Escrita textual e musical

José Fornari (Tuti) – 14 de agosto de 2019

fornari @ unicamp . br


 

Seguindo a comparação entre música e linguagem que iniciei no artigo anterior, existiu um importante fato na história do desenvolvimento da civilização que foi tão marcante e definitivo que passou a ser considerado o marco divisório em sua história; o advento da escrita. Conforme disse anteriormente, o advento da escrita musical parece ter ocorrido praticamente no mesmo período que surgiu a escrita das linguagens. Segundo registros palentoantropológicos (paleontologia da espécie humana), os primeiros seres humanos modernos (similares ao nós) surgiram a mais de 100.000 anos atrás, no leste da Africa. Apesar de existirem registros de ocorrências simultâneas (em termos de escala paleontológica) em outros povos e locais ao redor do mundo, a origem dos primeiros sistemas de escrita da linguagem datam de aproximadamente 5.000 anos atrás, nos povos da Mesopotâmia (mais especificamente, entre o povo da Suméria). Similarmente, um dos primeiros registros de escrita musical que se tem conhecimento datam de cerca de 4.000 anos atrás, também na Mesopotâmia (mais especificamente, entre o povo da Babilônia). Percebe-se assim a necessidade que naturalmente surgiu de se registrar criações nestes dois tipos de comunicação sonora.

Limestone Kish tablet from Sumer with pictographic writing; may be the earliest known writing, 3500 BC. Ashmolean Museum. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/History_of_writing#/media/File:Tableta_con_trillo.png

O mais antigo registro histórico de notação musical. Fonte: https://www.schoyencollection.com/music-notation/old-babylonia-cuneiform-notation/oldest-known-music-notation-ms-5105

O registro da comunicação humana por meio de um sistema de escrita permitiu vencer a barreira da memória individual, amplificando a capacidade social de reter de modo virtualmente indefinido a informação em registros escritos de conhecimento, criando assim a possibilidade da sustentação de uma cultura muito mais complexa e abrangente. Isto também alterou a maneira como a transmissão deste conhecimento era realizada entre indivíduos e comunidades. Não há dúvida de que o advento da escrita permitiu um enorme avanço da civilização, onde as tradições culturais deixaram de ser orais e passaram a ser literárias. Walter J. Ong, em seu famoso livro “Orality and Literacy”, descreve 2 tipos de oralidade: primária e secundária. A oralidade primária é denotada pela fala sem registro sonoro. Neste contexto de ausência de métodos de registro da informação oral, era necessário o aprimoramento da capacidade de memória do indivíduo, pois uma boa capacidade de retensão de informação em sua forma aural significava uma clara vantagem para a sua sobrevivência, manutenção e bem estar. Assim, foram naturalmente desenvolvidas nas comunidades, estratégias de aumento da retensão aural da informação oral, como são os recursos dramáticos dos contadores de histórias, que impressionavam suas audiências com gestos e expressões faciais exageradas e abruptas, utilizadas durante seus relatos, normalmente realizados em circunstâncias atípicas e ritualísticas (por exemplo, a noite, perto de uma fogueira). Além de também se valerem de grandes variações de intensidade e frequência vocal de seu discurso, a fim de impressionarem a audiência e assim promoverem a retensão do conhecimento que estava sendo comunicado.

Story Teller. Fonte: https://fantasycollective.files.wordpress.com/2013/07/storyteller.jpg

Estes relatos muitas vezes também eram realizados com a utilização de regularidades acústicas da informação oral, organizadas em similaridades perceptuais rítmicas e fonéticas, o que parece ter dado origem às métricas e às rimas dos poemas que, organizados em estruturas gramaticais, exprimem poesia. Com o advento da escrita, estas estratégias foram pouco a pouco deixando de ter um significado estritamente funcional, de fomentar maior retensão de informação oral, para um significado estético e lúdico, como é atualmente o caso da utilização de tais regularidades sonoras presentes, por exemplo, nos versos, estrofes e rimas (no caso dos poemas tradicionais), nos seus cantos e nas letras de canções de músicas folclóricas, populares e nas óperas.

Chio Buarque – “Sob medida”

A música também foi certamente afetada pelo advento do seu registro simbólico, na forma de notação musical, onde estruturas mais complexas e de maior duração puderam ser registradas e assim desenvolvidas sob a perspectiva de estruturas mais elaboradas e refinadas, como a forma sonata, as sinfonias e as óperas. O desenvolvimento de um método formal de registro do conjunto de ações que um músico deve executar a fim de reproduzir um evento musical deu origem à notação musical, o que por sua vez, permitiu o desenvolvimento da área mais desenvolvida da musicologia; a musicologia histórica, conforme mencionada no primeiro artigo deste blog. No entanto, não me parece que a música tenha atingido um patamar secundário tão delineado quanto a oralidade secundária, conforme definida por Ong, no que diz respeito à inserção da escrita na música. A música, como se sabe, não tem a necessidade ou muitas vezes sequer a intenção de efetivar uma comunicação semântica. Para esse propósito, servem as letras das canções, que de fato, através do contexto semântico, potencializam uma efetiva comunicação afetiva. Prova de que a música foi menos afetada pelo advento da escrita musical é o fato de que grande parte da produção musical ter ocorrido e ainda continuar ocorrendo sem a existência ou necessidade de notação musical, o que definitivamente não é o caso da oralidade. A música popular e pop por exemplo, é muitas vezes produzida sem utilizar partituras de apoio. A produção musical parece ter saltado da sua musicalidade primária (correspondente à oralidade primária) a uma musicalidade terciária, onde os meios tecnológicos eletrônicos e comunicacionais (em especial, a internet) permitem o seu registro e disseminação. Este fato é também evidente mesmo dentro das esferas da música formal, intelectual e acadêmica; no caso específico da música eletroacústica, conforme citada no artigo anterior, onde muitos compositores criam suas obras diretamente através da manipulação do registro digital do material sonoro, onde a mixagem final cumpre o papel de partitura.

 


Como citar este artigo:

José Fornari. “Escrita textual e musical”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 14 de agosto de 2019. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/08/14/29/