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A produção de sentido musical através da retroalimentação comunicacional entre o músico interprete e seu público ouvinte

ESPECIAL

José Fornari (Tuti) – 03 de julho de 2019

fornari @ unicamp . br


Após participamos de uma performance musical da qual gostamos, muitas vezes percebemos que nosso estado emocional foi alterado para melhor. Nos sentimos mais leves, ficamos mais felizes, temos nossos pensamentos mais aquietados, amenos e até melhor organizados. Muitas vezes este estado emocional perdura por muitas horas, até mesmo por alguns dias, deixando reminiscências que podem ser reativadas futuramente através da lembrança da performance. A escuta emocionalmente engajada de uma performance musical da qual participamos como ouvintes e que momentaneamente alivia nossas tensões, como que desobstrui a máquina de nossa razão, diminui nossas ansiedades e torna a paisagem subjetiva de nossas emoções mais aprazível. A meu ver, este é o grande motivo pelo qual a performance musical sempre foi, é, e provavelmente continuará sendo tão valorizada socialmente. É comum ouvirmos falar de casos envolvendo fãs de determinados músicos ou grupos musicais que alegremente voluntariam-se a passar horas ou até mesmo noites em filas de vendas de ingressos para o show de seus músicos favoritos. Tais fãs estão normalmente dispostos a gastar significativas somas de dinheiro para comprar ingressos que lhes garantirão acesso a uma sala ou ambiente de espetáculos, muitas vezes claustrofobicamente lotada e desconfortavelmente disposta apenas para terem a possibilidade de participar por poucas horas desta forma ritual social perceptualmente emotivo; a performance musical. Parte desta experiência catártica pode ser atualmente recriada através da reprodução eletrônica de arquivos digitais de áudio, facilmente acessíveis a todo ouvinte, que se corporifica quando este coloca seus fones de ouvido, aperta o “play” e mergulha na imensidão perceptual que a reprodução digital de uma peça musical conhecida lhe confere. No entanto, apenas parte do afeto da performance original é por este modo conjurado. O ritual em tempo real, ao vivo e presencial que é a performance musical é ainda insubstituível. A performance musical é como que a nascente deste caudaloso rio de comunicação expressiva, local onde as águas são mais frescas, puras e portanto mais fervorosamente apreciadas.

Repentistas do Nordeste. Fonte: https://www.jornaldodf.com.br/wp-content/uploads/2016/10/unnamed-1.png

O pesquisador Matías Germán Tanco, do LEEM, Laboratorio para el Estudio de la Experiencia Musical, da Universidad Nacional de La Plata (UNLP), onde estive na semana passada, vem realizando investigações a respeito do fenômeno comunicacional da performance musical na interação entre performer e público. Através de uma pesquisa qualitativa, Tanco estuda o processo de interação entre o performer e seu público ouvinte no momento de uma performance musical. Neste contexto, é feita uma analogia da performance musical com o ato verbal de uma narração verbal. Conforme visto anteriormente, o processo narrativo era chamado, pela filosofia grega antiga, de “diegese”. Este se contrasta com o conceito de “mimese”, onde, segundo Platão e Aristóteles, enquanto a mimese “mostra sem explicar”, a diegese “explica sem mostrar”. A performance musical é assim entendida como um processo diegético onde a interpretação musical do performer de certa forma descreve o conteúdo expressivo de uma peça musical, porém sem mostra-la, ou seja, sem revelar os processos estruturas pelos quais o compositor se valeu para cria-la. Especialmente no caso da música formal, fica mais evidente este processo. Nesta, a composição musical é estruturada pelo compositor em tempo diferido (ou seja, de forma atemporal). O produto da arte de um compositor formal é parecido com o trabalho de um escritor. Ambos criam em tempo diferido um tipo de programação estruturada (a notação musical) para ser posteriormente executada em tempo real pelo performer. Esta programação é feita através de um processo mimético, ou seja, a programação é lá disposta sem maiores explicações. No caso do escritor, a programação (sua escrita) é fortemente semântica e levemente duracional (atrelada ao domínio do tempo e à percepção de suas durações). No caso do compositor, a programação (notação musical) é levemente semântica (significados categóricos) e fortemente duracional.

