#4 O pião entrou na roda

Para dar o tom: “Roda Pião”, de Dorival Caymmi

 

Um dia antes do término da quarentena, fechei as malas, me dediquei a uma limpeza superficial do cubículo e empacotei os lixos de acordo com as instruções de segurança. Era uma terça-feira ensolarada, quando finalmente abri a porta do n. 103. Um corredor longo e dois lances de escada me separavam da saída principal do prédio. 

Arrastei as malas uma hora antes do combinado com a carona para fora do prédio. A rua sem saída limitava o trânsito de pedestres. Segura, retirei a máscara do rosto para sentir a brisa leve que passava à sombra de um jacarandá. 

Ziva e Grace organizaram suas agendas para me ajudar com a mudança para o apartamento oficial, fazer a primeira compra de supermercado e trocar um pouco de dinheiro para emergências. Não demorou muito para o carro entrar no bolsão. A dinâmica do tempo mudou quando entrei no carro em direção à avenida principal de Rehovot, Herzl. 

Juntas éramos um time participando de uma gincana. As duas olhavam atentamente cada segundo do relógio. Os movimentos eram coreografados, sem espaço para improvisação. As malas foram deixadas no apartamento, e seguimos o trajeto mais curto para cumprir todas as tarefas. 

A lista de itens essenciais para sobreviver às primeiras semanas foram lidas em voz alta por mim ainda no carro. No supermercado, elas se dividiram na busca pelos produtos. Eu, atônita, esperei junto ao carrinho e acatei todas as sugestões sobre as melhores aquisições. Tudo escrito em hebraico. As compras foram colocadas no apartamento sem nenhuma ordem, e voltamos para o Instituto Weizmann de Ciências.

No almoço, os integrantes do laboratório se reuniram com pão pita, homus e tahini, descumprindo as regras do distanciamento social. As mesas foram arranjadas ao ar livre em um vão do prédio protegido do sol. Por alguns instantes voltei à vida antes da Covid-19. 

À tarde, o professor me apresentou as instalações do laboratório. Entrei em todas as salas e conversei pessoalmente com cada um dos alunos. Paramos apenas para um café turco com cardamomo e doces típicos no meio da tarde e seguimos para mais um tour guiado pelos jardins e prédios até as casas de vegetação.  

Tudo rodava muito rápido como um tufão. No final do dia, já em casa, sentada na escrivaninha, como um pião, minha cabeça ainda dava as últimas voltas como que por inércia. Tento pensar sobre o que aconteceu e refazer mentalmente o dia. As imagens passam borradas e distorcidas.

O corpo inteiro doía, da cabeça aos pés. Depois do banho, meu cérebro parecia um arquivo em branco com o cursor piscando, excitado para começar a digitar algo. A cada piscada, um batimento cardíaco e nada mais. Bloqueio. A única certeza foi estar grata pelo próximo dia. 

Camila Cunha, jornalista científica e bolsista “Paulo Pinheiro de Andrade” no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

  1. Camila que esta jornada seja cheia de sabores, cores, sotaques e experiências enriquecedoras da alma e do corpo.

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Crédito imagens: Anthony do Pexels
Revisão de texto: Natália Flores


Texto publicado originalmente em 25 de novembro de 2020

#3 A baleia é mais segura que um grande navio

Para dar o tom: “Mestre Jonas”, de Sá, Rodrix e Guarabyra

 

Montanhas, árvores, casas, postes de iluminação passavam em perspectiva pela janela do automóvel. Tudo tingido de dourado reluzente do aeroporto até Rehovot. O brilho era tão intenso que a posição do sol era difusa e probabilística. 

O pôr-do-sol é mágico em Israel. Até o tempo para para contemplar. Nesse estado de transe, foi difícil perceber que entravámos no centro de Rehovot e adentravámos o portão principal do Instituto Weizmann de Ciências. Dali, o carro foi escoltado por seguranças em motocicletas até a Residência Ruthie & Samy Cohn. Uma entrada pomposa para quem assistiu da calçada, quase como um desfile.

Eu e as malas fomos colocadas para dentro do prédio com uma única indicação: “Vá para o quarto!”. Com a eficiência e a precisão robótica de um sabujo mecânico (Fahrenheit 451, Ray Bradbury), encontro o quarto n. 103, agarrando a maçaneta delicadamente e projetando a probóscide (a chave) na fechadura.

Uma vez fechada, a porta só seria aberta 14 dias depois. 

Com o sol já na linha do horizonte e passado o transe, não sei bem onde estou no tempo e no espaço. Meu mundo tem 16 metros quadrados e uma pequena sacada com vista para um elevado feito de pedras hexagonais cor areia, que esconde uma praça, prédios altos e uma estação de trem. 

Acompanho o ir e vir de alguns poucos pedestres logo cedo e no entardecer. Raramente vejo um carro. Os trens são frequentes. Às vezes o barulho é ensurdecedor, quando helicópteros militares sobrevoam a área. Muito ao longe, escuta-se barulho de trânsito e buzina. Há luzes que piscam como vagalumes.

