Para dar o tom: “As mil e uma aldeias”, de João Bosco
Aeroportos estão no topo da lista de risco durante uma pandemia. Antes da viagem para Israel, cenas do filme “Contágio“, de Steven Soderbergh (2011), disparam como flashes: me vejo no mesmo terminal de embarque de Elizabeth Emhoff com as infindáveis superfícies de contato – balcões, corrimões, maçanetas, touch screens – e as limitações do distanciamento físico.
Em Guarulhos, a realidade se mostrou diferente. No saguão principal, havia transeuntes, aqui e acolá, e alguns poucos funcionários zumbis. No portão de embarque, os passageiros com destino a Londres se aglutinavam lentamente como elétrons, cada um em sua camada, e, mantendo a ordem, embarcaram no avião. Aconchegada em três poltronas, oscilei energeticamente entre o estado de repouso e de excitação, com as possibilidades de entretenimento fácil ao longo de todo o trajeto.
Em Londres, o bilhete de conexão no aeroporto Heathrow indicava uma missão aparentemente simples – desembarcar no terminal 5 e embarcar no mesmo terminal – não fosse o aeroporto um labirinto. Um trem, três escadas rolantes, longos corredores e enormes painéis informativos depois, encontrei filas quilométricas.
O mundo parecia se reunir ali. Os funcionários estavam perdidos e exaustos. As filas se multiplicavam. As malas eram invariavelmente vasculhadas uma a uma, criando novas aglomerações no final das esteiras. Enquanto isso, eu me espremia para transpor a barreira de viajantes ansiosos e descalços que aguardavam a manipulação descuidada de seus objetos pessoais.
Corri o mais rápido que pude, arrastando as malas e esbarrando em gente, para pegar o último ônibus até o avião. No Whatsapp, escrevi no grupo da família: “Em Londres. Um segundo e não embarco. Tremendo toda“. O avião decolou sem tempo para mais explicações.
O relógio marcava 7:30 quando deixamos para trás um amanhecer de céu azul levemente frio. A bordo, judeus ultraortodoxos se preparavam para as orações matinais. Os homens jovens, reunidos de pé entre as poltronas, conversavam animados. Diferente da vestimenta religiosa, as máscaras pareciam intrusas e incômodas; ora descansando sob o queixo, ora cobrindo nariz e boca de forma displicente.
Cada peça de roupa ou adereço tem um significado para o judaísmo. Pela manhã, os homens se livram dos casacos longos, pretos e quentes (os bekishes) e dos formais chapéus, mantendo o quipá e deixando à mostra o tzitzit. O único homem mais velho do grupo se arrumou lentamente. Posicionou um tefilin no braço esquerdo, enrolando a faixa de couro com cuidado pelo braço, e o outro na porção frontal da cabeça. Depois, cobriu a cabeça com um talit branco de seda e, em oração, percorreu todos os corredores do avião. Logo, os jovens se uniram a ele nas poltronas centrais vazias do avião. As preces prosseguiram e os corpos em movimento embalaram meu sono. Adormeci.
Acordei com o piloto anunciando a aterrissagem. Com o som das preces ainda ecoando na cabeça, piso em Israel.
Camila Pinto da Cunha, engenheira agrônoma, jornalista científica e pesquisadora de pós-doutorado no Instituto Weizmann de Ciências, escreve sobre vivências pessoais e experiências científicas em Israel.
Crédito imagem: DALLE*E
Revisão de texto: Natália Flores
Texto publicado originalmente em 11 de novembro de 2020