o termo circula dentro da comunidade trans e intersexo, seu sentido já habita es interlocutores que o usam. Ao exportá-lo para pesquisas de autoria cisgênera que não se preocupam em contextualizá-lo, um termo que tem em sua origem a necessidade de apontar para a diversidade de gênero que existe na menstruação é esvaziado de seu sentido. 
  2. As mesmas pesquisas que empregam a expressão sem defini-la com conteúdo e contexto fazem isso em publicações que se utilizam majoritariamente da categoria de “mulher” e “menstruação feminina” para abordar o tema. Por vezes, talvez quando se lembram, intercalam a utilização esporádica da linguagem não binária, fazendo do emprego arbitrário uma escolha de comunicação que se torna insustentável e sem coerência até a última página.
  3. Nenhuma referência trans ou intersexo é citada nesses estudos e a cisgeneridade não é uma categoria de análise questionada. Quando essas pessoas existem, no máximo são objetos de pesquisa lidos a partir de uma ótica cisgênera que enquadram essas experiências em suas leituras normativas, geralmente ilustradas por discussões acríticas que permeiam o universo da disforia e expectativas de gênero. Enquanto não ocupamos a pauta menstrual, pesquisas cis têm usado da expressão pessoas que menstruam para garantir o seu selo descontruíde, mas nada tem oferecido de compromisso concreto com realidades, necessidades ou protagonismos trans e intersexo.

Frente a história do termo e os percursos atuais na produção de referências sobre menstruação, se faz urgente que a população trans e intersexo ocupem um espaço que ninguém mais pode ocupar por nós: a enunciação de nossas próprias experiências, necessidades, dores, prazeres e potencialidades em relação ao sangue menstrual. Para além de reivindicar uma questão basilar como a linguagem, se faz imprescindível que a preenchamos de sentido com as nossas próprias narrativas. Enquanto nossas vozes não se unirem neste coro, o mercado e a academia descobriram nichos e lacunas produtivas que tem nos usado de pretexto. Isso tampouco se trata de uma cobrança a população trans ou intersexo, em uma retórica ultrapassada que nos exige um constante lugar de ativismo. O universo da menstruação está construído de uma maneira extremamente violenta e os símbolos cisheteronormativos que esse assunto geralmente nos provoca é, no mínimo, de desinteresse e repugnância.

#1# – https://www.youtube.com/watch?v=hgSEqykWqy8

#2# – https://www.instagram.com/olucascarpelli/

Crédito da imagem: Gabriella Joris, Za Chacon

Legenda da Imagem: Foto do projeto Corpos que Menstruam

Referências

BARBOSA, I. Analisando argumentos antilinguagem não binária. Revista Periódicus, v. 1, p. 21-44, 2024.

IBRAT. Carta aberta à Djamila Ribeiro. Instituto Brasileiro de Transmasculinidades, São Paulo, 02 dez. 2022. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/18RHYRpCFsNGD3JUxJND_ufx3po5EVtDV/view. Acesso em: 9 jul 2025.

LEITE, V. “Em defesa das crianças e da família”: refletindo sobre discursos acionados por atores religiosos “conservadores” em controvérsias públicas envolvendo gênero e sexualidade. Sexualidad, Salud y Sociedad,119-142, 2019

RIBEIRO, D. Nós, mulheres, não somos apenas “pessoa que menstruam”. Folha de São Paulo, 1 de. 2022. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamila-ribeiro/2022/12/nos-mulheres-nao-somos-apenas-pessoas-que-menstruam.shtml. Acesso em: 9 jul 2025.

RODRIGUES, F., BREVILHER, U. B. L., & NALLI, M. C. Da proibição da neolinguagem a “infinitas possibilidades de gênero não existentes”. Revista Relegens Thréskeia, 11(1), 231–246, 2022.

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