Onde a história foi arrancada, a memória cria raízes.

Escrevo porque o silenciamento me atravessa. Ele sempre esteve presente nos espaços institucionais, nas relações de poder e nas narrativas que definem quem pode ser lembrado e quem deve ser esquecido. Esse silenciamento não é ausência, é estrutura. Ele opera como uma força que limita o que pode ser dito e as vozes que podem existir. É justamente por compreender essa força que escolho escrever em primeira pessoa, me situar dentro da narrativa e reivindicar a escrita como um ato político.

Em minha dissertação Nós, mulheres negras: trajetórias jornalísticas e experiências com a mídia e o jornalismo brasileiro, busquei compreender como o silenciamento se manifesta na comunicação e na produção de conhecimento. Ao analisar as trajetórias de mulheres negras no jornalismo, encontrei muito mais do que exclusão. Encontrei a potência da resistência. É sobre essa força que quero falar neste texto.

As vivências de nós, mulheres negras, são peças fundamentais quando discutimos políticas de reparação. Quando olho para as periferias, vejo a resistência pulsando nas margens e principalmente no corpo de mulheres negras. Educadoras sociais que, com poucos recursos, continuam escrevendo suas histórias por meio da arte e da cultura. Projetos que recontam a história a partir dos corpos negros. Mães e artistas que transformam o cotidiano em uma pedagogia da encruzilhada.

Todos fazem parte desse movimento de enfrentamento ao que chamo de necromemória: o apagamento sistemático da memória negra como extensão da necropolítica, conceito formulado por Achille Mbembe. A necromemória atua como força que tenta nos destituir de passado, presente e futuro. Resistir a ela é também disputar o direito de narrar e existir.

O apagamento da memória não acontece apenas quando destroem nossas existências e contribuições na formação da comunicação, da cultura e da educação. Ele também ocorre quando nossas vozes são retiradas do discurso público. Ao retirar nossas vozes, reduz-se a qualidade das discussões e assim a capacidade de manutenção de projetos sociais, o acesso a verbas e editais. E, com isso, diminui-se nossa potência de luta contra as desigualdades.

As políticas públicas de memória e comunicação têm papel central nesse processo. Programas como os editais de cultura negra, os planos municipais de igualdade racial e as ações afirmativas no ensino superior são caminhos para fortalecer essas vozes, garantindo recursos e visibilidade para quem produz conhecimento a partir das margens. Mas pensar em reparação exige mais do que a criação de políticas. É preciso o fortalecimento sistemático dos territórios. 

Em um país onde a escravidão calçou todas as estruturas, reparar não é suficiente. Precisamos ir além. A reparação não se encerra na esfera do Estado ou nas políticas de inclusão. Ela deve ser também simbólica, pedagógica e epistemológica, alcançando as formas como produzimos e valorizamos o conhecimento. A memória e a educação promovidas nos territórios precisam ser urgentemente reconhecidas como parte do patrimônio intelectual e político do país. 

Quando a periferia educa, quando a quebrada ensina, ela também formula teoria. E isso é algo que o Brasil ainda insiste em não compreender. Pois isso, significa compreender que memória e educação, quando promovidas nos territórios, são instrumentos de transformação social. Significa também valorizar as experiências e saberes que emergem das periferias, das mulheres negras, dos educadores e artistas que fazem do cotidiano um ato político de reexistência.

Como lembra Conceição Evaristo, escrever é um ato de escrevivência, e toda vez que uma mulher negra escreve, ela reescreve a história. Falar é um gesto político. Relembrar é um ato de resistência. Quando a palavra é pronunciada por quem sempre foi empurrada para o silêncio, ela carrega o peso e a beleza da história coletiva. 

 

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