Fonte: http://www.scielo.br/img/revistas/pm/n22/a05ex04.jpg

Através de entrevistas com músicos, Tanco estuda os processos pelos quais a comunicação performance público se processa. Os resultados alcançados por seu estudo mostram que no caso da música erudita, existe de fato um tipo de direcionalização do significado musical, que tem a sua origem na composição e aponta para seu objetivo final, a performance ao vivo (como é o caso de um concerto). A função musical exercida pelo performer erudito é a de ser um tipo de mediador da mensagem musical enunciada pelo compositor até o ouvinte. Desse modo a narração musical de cada performer permite recriar, a cada evento performático, uma nova versão da mesma obra, a partir da sua interpretação, como um ato de execução mediada do programa codificado na forma de notação musical pelo compositor. Normalmente a interação retroalimentativa com o público durante a performance é vista na música erudita como um tipo de perturbação que pode atrapalhar o processo expressivo da performance musical. Neste contexto, a plateia deve permanecer a mais imperceptível possível para o performer. No entanto, este tem consciência e deseja ser observado, fato este que lhe é aprazível, ou seja, tem-se aqui um tipo de voyeurismo às avessas, onde o prazer sexual do voyeur é substituído pelo prazer gerado tanto no performer por se saber admirado quanto no público por participar de uma satisfatória performance musical.

Fonte: https://www.rollingstone.com/wp-content/uploads/2018/06/rs-237023-guns-n-roses.jpg

Já no caso da música popular, existe muitas vezes o desejo não apenas de observação passiva, mas de interação ativa entre público e performer. Uma performance musical popular depende tanto de situações contextuais do performer como da percepção imediata do público. Isto ocorre porque a tradição popular está mais próxima dos contextos culturais comunitários, onde a música vem sendo executada em rituais sociais (casamentos, funerais, colheitas, batalhas, etc.) onde existe uma grande intersecção entre público e performer (ou seja, numa performance musical praticamente todos tocam, dançam e cantam). Isto criava o que se chama de musical entrainmentum processo estudado pela biomusicologia (o estudo da música sob a perspectiva da biologia) que trata da sincronização espontânea de gestos sincronizados durante a participação de uma performance (por exemplo, ao escutar uma música aprazível, o ouvinte marcar o andamento batendo os pés no chão, acompanhando com palmas, balançando a cabeça ou apenas tamborilando os dedos).

Isto vai ao encontro do que foi apresentado anteriormente, sobre a ação social da música como uma forma de persuasão. Tem-se atualmente a figura do DJ. Este pode ser visto como um tipo de “metamúsico”, uma vez que cria sua arte através da geração performática de edições e efeitos musicais a partir da reciclagem sonora de outros registros musicais anteriormente elaborados. A performance musical do DJ é fortemente atrelada à retroalimentação perceptual com seu público. Dependendo de como o DJ percebe seu público, esta altera a sua performance, fazendo com que o seu objetivo expressivo seja maximizado. Percebe-se deste modo a evolução de um aspecto musical no sentido de promover uma retroalimentação comunicacional na interação performer-público, desde a música formal erudita, de tradição européia, até a música eletrônica contemporânea, de tradição pós-moderna.

Interação entre performer (DJ) e público. Fonte: https://s11234.pcdn.co/wp-content/uploads/2017/10/dj-club-nights-advice-1.jpg.optimal.jpg

Isso faz com que haja a produção de sentido musical, levemente semântico e fortemente afetivo, onde o performer, como um narrador, age no sentido de estabelecer práticas sociais entre performance e plateia que estabeleçam e garantam a comunicação multidirecional que se amalgama no significado musical.

 

Referências:

[] Matías Germán Tanco. “La comunicación performer-público en la performance de la música académica”. Revista de Psicología (UNLP) https://revistas.unlp.edu.ar/revpsi. ISSN 2422-572X. DOI 10.24215/2422572Xe020. 2018
[] Clayton, Martin. “What is entrainment? Definition and applications in musical research.”, Empirical musicology review. 7 (1-2). pp. 49-56. 2012. https://musicscience.net/projects/timing/iemp/what-is-musical-entrainment/

 


Como citar este artigo:

José Fornari. “A produção de sentido musical através da retroalimentação comunicacional entre o músico interprete e seu público ouvinte”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 03 de julho de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/07/03/26/

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