José Fornari (Tuti) – 28 de agosto de 2019
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No artigo anterior eu tratei brevemente dos paralelos entre os processos de escrita da comunicação verbal e musical, onde comparei os processos de oralidade primária e secundária tanto na linguagem quanto na música. Como conjecturei, ao contrário do que ocorreu com a linguagem, uma significativa parcela da produção musical parece não ter sido diretamente afetada pela ocorrência da escrita musical, ou seja, a notação. A meu ver, o advento da oralidade secundária foi mais transformador para a linguagem do que para a música.
De fato, não há dúvida de que a partitura trouxe grandes avanços para o estabelecimento da arte musical, em especial, no caso da música erudita de tradição Européia, que evoluiu fundamentalmente pela ocorrências da notação musical tradicional, tanto em termos da complexidade das estruturas musicais, com no surgimento de composições mais extensas e complexas (por exemplo, as sonatas, as óperas e as sinfonias) como em termos de complexidade dos grupos e formações musicais, com o surgimento de organizações estruturadas e estabelecidas, como é o caso do quarteto de cordas ou da orquestra sinfônica. O famoso maestro estadunidense Michael Tilson Thomas apresentou em 2012 uma palestra no famoso evento TED onde traçou um breve histórico sobre o desenvolvimento da música escrita. Segundo Thomas, o sucesso da música erudita se baseia naquilo que ele se refere como sendo a parceria do instinto com a inteligência. A relação da criação musical intuitiva e espontânea e o seu parceiro silencioso, a notação musical, permitiu o aprofundamento da exploração da composição musical através do registro de estruturas melódicas, harmônicas e rítmicas com maior extensão e complexidade, indo além daquilo que a memória humana é capaz de registrar e a mente é capaz de lidar sem o auxílio da escrita. A notação também permitiu o desenvolvimento de uma herança estética musical e o consequente processo de enculturação do público ouvinte a novas formas, estilos e gêneros musicais, o que permitiu não apenas o desenvolvimento da música mas também o desenvolvimento de novas expectativas estéticas.
Um exemplo da enculturação de uma nova estética musical é o notório caso do já citado “intervalo do diabo”; ou seja, o trítono, um intervalo de 3 tons inteiros que é normalmente entendido como sendo dissonante. Na idade média, o trítono era considerado tão agressivo para os padrões estéticos musicais da maioria dos ouvintes daquela época que este era evitado pelos compositores, especialmente nas composições eclesiásticas. Com o passar dos tempos, este mesmo intervalo passou a ser amplamente utilizado nas composições, tanto da música erudita, a partir do período Barroco, quanto da música popular, como o Jazz, especialmente devido a sua tensão cognitiva, que permite seu contraponto com um intervalo mais estável que simbolize o relaxamento da tensão representada pelo trítono.
No entanto, a produção musical que não se enveredou pelo viés do formalismo e da erudição que o registro notacional proporcionou, continuou a ser amplamente produzida, apreciada e consumida pela população. Este é o caso das músicas folclóricas e populares, normalmente associadas à danças e que são amplamente estudadas pela etnomusicologia, especialmente por representar as características idiossincráticas de uma comunidade e sua região geográfica. Isto representou uma certa bipartição da produção e estética musical que é simplisticamente referida pelos termos: erudito e popular. Enquanto a produção de música erudita fomentava um processo analítico de “enculturação” do seu público ouvinte (que tinha que se eruditizar para entender e assim apreciar a produção musical erudita), a música popular fomentava um processo afetivo de “aculturação” onde comunidades recebiam, percebiam e assimilavam as características culturais de outras comunidades, normalmente vindas das comunidades hegemonicamente superiores.
A música erudita foi assim abrindo mão de uma estrutura musical flexível que permitisse a sua improvisação e centrou esforços na interpretação de uma estrutura rígida notacional; a performance. Do mesmo modo, a música popular foi flexibilizando sua estrutura composicional, permitindo a exploração de improvisações e rearranjos (uma composição tocada com diferentes formações musicais). Nota-se assim que a predominância de uma oralidade primária na música popular diminuiu a exploração da complexidade da estrutura musical ao mesmo tempo que aumentou a exploração de sua espontaneidade através da improvisação, do mesmo modo que ocorre com a linguagem falada, que é a parte espontânea da expressão verbal; sendo como que uma improvisação idiomática da língua textual. Por este viés comparativo, podemos imaginar que o processo de formação dos diferentes idiomas ao longo da história da humanidade ocorreu por fatores similares aos que levaram ao surgimento de diferentes gêneros musicais das distintas comunidades ao redor do mundo.
Como citar este artigo:
José Fornari. “Bifurcação da produção musical na oralidade secundária”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 28 de agosto de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/08/28/30/