A natureza também é visita frequente. Os pássaros fazem das árvores dormitório e são muitos. Há também pequenos lagartos que escalam o paredão e se escondem entre as pedras. Além de minúsculas e inteligentes baratinhas que encontrei duas noites seguidas no banheiro.

A primeira semana foi marcada por uma dor de cabeça à britadeira. O serviço começava no meio da tarde com vibrações intensas e pontiagudas no topo da cabeça, que desciam ressoando por cada membro. O corpo autômato deixava-se cair aos pedaços sobre a cama. O sono era interrompido para comer, quando o corpo criava nova forma para, então, voltar para a cama em uma versão mais leve. 

Os raios de sol temem o interior do cubículo. Os dias passam entre três quinas – cozinha, escritório e quarto – cada uma separada por oito peças de piso cerâmico antigo. A sacada é o lazer e respiro entre uma tarefa e outra ou o refúgio quando me sinto entediada. 

O ciclo circadiano adaptou-se ao claro e escuro, e entrei na segunda semana mais consciente do entorno. Cada detalhe e objeto do apartamento me interessam. Na cozinha, impressiona a qualidade das matérias-primas, e misturo ingredientes e temperos em criações culinárias duvidosas, apesar de nutritivas.

Pega na tempestade da Covid-19, como Jonas, resta-me apenas contar os dias.

Camila Cunha, jornalista científica e bolsista “Paulo Pinheiro de Andrade” no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

  1. Camila que esta jornada seja cheia de sabores, cores, sotaques e experiências enriquecedoras da alma e do corpo.

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Crédito imagens: Markus Spiske no Pexels
Revisão de texto: Natália Flores


Texto publicado originalmente em 18 de novembro de 2020

#2 Diga pra Nazaré que eu não tardo em chegar

Para dar o tom: “As mil e uma aldeias”, de João Bosco

 

Aeroportos estão no topo da lista de risco durante uma pandemia. Antes da viagem para Israel, cenas do filme “Contágio“, de Steven Soderbergh (2011), disparam como flashes: me vejo no mesmo terminal de embarque de Elizabeth Emhoff com as infindáveis superfícies de contato – balcões, corrimões, maçanetas, touch screens – e as limitações do distanciamento físico. 

Em Guarulhos, a realidade se mostrou diferente. No saguão principal, havia transeuntes, aqui e acolá, e alguns poucos funcionários zumbis. No portão de embarque, os passageiros com destino a Londres se aglutinavam lentamente como elétrons, cada um em sua camada, e, mantendo a ordem, embarcaram no avião. Aconchegada em três poltronas, oscilei energeticamente entre o estado de repouso e de excitação, com as possibilidades de entretenimento fácil ao longo de todo o trajeto. 

Em Londres, o bilhete de conexão no aeroporto Heathrow indicava uma missão aparentemente simples – desembarcar no terminal 5 e embarcar no mesmo terminal – não fosse o aeroporto um labirinto. Um trem, três escadas rolantes, longos corredores e enormes painéis informativos depois, encontrei filas quilométricas.

O mundo parecia se reunir ali. Os funcionários estavam perdidos e exaustos. As filas se multiplicavam. As malas eram invariavelmente vasculhadas uma a uma, criando novas aglomerações no final das esteiras. Enquanto isso, eu me espremia para transpor a barreira de viajantes ansiosos e descalços que aguardavam a manipulação descuidada de seus objetos pessoais. 

Corri o mais rápido que pude, arrastando as malas e esbarrando em gente, para pegar o último ônibus até o avião. No Whatsapp, escrevi no grupo da família: “Em Londres. Um segundo e não embarco. Tremendo toda“. O avião decolou sem tempo para mais explicações. 

O relógio marcava 7:30 quando deixamos para trás um amanhecer de céu azul levemente frio. A bordo, judeus ultraortodoxos se preparavam para as orações matinais. Os homens jovens, reunidos de pé entre as poltronas, conversavam animados. Diferente da vestimenta religiosa, as máscaras pareciam intrusas e incômodas; ora descansando sob o queixo, ora cobrindo nariz e boca de forma displicente. 

Cada peça de roupa ou adereço tem um significado para o judaísmo. Pela manhã, os homens se livram dos casacos longos, pretos e quentes (os bekishes) e dos formais chapéus, mantendo o quipá e deixando à mostra o tzitzit. O único homem mais velho do grupo se arrumou lentamente. Posicionou um tefilin no braço esquerdo, enrolando a faixa de couro com cuidado pelo braço, e o outro na porção frontal da cabeça. Depois, cobriu a cabeça com um talit branco de seda e, em oração, percorreu todos os corredores do avião. Logo, os jovens se uniram a ele nas poltronas centrais vazias do avião. As preces prosseguiram e os corpos em movimento embalaram meu sono. Adormeci.

Acordei com o piloto anunciando a aterrissagem. Com o som das preces ainda ecoando na cabeça, piso em Israel.

Camila Cunha, jornalista científica e bolsista “Paulo Pinheiro de Andrade” no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.

  1. Camila que esta jornada seja cheia de sabores, cores, sotaques e experiências enriquecedoras da alma e do corpo.

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Crédito imagens: Pixabay no Pexels
Revisão de texto: Natália Flores


Texto publicado originalmente em 11 de novembro de 2020

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